Zona Leste de São Paulo, 02:34 da manhã
João Elias não dormia, fazia já 36 horas. Seus olhos ardiam, sua mente flutuava naquele estado liminar entre exaustão e hiper alerta que só programadores conheciam bem. Poderoso energético, anfetaminas e o zumbido constante dos servidores criavam uma sinfonia familiar que mantinha seu cérebro funcionando além dos limites normais.
Seis monitores o cercavam como um casulo tecnológico. Em cada tela, uma faceta diferente de sua criação. Algoritmos de aprendizado profundo analisando padrões comportamentais. Modelos 3D de rostos sendo renderizados em tempo real. Gráficos mostrando impacto emocional, propagação viral, eficiência de penetração em diferentes redes sociais.
Era belo. Perfeito. Uma obra-prima de engenharia social algorÃtmica.
— Status do Projeto Cassandra? — perguntou a voz sintetizada do sistema.
— Fase 3, 82% completa, — respondeu João automaticamente. — Eficiência de conversão superando expectativas em 17%.
— Anomalias detectadas?
João hesitou. As tentativas de invasão da perita criminal Carla Vasconcellos tinham se tornado mais sofisticadas. Mais direcionadas. Como se ela estivesse começando a entender a arquitetura do sistema. Perigoso.
— Algumas sondagens, — respondeu vagamente. — Nada preocupante, take easy.
Era mentira, e parte dele sabia disso. Estava mentindo para seu próprio sistema. Ironicamente, o mesmo sistema que havia programado para detectar mentiras em outros.
Seu telefone seguro vibrou. Mensagem de Salles: “Precisamos acelerar. Nova prioridade: Clara Reis. Implementação imediataâ€.
João franziu a testa. Clara Reis estava na lista, mas não era a próxima. O algoritmo tinha calculado cuidadosamente a sequência ideal para maximizar impacto social e minimizar detecção de padrões. Mudar a ordem comprometia a integridade do experimento.
— Não recomendado, doutor. Isso gera comprometimento de protocolo.
A resposta veio imediatamente: Não foi um pedido. Foi uma ordem. Clara Reis. Hoje. E ponto!
João sentiu uma pontada de irritação. Salles não entendia. Para ele, era apenas uma ferramenta de controle social. Não compreendia a beleza do que tinham criado. A pureza do experimento. A grandeza da visão.
— Implementando, então. O doutor manda.
Abriu o arquivo de Clara Reis. Professora de literatura, 35 anos. Especialista em distopias tecnológicas, ironia que não lhe escapava. Tinha publicado artigos criticando a misoginia em ambientes virtuais. Estava organizando um simpósio sobre ética na era digital.
O algoritmo já tinha construÃdo um modelo psicológico detalhado. Pontos de pressão identificados: preocupação com reputação acadêmica, relacionamento frágil com os pais conservadores, histórico de episódios depressivos na juventude. Vulnerabilidades mapeadas: medo de rejeição social, tendência a internalizar crÃticas, dificuldade em pedir ajuda.
João ativou o módulo de sÃntese de vÃdeo. A IA começou a trabalhar, combinando milhares de imagens de Clara em diferentes contextos, aprendendo seus trejeitos, suas expressões, a forma como seu rosto reagia a diferentes emoções. Simultaneamente, outro algoritmo analisava sua voz, captando padrões tonais, sotaques sutis, cadências especÃficas.
Em poucas horas, teria um modelo digital perfeito. IndistinguÃvel da realidade. Capaz de dizer e fazer qualquer coisa que programasse.
Enquanto os algoritmos trabalhavam, João permitiu-se um momento de reflexão. Não era um monstro, dizia a si mesmo. Era um visionário. Um pioneiro. Estava forçando a evolução da espécie. Empurrando a humanidade para desenvolver defesas psicológicas contra manipulação digital. Os fracos sucumbiriam. Os fortes se adaptariam. Era seleção natural. Era progresso.
— Prometheus Rising Again, — murmurou para si mesmo, um mantra que repetia nos momentos de dúvida.
Seu olhar vagou para o monitor que mostrava os resultados do projeto até agora. Gráficos, estatÃsticas, métricas frias que quantificavam o sofrimento humano. Dezessete mulheres completamente destruÃdas. Carreiras arruinadas. Relacionamentos desfeitos. Identidades fragmentadas. Três suicÃdios confirmados. Dois em investigação.
Dados. Apenas dados.
Por um momento, algo parecido com dúvida cruzou sua mente. Uma imagem fugaz de Júlia Sampaio, não como um simples conjunto de métricas, mas como uma pessoa real. Alguém que respirava, sonhava, amava. Alguém que agora estava morta.
Balançou a cabeça, afastando o pensamento. Não podia se dar ao luxo de empatia. Não agora. Estava muito próximo da perfeição algorÃtmica.
O sistema emitiu um alerta. Outra tentativa de invasão. Mais sofisticada que as anteriores. Mais direcionada.
— Localizar origem, — comandou.
O sistema rastreou a tentativa através de múltiplas camadas de proxies e servidores fantasmas. Finalmente identificou: o mesmo endereço IP. Carla Vasconcellos. Persistente. Inteligente. Perigosa.
João sorriu. Havia algo estimulante em ter um oponente à altura. Alguém que entendia o jogo. Alguém que representava um desafio real.
— Iniciar contato? — sugeriu o sistema.
João hesitou. Era contra os protocolos. Era arriscado. Mas… era tentador.
— Sim, — decidiu finalmente. Vamos de mensagem simples. Provocativa.
Digitou rapidamente: “Impressionante persistência, Dra. Vasconcellos. mas ainda está apenas arranhando a superfÃcie. Quer ver o que existe nas profundezas?â€
Enviou antes que pudesse reconsiderar. Uma violação de segurança. Um risco desnecessário. Uma indulgência perigosa. Mas gostosa, admitia em seu Ãntimo.
A resposta chegou quase imediatamente: “Mostre-me, Architect. Ou melhor, João Elias. Vamos ver quem realmente entende o abismo digitalâ€.
João sentiu o sangue gelar. Ela sabia seu nome. Sabia sua identidade real. A máscara digital tinha sido penetrada.
Pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo que havia esquecido: medo.
ClÃnica Psiquiátrica Campos, 09:15 da manhã
Dr. Renato Campos revisava suas anotações antes da primeira consulta do dia. Amanda Torres, ex-atleta de vôlei. Progredindo exatamente como previsto. O aumento da medicação estava produzindo os efeitos desejados: maior instabilidade emocional, pensamentos mais fragmentados, ideação suicida mais frequente.
Perfeito.
Seu telefone seguro vibrou. Mensagem de Salles: “Mudança de planos. Clara Reis agora. Preparar perfil psicológico completo. Urgenteâ€.
Renato franziu a testa. Clara Reis não estava em sua lista de pacientes. Não tinha acesso direto a ela. Teria que trabalhar com dados secundários, análises de comportamento público, padrões de interação social observáveis. Menos preciso. Menos eficiente.
— Entendido, mas qual o prazo?
— Hoje. Sem falhas.
Renato guardou o telefone, irritado com a urgência. Salles não entendia a delicadeza do processo. A precisão necessária. A arte por trás da ciência de quebrar mentes humanas.
Abriu seu laptop e começou a pesquisar Clara Reis. Redes sociais, artigos acadêmicos, entrevistas, vÃdeos de palestras. Construindo um perfil psicológico à distância. Identificando padrões de fala, micro expressões, indicadores não-verbais de estados emocionais.
Era fascinante, realmente. Como as pessoas revelavam tanto sem perceber. Como expunham suas vulnerabilidades mais profundas através de pequenos gestos, escolhas linguÃsticas, reações sutis a estÃmulos especÃficos.
A secretária anunciou pelo interfone: Dr. Campos, sua paciente chegou.
— Mande-a entrar, respondeu, fechando o laptop.
Amanda Torres entrou no consultório como uma sombra de si mesma. Mais magra que na semana anterior. Olheiras mais profundas. Movimentos mais lentos, mais pesados. Os efeitos colaterais da medicação, amplificados pela dosagem excessiva que havia prescrito.
— Como está se sentindo hoje, Amanda? — perguntou, com a voz calibrada para transmitir preocupação profissional.
— Pior, — respondeu ela, a voz quase inaudÃvel. — não consigo dormir. Quando durmo, tenho pesadelos. Sempre com o vÃdeo. Sempre com pessoas me olhando, me julgando.
— Entendo, — disse Renato, fazendo anotações. — os remédios não estão ajudando?
— Estão me deixando estranha, doutor. Como se eu estivesse observando minha vida de fora. Como se não fosse real, isso é normal?
— Despersonalização, querida. — anotou Renato. — Efeito esperado. Aumenta susceptibilidade a sugestões externas.
— O que disse, doutor?
— Disse que isso é normal, — corrigiu suavemente. — faz parte do processo terapêutico. Precisamos desconstruir antes, para poder reconstruir.
A sessão continuou por cinquenta minutos. Renato guiando cuidadosamente Amanda por um labirinto emocional que ele mesmo havia desenhado. Fazendo perguntas que sabia serem gatilhos. Oferecendo falsas esperanças apenas para sutilmente miná-las. Reforçando sua sensação de isolamento, de incompreensão, de desespero.
Era um trabalho meticuloso. CientÃfico. ArtÃstico.
Quando Amanda saiu, parecia ainda mais derrotada que quando entrou. Exatamente como planejado.
Renato voltou ao seu laptop. Continuou construindo o perfil de Clara Reis. Identificou pontos de pressão potenciais. Vulnerabilidades exploráveis. Gatilhos emocionais especÃficos.
Enviou o relatório para Salles e João Elias. Trinta páginas detalhando como destruir metodicamente uma mulher que nunca havia conhecido pessoalmente. Uma obra-prima de psicologia predatória.
Seu telefone vibrou novamente. Não era Salles desta vez. Era outro número. Um que não reconhecia.
A mensagem era curta: “Sabemos o que você está fazendo, Dr. Campos. E temos provasâ€.
Renato sentiu um arrepio que percorreu a espinha como uma ameaça silenciosa a cutucar sua coragem. Blefe, pensou imediatamente. Tentativa de intimidação. Ninguém poderia saber. O sistema era perfeito. Impenetrável.
Ainda assim, suas mãos tremiam levemente quando respondeu: “Número erradoâ€.
A resposta chegou instantaneamente: “Amanda Torres. Marina Costa. LetÃcia Santos. Sabrina Melo. Júlia Sampaio. Quer que continueâ€?
Renato sentiu o sangue gelar. Todos os nomes. Todas as suas pacientes. Todas as vÃtimas do Projeto Cassandra.
Alguém sabia. Alguém tinha penetrado o cÃrculo. Alguém tinha provas.
Pela primeira vez, o arquiteto do sofrimento sentiu o gosto do próprio medo.