Evento Beneficente da Fundação Salles, 19:30
O salão de festas do hotel cinco estrelas brilhava com opulência calculada. Lustres de cristal refletindo a luz perfeitamente calibrada. Arranjos florais estrategicamente posicionados para impressionar sem obstruir visões. Garçons circulando com bandejas de champanhe e canapés gourmet. Uma orquestra de câmara tocando discretamente em um canto.
O tipo de evento onde o poder real circulava. Onde conexões eram formadas, fortalecidas, exploradas. Onde sorrisos educados mascaravam transações que afetariam milhares de vidas.
Bianca, ou melhor, Beatriz Mendonça, ajustou o vestido preto simples mas elegante. Profissional com um toque de sofisticação. O visual cuidadosamente construído para transmitir ambição sem ameaça. Inteligência sem intimidação.
— Beatriz! — A voz de Eduardo Salles cortou o burburinho da festa. — Que maravilha te ver aqui!
Ele se aproximou, impecável em seu smoking, acompanhado por uma mulher estonteante. Loira, alta, com o tipo de beleza que parecia quase artificial em sua perfeição.
— Eduardo, — respondeu Bianca, com entusiasmo calibrado. — Que evento magnífico.
— Obrigado, querida. Permita-me apresentar minha esposa, Cristina.
A mulher estendeu a mão com um sorriso educado, mas limitado às convenções sociais.
— Beatriz. Eduardo mencionou que está escrevendo um perfil sobre ele.
— Sim, para a revista Empresários do Futuro, — confirmou Bianca. — Seu marido tem uma história fascinante.
— E não tem? — respondeu Cristina, com um toque de ironia que apenas Bianca pareceu notar. — Fascinante é certamente a palavra.
Houve um momento de tensão sutil. Algo não dito pairando entre o casal. Bianca registrou mentalmente. Cristina Salles. Uma variável não considerada anteriormente. Potencialmente útil.
— Venha, Beatriz, — disse Salles, colocando uma mão levemente em suas costas. — Quero apresentá-la a algumas pessoas importantes para nosso trabalho.
Bianca permitiu-se ser guiada pelo salão, consciente da mão de Salles em suas costas. Um toque aparentemente inocente, mas carregado de significado. Estabelecendo propriedade. Controle. Hierarquia.
As “pessoas importantes” eram exatamente quem ela esperava. Juiz Roberto Menezes, conhecido por sentenças duras em casos de violência contra mulher e por solicitar deepfakes de advogadas que atuavam em seu tribunal. Promotor Carlos Dantas, que se apresentava publicamente como defensor dos direitos humanos e sugeria alvos para os próximos packs. Delegado Augusto Pimentel, que comandava a Delegacia da Mulher e compartilhava informações privadas de vítimas que procuravam ajuda.
Todos sorriram educadamente. Todos fizeram perguntas superficiais sobre a revista, o artigo, sua carreira. Todos a estudavam com olhos que haviam visto suas versões digitais degradadas em vídeos que nunca deveriam existir.
Bianca manteve o sorriso. Respondeu às perguntas. Representou seu papel com perfeição. Enquanto o dispositivo discreto em sua bolsa gravava cada palavra, cada interação, cada admissão velada.
— Beatriz está fazendo um trabalho fascinante sobre nossos programas educacionais, — explicou Salles ao grupo. — Especialmente nossa nova iniciativa de segurança digital para jovens mulheres.
— Ah, sim, — comentou o Juiz Menezes, com um sorriso que fez o estômago de Bianca revirar. — Um trabalho vital nos dias de hoje. Tantos perigos online para jovens desavisadas.
— Absolutamente, — concordou o Promotor Dantas. — A internet pode ser um lugar cruel para mulheres que não entendem as... consequências de suas ações online.
A palavra consequências pairou no ar, carregada de ameaça velada. A mesma palavra que Salles havia usado em seu escritório. Um código entre eles, percebeu Bianca. Uma referência às vidas que haviam sistematicamente destruído.
— É por isso que nosso trabalho é tão importante, — continuou Salles, seu braço agora casualmente ao redor da cintura de Bianca. — Ensinamos jovens mulheres a entenderem seu lugar no mundo digital. Os limites. As expectativas.
— Fascinante, respondeu Bianca, — permitindo-se parecer genuinamente impressionada. — Gostaria muito de ver esse programa em ação.
Os homens trocaram olhares rápidos. Algo silencioso foi comunicado entre eles.
— Talvez possamos arranjar isso, para uma jornalista tão dedicada quanto a Bianca.
— Seria uma honra, — respondeu Bianca, baixando os olhos em falsa modéstia.
— Eduardo, — interrompeu Cristina, reaparecendo subitamente. — O senador chegou. Ele quer falar sobre aquele assunto.
— Claro, querida, respondeu Salles, virando-se para Bianca. — Dever me chama. Mas não desapareça. Temos muito mais a discutir.
Quando o grupo se afastou, Bianca permitiu-se um momento para respirar. Para recalibrar. Para suprimir o nojo que ameaçava dominar sua compostura cuidadosamente construída.
— Eles são sempre assim, — disse uma voz feminina ao seu lado. — Sorrisos na frente, facas nas costas.
Bianca virou-se, surpresa. Cristina Salles estava ao seu lado, duas taças de champanhe nas mãos. Ofereceu uma a Bianca.
— Obrigada, — respondeu Bianca cautelosamente, aceitando a taça.
— Não me agradeça ainda, — disse Cristina, com um sorriso amargo. — Você não faz ideia do mundo em que está entrando, Beatriz. Ou deveria dizer... Bianca?
O champanhe quase escorregou dos dedos de Bianca. Manteve a compostura por puro reflexo, anos de jornalismo investigativo em situações perigosas criando uma máscara de calma que seu coração acelerado desmentiu.
— Não sei do que está falando, — respondeu, a voz controlada.
— Claro que não, — disse Cristina, o sorriso nunca deixando seus lábios, os olhos escaneando o salão casualmente. — Assim como eu não sei sobre os deepfakes. Sobre o Projeto Cassandra. Sobre as mulheres destruídas. Sobre os suicídios.
Bianca manteve o silêncio. Qualquer resposta seria uma admissão. Qualquer negação seria transparente.
— Vinte anos casada com Eduardo, — continuou Cristina, como se estivessem discutindo o clima. — Vinte anos observando. Aprendendo. Coletando. Esperando.
— Esperando o quê? — perguntou Bianca finalmente, incapaz de conter a curiosidade.
— A pessoa certa, — respondeu Cristina, olhando diretamente nos olhos de Bianca pela primeira vez. — Alguém com coragem suficiente para fazer o que eu não posso. Para expor o que eu não posso expor.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque sei quem você é. O que está fazendo aqui. E quero ajudar.
— Como sei que posso confiar em você?
Cristina sorriu. Um sorriso genuíno desta vez. Triste, mas determinado.
— Não sabe. Assim como eu não sei se posso confiar em você. Mas ambas queremos a mesma coisa: ver Eduardo e seus amigos enfrentarem consequências. As verdadeiras consequências.
Antes que Bianca pudesse responder, Cristina continuou, modulando a voz, baixando o tom e demonstrando urgência:
— Meu escritório pessoal. Terceiro andar da mansão. Computador protegido por senha. 'Prometheus1984'. Há arquivos que você vai querer ver. E-mails. Registros financeiros. Nomes.
— Por que não os expôs você mesma?
— Porque assinei um acordo pré-nupcial blindado. Porque tenho uma filha para proteger. Porque Eduardo tem amigos em todos os lugares que importam. — Ela fez uma pausa, olhando novamente pelo salão. — E porque algumas correntes só podem ser quebradas de fora.
Eduardo estava retornando, seu sorriso profissional firmemente no lugar. Cristina se afastou de Bianca com um último comentário cochichado:
— Amanhã. Recepção para doadores na mansão. Estarei ocupada com convidados por pelo menos duas horas. O escritório fica no final do corredor à direita. Não há câmeras, eu verifiquei.
E então ela estava indo, interceptando o marido com um beijo no rosto, guiando-o para outro grupo de convidados importantes, deixando Bianca sozinha com uma taça de champanhe e uma decisão impossível.
Uma armadilha elaborada? Ou a aliada mais improvável possível?
Local seguro, Zona Sul, 22:17
O novo local de encontro era ainda mais anônimo que o anterior. Um apartamento vazio em um prédio antigo, sem móveis além de algumas cadeiras dobráveis e uma mesa improvisada com caixotes. Sem internet, sem energia conectada à rede – apenas geradores portáteis alimentando equipamentos essenciais.
Amaral foi o primeiro a chegar, seguindo o protocolo de segurança estabelecido por Carla. Verificou o perímetro, confirmou rotas de fuga, garantiu que não havia sinais de vigilância.
Carla chegou vinte minutos depois, seguida por Clara Reis. Ambas pareciam exaustas, mas havia uma energia determinada que não estava presente em encontros anteriores.
— Temos progresso, — anunciou Carla, abrindo seu laptop. — Clara concordou em testemunhar. E temos mais uma potencial aliada.
— Quem? — perguntou Amaral.
— Sabrina Melo. Ex-influenciadora fitness. Quase um milhão de seguidores antes do ataque. Perdeu contratos, família, noivo. Mas sobreviveu. E está furiosa.
— Furiosa é bom, — comentou Amaral. — Precisamos de fúria direcionada.
— Também temos isso, disse Carla, — mostrando a tela do laptop. — Consegui acesso parcial aos servidores de João Elias. Ele está em pânico total. Desligou tudo, mas não antes de eu plantar um dispositivo físico.
— Como conseguiu acesso físico, mulher do céu? — perguntou Amaral, impressionado e preocupado.
Carla sorriu enigmaticamente. — Melhor você não saber. Mas digamos que tenho amigos com habilidades bastantes especializadas.
— E o que encontrou?
— Tudo, — respondeu Carla, seus olhos brilhando com triunfo contido. — Os algoritmos. Os vídeos. Os e-mails. As transferências financeiras. Os perfis psicológicos. Toda a operação, documentada em detalhes obsessivos.
— Suficiente para um caso criminal? — perguntou Clara, falando pela primeira vez desde que chegou.
— Mais que suficiente, — confirmou Carla. — O problema não é evidência. É acesso ao sistema de justiça. Com Pimentel, Menezes e Dantas envolvidos, os canais normais estão comprometidos.
— E Bianca? Alguma notícia?
— Está no evento beneficente agora, Amaral — respondeu Carla, verificando seu telefone. — Infiltração bem-sucedida até o momento. Estabeleceu contato direto com todos os principais alvos.
— É perigoso demais, — disse Amaral, a preocupação evidente em sua voz. — Ela está cercada por predadores que já destruíram sua vida uma vez.
— Bianca sabia dos riscos, respondeu Carla. — E é a única com habilidades para se infiltrar nesse nível.
O telefone de Carla vibrou. Uma mensagem de Bianca:
“Desenvolvimento inesperado. Cristina Salles ofereceu acesso a arquivos privados. Possível armadilha? Ou aliada interna?”
Carla mostrou a mensagem para os outros.
— Armadilha, — disse Amaral imediatamente. — Tem que ser.
— Não necessariamente, — respondeu Clara, surpreendendo a ambos. — Conheço Cristina Salles. Não pessoalmente, mas por reputação. Ela financia secretamente várias iniciativas feministas. Doações anônimas, mas os círculos acadêmicos sabem.
— Por que a esposa de Eduardo Salles financiaria causas que ele ativamente trabalha para destruir?
— Ora, Amaral! Porque casamentos são complexos, — respondeu Clara. — E porque às vezes a melhor posição para combater um monstro é ao lado dele.
Carla digitou rapidamente:
“Proceda com extrema cautela. Verificação independente necessária antes de qualquer ação. Não se arrisque desnecessariamente.”
A resposta de Bianca veio quase imediatamente:
“Entendido. Mas se for legítimo, pode ser a chave para tudo. Amanhã saberemos.”
Amaral passou a mão pelo rosto cansado. — Isso está ficando cada vez mais complicado. E perigoso.
— Sempre foi, — respondeu Carla. — A diferença é que agora estamos avançando. Estamos próximos de algo grande.
— E quanto a João Elias? Você disse que ele está em pânico. Isso o torna imprevisível. Perigoso.
— Ou vulnerável, — respondeu Carla. — Dei a ele um ultimato. Cooperar ou enfrentar exposição total. Tem doze horas para decidir.
— E se ele alertar os outros?
— Não vai, ele está muito assustado. Muito isolado. E sabe que estamos observando cada movimento.
— Ainda assim, — insistiu Amaral, — precisamos de um plano de contingência. Se tudo der errado, se formos expostos antes de estarmos prontos...
— Já pensei nisso, — respondeu Carla. Abriu outra janela no laptop, mostrando um site pronto para ser publicado. — Preparei um "dead man's switch". Se algo acontecer comigo, ou com qualquer um de nós, tudo vai a público automaticamente. Todas as evidências. Todos os nomes. Toda a operação.
— Isso é... — Amaral hesitou, procurando a palavra certa. — Extremo.
— Estamos enfrentando pessoas extremas, — respondeu Carla simplesmente. — Pessoas que não hesitaram em destruir dezenas de vidas. Que causaram suicídios. Que corromperam o próprio sistema de justiça para proteger seus interesses.
O silêncio que se seguiu tomou conta do pequeno apartamenteo. Cada um absorvendo a magnitude do que enfrentavam. A gravidade das escolhas que estavam fazendo.
— Há mais uma coisa que precisamos discutir, — disse Carla finalmente. — Algo que encontrei nos arquivos de João Elias. Algo bastante perturbador.
— Mais perturbador que tudo o que já sabemos? — perguntou Clara.
— Sim, pode crer. — respondeu Carla, abrindo um documento. — O Projeto Cassandra não é apenas sobre deepfakes. É um experimento. Um teste de conceito para algo muito maior.
— Que tipo de experimento, porra? Já não basta tudo que já presenciamos?
— Amaral, Amaral… querem ter um controle social algorítmico, — respondeu Carla. — Eles estão refinando técnicas para identificar, isolar e neutralizar qualquer pessoa que represente ameaça a estruturas de poder estabelecidas. Começaram com mulheres porque são alvos socialmente aceitáveis. Porque a sociedade já está condicionada a desacreditar mulheres. A culpá-las por sua própria vitimização.
— Mas não para por aí, os documentos detalham planos para expandir. Jornalistas investigativos. Ativistas ambientais. Políticos progressistas. Qualquer um que desafie o status quo.
— Um sistema automatizado para destruir dissidência, — murmurou Clara. — Orwell nem conseguiu imaginar isso.
— Exatamente, — confirmou Carla. — E está quase pronto para implementação em larga escala. Os algoritmos estão sendo refinados com cada vítima. Aprendendo. Evoluindo. Se não os pararmos agora...
Não precisou completar a frase. As implicações eram claras demais. Aterrorizantes demais.
— Quanto tempo temos? — Perguntou Amaral.
— Segundo os documentos, a fase final de testes termina em duas semanas. Depois disso, implementação completa.
— Então temos duas semanas para desmantelar uma conspiração que se estende dos porões digitais até o mais alto cargo do poder institucional, — resumiu Amaral. — Sem recursos oficiais. Sem apoio institucional. Contra pessoas que já demonstraram disposição para destruir qualquer um que as ameace.
— Exatamente, — confirmou Carla.
— Impossível, — murmurou Clara.
— Talvez, quem sabe? — Respondeu Carla. — Mas vamos tentar mesmo assim.