Campinas, apartamento temporário, 11:20
Bianca e Carla trabalhavam em silêncio, cada uma focada intensamente em sua tarefa. O apartamento era pequeno, anônimo, alugado com documentos falsos e pago em espécie, cédulas avulsas, bastante usadas. As janelas, cobertas. As portas, trancadas. Um bunker digital improvisado.
Carla finalizava os pacotes de dados, organizando evidências, criando narrativas claras, estabelecendo conexões irrefutáveis entre nomes, datas, eventos. Transformando uma montanha de informações brutas em um caso coerente e devastador.
Bianca escrevia. Seu talento como jornalista, a habilidade de transformar fatos em histĂłrias humanas, nunca havia sido tĂŁo crucial. NĂŁo estava apenas documentando crimes. Estava dando voz Ă s vĂtimas. Conectando pontos tĂ©cnicos a consequĂŞncias humanas reais.
— Acabei de receber confirmação de três jornalistas internacionais, — disse Carla, sem desviar os olhos da tela. — New York Times, Le Monde, Der Spiegel. Todos prontos para publicar simultaneamente.
— ONGs?
— Seis confirmadas. Amnesty International. Reporters Without Borders. Electronic Frontier Foundation. Human Rights Watch. Mais duas organizações brasileiras de direitos digitais.
Bianca esboçou um sorriso de aprovação, absorvendo a informação enquanto continuava digitando.
— Plataformas sociais?
— Estratégia de distribuição em camadas, — respondeu Carla. — Contas primárias, secundárias e terciárias. Se uma for derrubada, as outras continuam. Sistema redundante.
— E o dead man's switch?
—O nosso “botão do apocalipse” está ativo. Se não desativarmos manualmente a cada 12 horas, tudo é liberado automaticamente.
Bianca parou de digitar, olhando finalmente para Carla.
— Estamos realmente fazendo isso. Estamos realmente prestes a derrubar todo um sistema de poder.
— Estamos tentando, não esqueça. — corrigiu Carla. — O resultado ainda não está garantido.
— Realmente, você sempre foi a realista entre nós, — comentou Bianca com um pequeno sorriso.
— Alguém precisa ser, amiga. — Respondeu Carla, retribuindo o sorriso brevemente antes de voltar ao trabalho.
O telefone seguro de Bianca vibrou. Mensagem de um número desconhecido, mas com o código de autenticação correto:
“Cristina Salles. Negociando com Eduardo. PossĂvel acordo com autoridades federais. Preciso de orientação”.
Bianca mostrou a mensagem para Carla, que franziu a testa.
— Armadilha, Bino?
— PossĂvel, — respondeu Carla. — Mas o cĂłdigo de autenticação está correto. E faz sentido estratĂ©gico para ela negociar agora.
— O que respondemos?
Carla considerou por um momento.
— Diga para documentar tudo. Não confiar em promessas verbais. E não encontrar Eduardo pessoalmente sob nenhuma circunstância.
Bianca digitou a resposta, acrescentando:
— Mantenha canal aberto. Reporte qualquer desenvolvimento imediatamente.
Mal havia enviado a mensagem quando o telefone vibrou novamente. Desta vez, uma ligação. Amaral.
— Estou no viva-voz, — disse Bianca ao atender. — Carla está comigo.
— Temos um problema, garotas. Dr. Campos foi encontrado morto em seu apartamento. Aparentemente suicĂdio.
— SuicĂdio, sĂ©rio? — repetiu Carla, incrĂ©dula.
— “Aparentemente” sendo a palavra-chave, — respondeu Amaral. — Muito conveniente. Muito limpo. Muito... muito conclusivo.
— Eles estão eliminando pontas soltas, — concluiu Bianca. — Construindo sua contra-narrativa.
— Exatamente, bem isso. — confirmou Amaral. — João Elias, o gênio louco. Dr. Campos, o psiquiatra antiético. Os dois verdadeiros vilões, convenientemente mortos e incapazes de contradizer qualquer história que Salles e os outros inventem.
— Isso muda nosso cronograma, — ponderou Carla. — Precisamos acelerar a distribuição.
— Concordo plenamente, — disse Amaral. — De quanto tempo precisam?
Carla e Bianca trocaram olhares.
— Seis horas, pelo menos — respondeu Carla. — Para finalizar os pacotes, confirmar todos os canais, garantir distribuição simultânea, para sermos o mais assertivos possĂvel.
— Façam em quatro, não podemos arriscar — disse Amaral. — A situação está se deteriorando rapidamente. Pimentel mobilizou equipes especiais. Estão usando tecnologia militar de rastreamento. É apenas questão de tempo.
— Entendido, vamos dobrar os esforços — respondeu Carla. — Quatro horas e nada mais.
— E Clara? — Perguntou Bianca.
— Segura, por enquanto, — respondeu Amaral. — Preparando-se para ser a face acadêmica quando tudo vier a público. Sua credibilidade será crucial.
— Mantenham-se seguros, — disse Bianca. — Próximo contato apenas após a distribuição.
— Entendido, — respondeu Amaral. — Boa sorte.
A ligação encerrou. Bianca e Carla voltaram ao trabalho com urgência redobrada. O tempo, sempre seu inimigo, agora parecia um bólido sem freio contra elas.
MansĂŁo Salles, 14:30
Cristina verificou sua aparência no espelho uma última vez. Cabelo impecável. Maquiagem perfeita. Expressão cuidadosamente neutra. A mesma máscara social que havia aperfeiçoado ao longo de décadas como esposa de Eduardo Salles.
Sob essa máscara, sua mente trabalhava em frenesi. Analisando riscos. Calculando probabilidades. Preparando-se para todas as contingĂŞncias possĂveis.
O encontro com o representante federal estava marcado para as quinze horas. Um promotor da força-tarefa anticorrupção do Ministério Público Federal. Alguém com reputação de integridade. Alguém fora da esfera de influência de Eduardo.
Teoricamente.
Seu telefone vibrou. Mensagem de Bianca:
“Não confie em promessas verbais. Documente tudo. Não encontre Eduardo pessoalmente sob nenhuma circunstância”.
Cristina sorriu levemente. Conselhos sensatos. Já havia preparado dispositivos de gravação. Já havia garantido que o encontro seria em local público. Já havia estabelecido seu próprio “botão do apocalipse”.
Mas algo a incomodava. Uma sensação persistente de que estava perdendo alguma coisa. Algum ângulo que não havia considerado. Alguma variável que havia escapado de seus cálculos meticulosos.
“Quando a esmola é muita, o santo desconfia”, pensou. Eduardo havia aceitado a negociação muito facilmente. Conhecia o marido bem demais para acreditar que ele simplesmente cederia sem algum plano alternativo.
Qual era o plano dele, afinal?
Seu olhar caiu sobre uma fotografia na penteadeira. Ela e Sofia, sua filha de 18 anos, durante as férias no ano anterior. Sorrindo. Felizes. Inocentes.
Sofia.
A realização a atingiu como um choque fĂsico.
Sofia estava na universidade. Supostamente segura. Supostamente fora do alcance de Eduardo.
Mas e se...?
Pegou o telefone com dedos trĂŞmulos, discando o nĂşmero da filha. Direto para a caixa postal.
Tentou novamente. Mesmo resultado.
Mensagem de texto:
“Sofia, me ligue imediatamente. Emergência”.
Nada.
O pânico cresceu, ameaçando romper sua compostura cuidadosamente mantida. Eduardo não ousaria. Não sua própria filha. Não Sofia.
Mas sabia, no fundo de seu ser, que não havia limites para o que Eduardo faria para proteger seu império. Sua filha seria apenas mais uma peça no tabuleiro. Um ativo a ser usado. Uma alavanca para forçar um acordo espúrio?
Cristina respirou fundo, forçando-se a pensar claramente através do pânico crescente. Precisava de ajuda. Precisava de alguém fora do alcance de Eduardo.
Pegou o telefone novamente, desta vez ligando para Bianca.
— Cristina? — Atendeu Bianca, a voz cautelosa.
— Minha filha, Bianca, minha filha. — Disse Cristina, abandonando qualquer pretensão de calma. — Sofia. Não consigo contatá-la. Acho que Eduardo pode tê-la...
— Onde ela deveria estar, mulher? — Interrompeu Bianca, imediatamente compreendendo a gravidade da situação.
— Universidade de São Paulo. Faculdade de Direito. Ela tem aula até às dezesseis horas hoje.
— Vou acionar Amaral, ele pode nos ajudar, ele pode verificar discretamente. Tem contatos na universidade, acredito.
— Se Eduardo a pegou... — Cristina nĂŁo conseguiu completar a frase, a possibilidade terrĂvel demais para ser articulada.
— Não tire conclusões precipitadas, vamos usar os recursos que temos. — Disse Bianca, modulando uma voz firme com gentileza. — Pode haver explicações inocentes. Telefone descarregado. Aula prolongada. Biblioteca sem sinal.
— VocĂŞ nĂŁo conhece Eduardo, nĂŁo realmente. O que ele Ă© capaz de fazer quando se sente encurralado... Ă© terrĂvel pensar isso.
— Conheço o suficiente, pode crer. E é por isso que vamos agir com a máxima urgência. Mas também com cautela. Não podemos arriscar precipitar algo pior.
Cristina disse um OK seco e perguntou:
— O que faço sobre o encontro? O promotor federal estará esperando em meia hora.
— Adie o encontro, agora! — Respondeu Bianca sem hesitação. — Diga que está passando mal. Que precisa de algumas horas. Qualquer coisa para ganhar tempo até confirmarmos a situação de Sofia.
— E se for exatamente o que Eduardo quer? Mais tempo para implementar seja lá qual for seu plano?
— É um risco, admito, mas menor que o risco de você entrar em uma situação potencialmente fatal sem todas as informações.
Cristina ficou em silêncio por um momento, pesando opções, calculando riscos.
— Tá bem, Bianca, vou adiar por duas horas. Não mais do que isso. E vou exigir confirmação visual de que Sofia está segura antes de qualquer negociação.
— Boa estratégia, — concordou Bianca. — Nos mantenha informados. E Cristina... tenha cuidado. Você é uma peça crucial neste jogo agora. E como você mesma disse, o teu marido é capaz de tudo.
— Isso não é um jogo para mim, Bianca. — Respondeu Cristina, a voz subitamente exausta. — É minha vida, é a minha filha.
— Eu sei, eu sei, Cristina, estamos juntas nisso, agora. É por isso que vamos vencer. Porque para eles é apenas poder. Para nós, é tudo.
Universidade de SĂŁo Paulo, Faculdade de Direito, 15:10
Amaral moveu-se pelo campus histórico com a confiança de alguém que pertencia ali. Vestido casualmente: jeans, camisa polo, blazer discreto; parecia apenas mais um professor ou talvez um pai visitando o local de estudo da filha ou filho.
Andou um pouco e localizou o Departamento de Direito Constitucional facilmente. Consultou o quadro de horários.
“Turma do segundo ano. Sala 307. Professor Mendes. Terminando às 16h”.
Posicionou-se estrategicamente no corredor, verificando discretamente cada rosto que passava. Estudantes apressados. Professores carregando livros. Funcionários administrativos.
Nenhum sinal de atividade suspeita. Nenhuma presença policial disfarçada. Nenhum homem de terno observando atentamente.
Seu telefone vibrou. Mensagem de Clara:
“Algum sinal dela”?
“Ainda não”, respondeu. Aula termina em 45 minutos. Mantendo posição”.
Enquanto esperava, Amaral refletia sobre os eventos extraordinários que o haviam trazido até ali. Um detetive veterano, a poucos anos da aposentadoria, agora fugitivo de seus próprios colegas. Perseguido pelo sistema que jurara defender.
A ironia nĂŁo lhe escapava. Nem a clareza moral de sua posição atual. Pela primeira vez em anos, sentia-se completamente alinhado com seu juramento original: Proteger e Servir. NĂŁo a instituições corrompidas, mas a pessoas reais. VĂtimas reais.
O som de portas abrindo interrompeu seus pensamentos. Estudantes começaram a sair de várias salas. Intervalo, provavelmente.
Amaral observou atentamente, procurando por Sofia Salles. Tinha apenas uma fotografia como , enviada por Cristina. Jovem de 18 anos. Cabelo castanho longo. Olhos claros como os da mĂŁe.
Nada.
Mais estudantes. Mais rostos desconhecidos.
EntĂŁo, finalmente, a viu, saindo da sala 307 com um grupo de amigas. Rindo de algo. Completamente alheia ao drama que se desenrolava ao seu redor.
Amaral sentiu um alĂvio imenso. Pelo menos por enquanto, Sofia estava segura. Normal. NĂŁo sequestrada, nĂŁo ameaçada.
Tirou discretamente uma foto, enviando-a para Bianca com a mensagem:
“Localizada. Segura. Em aula normal”.
A resposta veio quase imediatamente:
“ Graças a Deus. Informe Cristina. Mas mantenha vigilância. Situação ainda volátil”.
Amaral confirmou, preparando-se para uma longa tarde de observação discreta. Sofia Salles não sairia de sua vista até que a situação fosse resolvida.
Estava prestes a enviar uma mensagem para Cristina quando notou algo perturbador. Um homem entrando no corredor oposto. Terno bem cortado. Postura militar. Olhar atento, avaliando metodicamente cada rosto.
NĂŁo era policial regular. O treinamento era evidente em cada movimento. Segurança privada de alto nĂvel. Ou pior.
E estava claramente procurando por alguém.
Amaral recuou para um nicho entre duas colunas, observando. O homem continuou avançando, aproximando-se do grupo onde Sofia conversava animadamente.
Não era coincidência. Era a operação de Eduardo em andamento.
Amaral avaliou rapidamente suas opções. Confronto direto era arriscado demais. Chamaria atenção. Criaria cena. Potencialmente colocaria Sofia em perigo maior.
Precisava de uma abordagem mais sutil.
Moveu-se rapidamente, contornando por outro corredor para interceptar o grupo de estudantes antes que o homem os alcançasse. Aproximou-se casualmente, como um professor.
— Com licença, disse, — dirigindo-se diretamente a Sofia. — Você é Sofia Salles, certo? Departamento Acadêmico pediu para avisá-la. Sua mãe está tentando contatá-la. Parece urgente.
Sofia pareceu confusa.
— Minha mãe? Meu telefone está... — Verificou a bolsa, percebendo. — Sem bateria. Droga.
— Você pode usar o telefone da secretaria, sugeriu Amaral, guiando-a sutilmente na direção oposta ao homem de terno, que agora observava a interação com interesse intenso.
— Obrigada, professor...?
— Amaral, — respondeu ele, enquanto caminhavam. — Não sou professor, na verdade. Sou amigo da sua mãe. E precisamos sair daqui agora.
Sofia parou, alarmada.
— O quê? Quem é você realmente?
— Alguém tentando mantê-la segura, — respondeu Amaral, mantendo a voz baixa e calma. — Olhe discretamente para o corredor atrás de nós. Homem de terno escuro. Ele está aqui por você. E não para ajudar.
Sofia olhou, reconhecimento imediato em seus olhos.
— Conheço ele. É um dos seguranças do meu pai.
— Sua mãe está preocupada, e com razão, aparentemente. Podemos ir para um lugar seguro para explicar tudo?
Sofia hesitou, claramente avaliando a situação. O homem agora estava se movendo em sua direção, falando em um dispositivo de comunicação no punho.
— Ele está chamando reforços, Sofia e o alvo é você. Precisamos decidir agora.
— Como sei que posso confiar em você? — Perguntou Sofia, surpreendentemente calma dada a situação.
— Sua mãe disse que seu código de segurança familiar é “Prometheus1984”, — respondeu Amaral. — Ela estabeleceu quando você tinha 12 anos. Para situações exatamente como esta.
Os olhos de Sofia se arregalaram.
— Ela realmente enviou você, então.
— Sim. E temos muito pouco tempo.
Sofia agora confiante, decisĂŁo tomada, orientou Amaral.
— Há uma saĂda pelos fundos da biblioteca. Vamos.
Moveram-se rapidamente, Sofia liderando o caminho atravĂ©s de corredores menos utilizados. O campus antigo, com sua arquitetura labirĂntica, oferecia inĂşmeras rotas de fuga para quem conhecia bem o local.
Amaral enviou uma mensagem rápida para Bianca:
“Contato feito. Segurança de Eduardo presente. Removendo S para local seguro”.
Enquanto navegavam pelo labirinto acadêmico, Amaral percebeu que Sofia Salles não era apenas uma peça no jogo de poder entre seus pais. Era uma jogadora por direito próprio. Calma sob pressão. Decisiva. Observadora.
— Você não parece surpresa com tudo isso, — comentou enquanto desciam uma escada de serviço pouco utilizada.
— Cresci observando meu pai, — respondeu Sofia simplesmente. — Aprendi a reconhecer os sinais. Os padrões. Sempre soube que um dia chegaria a isso.
— Sua mãe...
— Tem coletado evidências há anos, eu sei. Ajudei em algumas ocasiões.
Amaral a olhou com novo respeito.
— Você sabia sobre o Projeto Cassandra?
— NĂŁo detalhes especĂficos, — respondeu Sofia enquanto chegavam a uma porta de serviço. — Mas sabia que era algo terrĂvel. Algo que destruĂa vidas. Principalmente de mulheres.
Empurrou a porta, revelando um pequeno pátio arborizado.
— Por aqui. Há uma saĂda para uma rua lateral que poucos conhecem.
Seguiram rapidamente, atentos a qualquer sinal de perseguição.
— Para onde vamos agora, Amaral? — Perguntou Sofia quando finalmente alcançaram a rua.
— Primeiro, trocar de transporte, — respondeu Amaral, guiando-a para um táxi que havia pré-posicionado estrategicamente. — Depois, reunir você com sua mãe. E então...
— E então derrubar meu pai, — completou Sofia, uma determinação feroz em sua voz jovem. — Expor tudo o que ele fez.
Amaral a estudou enquanto entravam no táxi.
— Isso não será fácil para você, imagino. Ele ainda é seu pai.
— Biologicamente, sim, mas moralmente? Ele perdeu esse direito há muito tempo.
O táxi partiu, misturando-se ao tráfego da tarde. Atrás deles, homens de terno emergiam da universidade, falando urgentemente em comunicadores, observando as ruas em frustração evidente.
Tarde demais. O jogo havia mudado novamente.
Apartamento temporário, Campinas, 16:45
— Distribuição em T-15 minutos, anunciou Carla, — verificando os sistemas uma última vez. — Todos os canais confirmados. Todos os pacotes prontos.
Bianca confirmou, finalizando o texto que acompanharia a primeira onda de evidĂŞncias. Um manifesto, essencialmente. Uma explicação clara e direta do que o Projeto Cassandra era, quem estava envolvido, e como havia destruĂdo sistematicamente dezenas de vidas.
— Carla, sabe se Amaral conseguiu? — Perguntou, sem desviar os olhos da tela.
— Sim, a Sofia está segura. Reunindo-se com Cristina em local protegido.
— E o encontro com o promotor federal, como ficou?
— Adiado indefinidamente, Cristina pensou melhor e decidiu que negociação não é mais o caminho. Não depois que Eduardo enviou homens atrás de Sofia.
Bianca balançou a cabeça, compreendendo perfeitamente. Algumas linhas, uma vez cruzadas, não permitiam retorno. Eduardo havia cruzado a última linha que restava.
— T-10 minutos, — anunciou Carla. — Última chance de revisar antes que tudo vá ao ar.
Bianca leu as palavras na tela uma Ăşltima vez. Palavras que havia escrito e reescrito meticulosamente. Palavras que mudariam tudo.
"Projeto Cassandra: A Verdade Exposta.
Por décadas, temos testemunhado o poder da tecnologia para transformar vidas. Hoje, revelamos como esse mesmo poder foi pervertido para destruir sistematicamente mulheres que ousaram desafiar estruturas estabelecidas de poder.
O Projeto Cassandra não é ficção. Não é teoria conspiratória. É um programa meticulosamente projetado e implementado por algumas das figuras mais poderosas do Brasil para silenciar vozes femininas através da humilhação digital, manipulação psicológica e destruição reputacional.
Os arquivos que acompanham este texto contĂŞm evidĂŞncia irrefutável. Nomes. Datas. Comunicações diretas. TransferĂŞncias financeiras. Depoimentos das vĂtimas. A histĂłria completa de uma conspiração que se estende dos porões digitais atĂ© os mais altos escalões do poder institucional.
Entre os principais arquitetos deste sistema, temos:
Dr. Eduardo Salles, psiquiatra renomado e filantropo, que financiou e direcionou toda a operação.
João Elias (conhecido online como 'Architect'), gênio tecnológico que projetou os algoritmos de destruição digital.
Dr. Ricardo Campos, psiquiatra que selecionava alvos baseado em perfis psicolĂłgicos de vulnerabilidade.
Delegado Augusto Pimentel, que garantia proteção institucional e suprimia investigações.
Juiz Roberto Menezes, que bloqueava processos judiciais contra os perpetradores.
Promotor Carlos Dantas, que se recusava a processar casos legĂtimos e vazava informações confidenciais.
Cada um desses homens, usando o poder de suas posições, contribuiu para um sistema projetado especificamente para punir mulheres que ousavam ocupar espaços tradicionalmente negados a elas.
Eu, Bianca Oliveira, fui uma dessas mulheres. Minha carreira como jornalista investigativa foi destruĂda por deepfakes sofisticados apĂłs eu começar a investigar conexões entre figuras poderosas. NĂŁo fui a primeira. Nem a Ăşltima.
JĂşlia Sampaio. Amanda Torres. Marina Costa. Clara Reis. Dezenas de outras. Todas sistematicamente atacadas. Todas cuidadosamente selecionadas. Todas meticulosamente destruĂdas.
Algumas sobreviveram, como eu. Outras nĂŁo.
Hoje, nos recusamos a permanecer silenciadas. Nos recusamos a permitir que este sistema continue operando nas sombras.
A verdade está nos arquivos. Leiam. Compartilhem. E exijam justiça.
Porque no final, a única coisa mais poderosa que algoritmos de destruição é a verdade irrefutável exposta à luz do dia."
Bianca respirou fundo, sentindo o peso do momento.
— Está pronto.
— T-5 minutos, — anunciou Carla. — Sem volta a partir daqui.
— Nunca houve volta, — respondeu Bianca. — NĂŁo desde o primeiro deepfake. NĂŁo desde a primeira vida destruĂda.
Carla olhou para a amiga e suspirou profundamente, compreendendo perfeitamente.
— T-1 minuto.
Os segundos pareciam se arrastar. Cada batida do relĂłgio carregada com o peso da histĂłria sendo reescrita. Do poder sendo redistribuĂdo. Da verdade finalmente emergindo.
— Distribuição iniciada, — anunciou Carla, após eternos minutos. — Todos os canais ativos. Primeira onda de pacotes enviada.
Na tela, confirmações começaram a aparecer. Jornalistas recebendo os arquivos. ONGs confirmando download. Plataformas sociais explodindo com as primeiras reações.
— Funcionou, parte da missão, cumprida, acredita? — Disse Bianca, quase incrédula. — Realmente funcionou.
— A distribuição funcionou, por enquanto, apenas isso. — Corrigiu Carla. — Agora vem a parte difĂcil. A tempestade que se seguirá.
Como que para enfatizar seu ponto, o telefone seguro vibrou. Mensagem de Amaral:
“Começou. Todas as unidades policiais mobilizadas. Ordem de prisão para todos nós. Mantenham-se em movimento”.
— Quanto tempo temos antes que precisemos sair? — Perguntou Bianca.
— Minutos, no máximo, respondeu Carla, — já desconectando equipamentos. — Mas não importa agora. A verdade está lá fora e não pode ser contida novamente.
Enquanto preparavam-se para mais uma fuga, mais uma relocação, mais um capĂtulo na luta contĂnua, Bianca permitiu-se um momento de satisfação genuĂna.
Porque finalmente, apĂłs anos de humilhação e descrĂ©dito, sua voz estava sendo ouvida. Sua verdade estava sendo contada. Sua histĂłria e as histĂłrias de todas as outras vĂtimas estavam finalmente vindo Ă luz.
O Projeto Cassandra havia sido projetado para silenciar. Agora, ironicamente, havia se tornado o catalisador para o maior coro de vozes que o paĂs já havia testemunhado.