Delegacia Central, 10:17
Amaral encarava a tela do computador, a frustração evidente em cada linha de seu rosto. Três semanas de investigação oficial e praticamente nada para mostrar. Cada pista esbarrava em obstáculos burocráticos. Cada solicitação de mandado era negada ou adiada indefinidamente. Cada tentativa de avançar era sutilmente sabotada.
O sistema não estava apenas falhando. Estava ativamente protegendo os predadores.
— Mais café? — Perguntou Sargento Mendes, aproximando-se com uma caneca fumegante.
— Não, obrigado, — respondeu Amaral, sem desviar os olhos da tela.
Mendes deu de ombros e se afastou, mastigando chiclete ruidosamente. Um bom policial para casos convencionais. Completamente despreparado para o que estavam enfrentando agora.
O telefone vibrou. Mensagem de Carla: “Progresso. Encontrei Clara. Ela está dentro. Reunião hoje, 20h, local de sempre.â€
Amaral sentiu uma pontada de esperança. Clara Reis era uma peça importante. Uma acadêmica respeitada antes do ataque. Alguém com credibilidade institucional, com conexões no mundo educacional. Se conseguissem seu testemunho, fortaleceriam significativamente o caso.
Mas ainda não era suficiente. Precisavam de mais. Precisavam de provas concretas conectando Salles, João Elias e Dr. Campos diretamente aos crimes. Provas que resistissem ao escrutÃnio judicial. Provas que nem mesmo as conexões poderosas deles pudessem desacreditar.
— Amaral! — A voz do Delegado Pimentel cortou seus pensamentos. — Minha sala. Agora.
Amaral respirou fundo, preparando-se mentalmente. Cada interação com Pimentel era como pisar em ovos, desde que descobriu seu envolvimento. Cada palavra, cada expressão facial precisava ser cuidadosamente controlada.
O escritório de Pimentel cheirava a charutos cubanos e desodorizador de ambiente caro. O delegado estava sentado atrás de sua mesa imponente, folheando um arquivo com expressão grave.
— Feche a porta, — ordenou, sem levantar os olhos.
Amaral obedeceu, mantendo a postura neutra. Profissional. Impenetrável.
— Sente-se.
Outro comando curto. Outra demonstração de controle. Amaral sentou-se, esperando.
— Estou preocupado com você, Marcus, — disse Pimentel finalmente, usando seu primeiro nome, uma raridade que imediatamente acendeu alarmes internos. — Você parece meio obcecado com esse caso Sampaio. Mesmo depois de ter sido oficialmente encerrado como suicÃdio.
— Apenas sendo meticuloso, chefe, — respondeu Amaral, mantendo o tom casual. — Estou amarrando pontas soltas.
— Que pontas soltas, posso saber? A garota tomou remédios, bebeu álcool, morreu. Trágico, mas não criminal.
— Há indÃcios de manipulação digital, possÃvel extorsão.
— Teorias, teorias… — interrompeu Pimentel, descartando com um gesto. — Especulações de uma perita digital com imaginação fértil demais.
Amaral sentiu o sangue ferver, mas manteve a expressão neutra.
— A propósito, — continuou Pimentel — soube que essa perita, a Vasconcellos, certo? está conduzindo investigações não autorizadas. Acessando bases de dados sem mandados. Potencialmente comprometendo casos futuros com métodos. questionáveis.
A ameaça era clara. Estavam observando Carla. Rastreando seus movimentos digitais.
— Não tenho conhecimento disso, — respondeu Amaral cuidadosamente. — Mas posso verificar.
— Faça isso, — disse Pimentel, inclinando-se para frente. — E enquanto estiver nisso, talvez queira reconsiderar suas associações recentes. Aquela jornalista desacreditada, por exemplo. Bianca Oliveira. Não é o tipo de companhia que um detetive com seu potencial deveria manter.
O estômago de Amaral contraiu-se. Eles sabiam. Estavam monitorando. Seguindo.
— Apenas coletando depoimentos abrangentes, chefe, respondeu, forçando um sorriso despreocupado. — Deixando todas as possibilidades em aberto.
— Bem, — disse Pimentel, recostando-se. — Tenho uma possibilidade mais produtiva para você. Um caso novo. HomicÃdio no Morumbi. Empresário encontrado morto em circunstâncias suspeitas. O tipo de caso que pode realmente impulsionar uma carreira.
A oferta era tentadora. Um caso de alto perfil. Atenção da mÃdia. Promoção potencial. Uma saÃda elegante da investigação que estava incomodando pessoas poderosas.
— Parece interessante, respondeu Amaral, mantendo o tom neutro. — Quando começo?
— Imediatamente, — disse Pimentel, empurrando uma pasta através da mesa. — Os detalhes estão aqui. E Marcus, pensa bem, considere isso uma segunda chance. Uma oportunidade de realinhar suas prioridades.
Amaral pegou a pasta, concordando respeitosamente. — Entendido, chefe. Obrigado pela oportunidade.
Saiu do escritório com passos medidos. Nem muito rápidos, nem muito lentos. A postura de um homem que acabou de receber uma designação desejável, não a de alguém que acabou de ser ameaçado veladamente.
Apenas quando estava seguro em seu carro, longe de câmeras e ouvidos curiosos, permitiu-se o luxo da honestidade emocional. Socou o volante repetidamente, deixando a raiva e a frustração fluÃrem livremente por alguns segundos preciosos.
Então, como sempre fazia, compartimentalizou. Respirou fundo. Reorganizou-se.
Pegou o telefone seguro,múltiplas camadas de proteção.
— Estamos sendo observados, digitou. — Pimentel sabe. Ofereceu-me um caso novo para me afastar. Mencionou você e Bianca especificamente.
A resposta de Carla veio quase instantaneamente: “Esperado. Protocolos de segurança ativados. Mude a hora da reunião. 22h, não 20h. Novo local. Enviarei coordenadas 30 minutos antesâ€.
Amaral guardou o telefone e ligou o carro. Oficialmente, estava a caminho de uma cena de crime no Morumbi. Um homicÃdio que investigaria com toda a competência e profissionalismo que seus vinte e três anos de carreira exigiam.
Extraoficialmente, estava mais determinado que nunca a expor a rede de corrupção e abuso que se estendia dos porões digitais até os mais altos escalões do poder institucional.
Porque agora não era apenas sobre justiça para as vÃtimas. Era sobre integridade do sistema. Sobre a alma da própria justiça.
Porão de João Elias, 15:45
João não dormia há 72 horas. Seu corpo funcionava com uma combinação perigosa de estimulantes energéticos, adrenalina e puro terror. O ataque havia começado três dias antes. Sutil no inÃcio. Quase imperceptÃvel. Pequenas anomalias nos sistemas de segurança. Logs que não batiam. Processos que consumiam recursos inexplicavelmente.
Então se intensificou. Arquivos importantes corrompidos. Backups inacessÃveis. Sistemas de comunicação comprometidos.
Agora estava em guerra total. Uma guerra digital contra um oponente invisÃvel que parecia conhecer cada vulnerabilidade de seus sistemas, cada falha em suas defesas, cada ponto fraco em sua arquitetura digital.
— Localizar origem do ataque, — comandou pela décima vez na última hora.
— Origem indeterminada, — respondeu o sistema. — Múltiplos pontos de entrada. Padrão de ataque não reconhecido.
João passou as mãos pelo cabelo oleoso, puxando-o com força suficiente para causar dor. A dor ajudava a manter o foco. A clarear a mente cada vez mais nebulosa pelo cansaço e paranoia.
Quem poderia estar fazendo isso? Carla Vasconcellos? Não, ela era boa, mas não tão boa. Não neste nÃvel de sofisticação. Alguma agência governamental? Improvável. Seus contatos teriam avisado. Competidores? PossÃvel, mas quem? Quem tinha capacidade técnica para penetrar sistemas que ele mesmo havia projetado para serem impenetráveis?
Seu telefone seguro vibrou. Mensagem de Salles: “Situação�
João hesitou. Admitir vulnerabilidade era perigoso. Salles não tolerava falhas. Não compreendia as complexidades técnicas. Só entendia resultados.
— Sob controle, doutor! Ataque identificado e contido. Sistemas principais seguros.
Era mentira, claro. Nada estava sob controle. Nada estava seguro. Seus sistemas estavam sendo sistematicamente desmontados por um inimigo que parecia sempre estar alguns passos à frente.
A tela principal piscou. Uma mensagem apareceu. Não em uma janela de chat ou e-mail. Diretamente no sistema operacional. Como se o próprio computador estivesse falando com ele.
— Olá, Architect. Ou devo dizer, João Elias? Impressionante setup que você tem aqui. Sete placas de vÃdeo de última geração. Servidor local refrigerado a água. Três monitores de 32 polegadas. Cadeira gamer de dois mil reais. Tudo pago com o dinheiro dos “packsâ€, imagino.
João sentiu o sangue gelar. As palavras eram exatas. Precisas. Detalhes que ninguém poderia saber a menos que...
Olhou instintivamente para a webcam do monitor principal. Estava desligada. Sempre mantinha desligada. Paranoia básica de segurança.
Mas a luz indicadora acendeu naquele exato momento. Como se respondendo ao seu pensamento.
— Sim, estou vendo você, — continuou a mensagem. — Assim como você viu tantas mulheres. Invadiu suas vidas. Destruiu suas identidades. A diferença é que você realmente fez as coisas pelas quais estou prestes a te expor.
João desconectou a webcam com um movimento brusco. Mas era tarde demais. O dano estava feito. Quem quer que fosse, já estava dentro. Completamente dentro.
Outra mensagem apareceu: “Isso não vai ajudar, João. Estou em todo lugar no seu sistema. Nos seus servidores. Nos seus backups. Nos seus arquivos. Nos seus segredosâ€.
João começou a desligar equipamentos freneticamente. Servidores, computadores, roteadores. Desconectando cabos, pressionando botões de força, arrancando plugues da tomada.
Em seu pânico, não percebeu o pequeno dispositivo conectado discretamente à parte traseira de seu servidor principal. Um dispositivo que não estava lá no dia anterior. Um dispositivo que continuava transmitindo mesmo enquanto ele desligava tudo.
Quando o último monitor escureceu, João estava ofegante. Suando. Tremendo. O silêncio repentino do porão, sem o zumbido constante dos equipamentos, tornou-se incomodamente silencioso.
Seu telefone pessoal tocou, fazendo-o pular. Número desconhecido.
Atendeu com dedos trêmulos.
— Q-quem é?
— Alguém que conhece seus pecados, João. — respondeu uma voz distorcida digitalmente. — Alguém que tem cópias de tudo. Dos algoritmos. Dos vÃdeos. Dos e-mails. Das transferências financeiras. Dos perfis psicológicos. Pois é… de tudo.
— O que você quer, afina? — perguntou, a voz mal passando de um murmúrio.
— Justiça, eu quero justiça e você vai ajudar a fornecê-la.
— Como?
— Testemunhando. Confessando. Nomeando nomes. Expondo toda a operação.
João riu. Um som histérico, beirando a insanidade.
— Você acha que tenho escolha? Eles me matariam. Você não faz ideia de quem está envolvido. Do poder que têm.
— Sei exatamente quem está envolvido. — respondeu a voz calmamente. — Delegado Augusto Pimentel. Juiz Roberto Menezes. Promotor Carlos Dantas. Dr. Eduardo Salles. Tenho os registros de todas as comunicações. Todas as transações. Todos os pedidos especÃficos.
João sentiu as pernas fraquejarem. Deixou-se cair na cadeira gamer de dois mil reais, subitamente consciente da absurda frivolidade de sua existência.
— O que acontece agora?
— Agora você tem uma escolha, depende de você. Cooperar e receber alguma clemência quando tudo vier à tona. Ou resistir e enfrentar a força total da justiça, tanto legal quanto, digamos... extraoficial.
— Extraoficial?
— Pense nas dezenas de mulheres cujas vidas você destruiu, João. Pense em suas famÃlias. Seus amigos. Seus colegas. Pense em quantos gostariam de cinco minutos sozinhos com o homem responsável.
A ameaça pairou no ar, pesada e plausÃvel.
— Quanto tempo tenho para decidir? — perguntou, a voz trêmula.
— Doze horas. E tem mais, João! Não tente fugir. Não tente alertar seus parceiros. Estamos observando. Cada movimento. Cada comunicação. Cada respiração.
A ligação encerrou-se abruptamente, deixando João sozinho no porão silencioso, cercado por equipamentos mortos que, até algumas horas antes, eram extensões de seu próprio poder. Agora, apenas carcaças inúteis de metal e plástico.
Pela primeira vez em anos, João Elias, o Architect, sentiu o verdadeiro significado de vulnerabilidade. De exposição. De impotência absoluta diante de forças que não podia controlar.
Era exatamente o que havia infligido a tantas mulheres. E a ironia não lhe escapava.