Eles saíram para o corredor e foram até a parede ao fundo, onde Kantor tocou em um criptograma e uma parte da parede deslizou, expondo um corredor, pelo qual seguiram.
Pedro perguntou:
— Parece que estamos adentrando no monte? Há mais destes corredores secretos?
— Não, este é o único, pois ao fim dele está algo precioso demais para ficar exposto.
Cris perguntou:
— Este lugar parece ser muito grande. O que havia aqui?
— Em sua época de ouro, há quinze mil anos, era o segundo maior templo do império, suplantado apenas pelo Grande Templo de Poseidia. Aqui viviam mais de dez mil pessoas, a maioria satibars, aprendizes de sacerdotes e jovens nobres que vinham aprender as artes das lutas e controle mental. O ensino era de alto nível, com alguns dos melhores mestres do império.
— E o que aconteceu? — perguntou Carlos. — Não pagaram o aluguel e tiveram de fechar?
— Este rochedo era uma montanha, que, na catástrofe durante o afundamento, desabou sobre o templo, soterrando-o. Quando da submersão, há mil e quinhentos anos, tremores o descobriram. Eu e o pai de Daniel o encontramos e decidimos viver aqui. A maior parte do templo ainda está soterrada, desobstrui apenas as necessárias para habitar. No início, o pai de Daniel me ajudou, principalmente nos aposentos que deixamos e neste corredor, mas, depois que ele se foi, trabalhei sozinho.— Pretende limpar o resto? — perguntou Pedro.
Kantor respondeu:
— Creio que não. Vou deixar os mortos em paz.
Ana arregalou os olhos:
— Mortos? Que mortos?
— Quando o templo foi soterrado, todos seus ocupantes também o foram, e muitos ainda estão sepultados atrás destas paredes. Dos restos mortais que encontrei durante a desobstrução, fiz o sepultamento em uma das câmaras vazias — respondeu Kantor.
— Então tem gente morta aqui? — perguntou Ana num fio de voz.
— Mais do que você imagina, filha — respondeu Kantor parando e apontando-lhes uma câmara à frente.
Emergiram em uma espécie de gruta espaçosa, cujas altas paredes formavam uma abóbada. Era toda revestida de cristais reluzentes.
No alto, ocupando praticamente todo o teto, estava encravado o maior cristal que eles já haviam visto.
— Aquele é um dos grandes cristais Poseidones. Seu irmão gêmeo está em um templo em Poseidia. Foi este cristal que possibilitou que eu os trouxesse até aqui e fizesse tudo que lhes disse.
— Isto aqui é uma cripta!
A observação de Daniel fez com que todos tirassem os olhos do teto e olhassem em volta.
Tablados de cristal com tampas transparentes espalhavam-se pelo recinto e, dentro deles eles, estavam corpos, centenas deles.
Os jovens, curiosos, caminharam entre os túmulos.
— Estas pessoas estão mesmo mortas? — perguntou Ana enquanto examinava o vestido ricamente adornado de uma mulher. — Parece que estão dormindo.
— Isto é mais que uma cripta — falou Kantor. — É um portal para energias extradimensionais. Estes corpos pertenceram a pessoas que, de uma forma ou de outra, contribuíram para o progresso da humanidade, e assim receberam o mérito de terem seus corpos preservados. Estes ainda contribuem para o bem comum, pois seus genes, que em vida possuíam a capacidade de manipular primanergia em sua forma mais pura, após o processo que chamamos morte, adquiram a capacidade de captar energias oriundas de outros planos existenciais mais elevados, que são colhidos pelos cristais das paredes e aspergidos em nossa realidade pelo grande cristal acima de nós.
— E para que serve isso? — perguntou Carlos.
— Como diziam em sua época — respondeu Kantor —, para “melhorar o astral”. Se vocês acham que o mundo é um lugar sombrio, imaginem como seria sem a energia benéfica emitida daqui e de outros lugares semelhantes a este.
Cris aspirou fundo:
— Realmente, o ambiente aqui é ótimo, relaxante.
Daniel encarou Kantor:
— Já… sonhei com este lugar. — Havia uma nota de angústia em sua voz, e seus olhos procuraram por Cris.
O velho aproximou-se e passou o braço sobre o ombro dele:
— Nada está definido quando se trata de visões e sonhos, Daniel. Lembra-se do que eu disse sobre o futuro? Não perturbe seu espírito com isso.
Sim, ele se lembrava. Probabilidades, criadas por nosso livre arbítrio. E quais ele havia criado quando recusou seu papel?
Um chamado de Kantor o tirou de seus pensamentos. Ele parou ao lado de um dos túmulos reluzentes.
— Pai.
Daniel debruçou-se sobre a tampa transparente, contemplando o rosto daquele que fora não só seu progenitor, mas seu amigo, seu modelo, aquilo que queria ser quando crescesse.
Olhou com carinho aquele rosto amado. Percebeu as rugas e os cabelos grisalhos que não existiam naquele dia distante, quando abraçara seu pai pela última vez.
Quanto sofrimento, quantas preocupações passara aquele homem até o dia de sua morte?
Mirna aproximou-se e postou-se ao lado de Daniel:
— Tata? — perguntou ela suavemente.
— Sim — respondeu Daniel —, meu Tata.
Ela passou as mãos pequenas pelo rosto dele, enxugando suas lágrimas, e o abraçou. Daniel sentiu-se reconfortado.
Cris aproximou-se e o abraçou. Ele agarrou-se fortemente a ela, como se quisesse que ela nunca mais saísse de perto. “Nada está definido e não vai acontecer!”, disse para si mesmo.
Kantor colocou as mãos em seus ombros, olhou-o profundamente nos olhos vermelhos e marejados e disse:
— Seu pai era um homem forte, determinado e, acima de tudo, bom. Ele mereceu estar aqui, e não só por ser um Agar. Saiba que ele procurou por você até seu último suspiro. Fizemos expedições procurando-os, até onde era possível, mas o caminho para o sul estava bloqueado pelas geleiras. Era impossível para qualquer ser humano sobreviver lá, mesmo para mim, que não tinha meus poderes plenos como tenho hoje. Mas seu amor lhe dizia, no fundo do coração, que você estava vivo. Aquilo que descobri sobre você, as profecias, foram depois disso. Contei-lhe sobre elas porque era meu dever, mas o principal motivo de trazê-lo aqui foi pela promessa que fiz a este homem, o melhor amigo que tive.
Daniel balançou a cabeça.
— Como ele morreu? — perguntou.
— Salvando minha vida — respondeu o velho. — Lhe contarei esta história outra hora. O que posso lhe dizer agora é que ele morreu em meus braços, me pedindo que o encontrasse, Daniel. E aqui está você. Consegui cumprir a promessa que fiz a meu amigo!
Daniel viu a emoção e as lágrimas nos olhos do velho e não pode deixar de lhe sorrir com gratidão.
— E minha mãe? — perguntou ele com voz embargada.
— Conheci seu pai no dia que ele a estava sepultando, logo após a invasão. Mas também falaremos disso depois.
— E nossos pais e parentes? — perguntou Cris. — Você os conheceu?
— Não encontrei sua mãe, nem a família de Pedro, nem a de Ana, mas conheci seu irmão, Carlos.
Carlos ficou alegremente surpreso:
— Sério?! E o que aconteceu com ele?
— Seu irmão se tornou um grande líder. Reuniu os sobreviventes, montou um núcleo para assistência na mesma área onde vocês moravam. Com sua orientação e conhecimentos, ajudou na criação de pomares e hortas, socorro médico, distribuição de alimentos. Não confrontava os atlantes, pois era sábio o suficiente para perceber que não tinham chances contra eles, e, quando também percebeu que os atlantes não se importavam com o que sobrara dos terrestres, sabia que só a reorganização da sociedade podia garantir a sobrevivência. Simpatizei com seu irmão e suas atividades, e sempre que podia o ajudava de forma discreta, pois na época eu já era observado pelo império e tachado de “amigo de terráqueos”.
Alguns anos depois da morte do pai de Daniel, começaram a chegar aqui na Terra de Agóz, levas de terráqueos vindos do norte do planeta, pressionados por fome, doenças e pelos mutantes. Vieram em longas migrações, ignoradas pelos atlantes, que estavam mais preocupados em construir sua própria infraestrutura e se estabeleceram aqui no sul. Foi quando começaram os atritos com a população local, que criara seus próprios meios de sobrevivência e que foram ameaçados pelos recém-chegados. No rastro da briga por recursos vieram também a intolerância religiosa, o racismo, o preconceito em todas as suas formas. Uma guerra entre terráqueos era eminente e isto, por fim, incomodou os atlantes que, como deuses, ignoravam o que os mortais faziam. Mas Poseidia queria assentar fazendeiros atlantes nesta rica região e as rixas terráqueas impediam isto. O império pensava em fazer um novo expurgo, um novo genocídio. Usando do que restava de minha influência, consegui um tempo e levei o problema aos dois lados da disputa. Pelos homens do norte fui ignorado e hostilizado, mas com Jonas, seu irmão foi diferente. Nesta época ele já era um homem maduro e bastante sábio. Sabia que não haveria vencedores. Então me chamou e perguntou: “O que há a leste de Atlântida?”. “Uma cordilheira de altas montanhas”, respondi. “E depois delas?”. “A Grande barreira”. “E além?”. Respondi-lhe que não sabia, que alguns exploradores solitários, os que haviam voltado, disseram haver uma terra selvagem, milhas e milhas de nada. “Só há o desconhecido”, disse-lhe. Ele pensou um pouco, sorriu e respondeu-me: “Em suma, a oportunidade! Você me conseguiria navios Kantor, muitos navios?” Soube na hora o que ele queria e não procurei dissuadi-lo. Ficar ali era a morte certa, seguir em direção ao desconhecido era “talvez” a morte. Convenci o imperador que o custo dos navios era bem menor do que uma campanha exterminadora. O império cedeu cinco navios gigantescos. Dez mil pessoas embarcaram, homens, mulheres, crianças. Brancos, negros, indígenas, orientais, todos aqueles que vislumbraram um futuro melhor no desconhecido do além barreira. Os navios foram monitorados até contornarem o cone sul de Atlântida, depois, desapareceram. Nunca mais os vi, nem tive notícias, mas sei que se salvaram de um destino cruel. O império não fez o expurgo, mas escravizou os terráqueos que aqui ficaram, para trabalharem em suas fazendas e minas.
O grupo calou-se. Carlos estava emocionado:
— Puxa, quem diria, meu irmãozinho!
Pedro, que bebia avidamente cada informação, perguntou:
— Você citou uma “Grande Barreira”. O que é isso?
— Para fazer a emersão de Poseidia, os atlantes alteraram o eixo planetário e isto ocasionou anomalias eletromagnéticas no planeta todo. Mas a maior concentração delas ficou posicionada ao longo da linha que vocês chamavam Meridiano de Greenwich. Do lado leste desta linha nenhum equipamento atlante funciona e até a primanergia fluí de forma diferente. Nem satélites ou naves conseguem visualizar o que há lá. Algumas expedições a pé, feitas logo após a emersão, apuraram que só havia terra arrasada e poucos terráqueos. Pesquisas mostram que, de tempos em tempos, a barreira recua um pouco. Então os atlantes decidiram deixar que se extinga sozinha e se concentraram em colonizar, por enquanto, este lado de cá. Mas o que eles não sabem, é que a barreira não foi formada por causas naturais e sim por forças místicas, que visaram proteger ao menos, parte da civilização terráquea.
— Mas você não disse que só encontraram terra arrasada? — perguntou Cris.
— Na época na emersão sim. Mas este tempo sem intervenção atlante permitiu que os terráqueos se reorganizassem. Há reinos e sociedades lá, vivendo hoje algo similar a era medieval de vocês.
— Devíamos ir para lá — disse Daniel.
Kantor deu de ombros:
— Apesar de ser o último bastião da civilização terráquea, não quer dizer que seja um paraíso. Há guerras, fome, doenças, mas, — o velho os olhou com um meio sorriso — quem sabe o que o destino nos reserva.
Daniel balançou a mão:
— Estou fora deste negócio de destino. Melhor ficar por aqui mesmo.
— Kantor, — chamou Ana — sobre Jonas, por acaso ele tinha uma corrente de ouro?
— Com um pingente em forma de coração, com seu rosto estampado nele? Sim. Em todos os momentos em que se recolhia em pensamento, que precisava tomar alguma decisão ele segurava firmemente o pingente na palma da mão. Inclusive, a última imagem que tenho dele é em pé, no convés de popa do navio, segurando o pingente. Saiba minha criança, que ele nunca se casou, nunca teve filhos. Confidenciou-me uma vez que você era seu único e eterno amor e que esperaria por você pela eternidade.
Lágrimas escorreram pelo rosto de Ana. Cris passou o braço por seus ombros consolando-a.
— Obrigada — Ana agradeceu.
— Agora precisamos ir — disse Kantor. — Preciso fazer a ruptura energética para que vocês possam dormir e se recuperarem.
Daniel lançou um olhar de despedida ao corpo do pai:
— Podemos voltar aqui outras vezes? — perguntou.
— Sim, mas não com frequência. Nossas vibrações perturbam o ambiente.
Fora da cripta, Kantor orientou-os:
— Vão até seus aposentos e coloquem roupas mais confortáveis, pois vocês vão dormir por um bom tempo.
Eles obedeceram. Se havia alguma dúvida em relação as intenções daquele homem, elas desapareceram depois da visita a cripta.
Atravessaram o pátio ainda fustigado pela chuva e penetraram no corredor que dava acesso aos seus quartos.
Carlos pôs a mão no ombro de Daniel:
— E aí cara? Como você está?
Daniel ficou agradecido pela preocupação do amigo, mas não tinha disposição para conversa:
— Agora não quero pensar em nada — respondeu com voz cansada. — Só quero esta “ruptura energética” e dormir, esquecer este inferno!
Pedro interveio:
— Concordo que você queira descansar, todos queremos, mas depois vai precisar pensar bastante sobre o que Kantor lhe disse. O que ele lhe revelou é muito sério, não pode ser descartado assim, de qualquer jeito.
Daniel encarou o primo:
— Não tenho nada a pensar sobre isto. Já está decidido. Não aceito e não vou tomar parte em nada disto. Não quero.
— Como não quer?
Todos se voltaram para Ana. Parada no corredor, o rosto vermelho, trêmula e com os punhos cerrados, ela parecia disposta a matar alguém.
— Como não? — repetiu ela. — Justo agora que o palco está pronto para o seu show? — a voz dela se tornou irônica. — Veja, até destruíram o mundo e assassinaram bilhões para servir de fundo a sua performance!
Carlos disparou:
— Pare de falar asneiras, garota! Tá delirando!
Ana explodiu:
— Cala a boca! — ela apontou o dedo para Daniel enquanto caminhava em direção a ele, os olhos inflamados de ódio. — Ele é o culpado pelo que aconteceu! Tudo destruído para que “ele” tivesse seu momento! Tudo! O mundo, nossas vidas, minha vida! Ouviram o que Kantor disse, era atrás deste desgraçado que ele estava atrás. Tanto faz se morrêssemos ou ficássemos congelados pra sempre, desde que o bonitão viesse assumir seu papel de salvador!
Daniel, diferentemente do que os outros esperavam, não reagia, matinha os olhos baixos e parecia carregar o mundo em suas costas.
Ana continuou:
— E ainda ele ganhou o direito de ver o corpo do pai! E eu? Por que não pude ver meus pais? Por quê?
Ante o olhar pasmo dos demais, ela atirou-se contra Daniel e começou a lhe esmurrar o peito, as lágrimas escorrendo em profusão pelo seu rosto:
— Desgraçado! Assassino! Você matou meus pais e meu irmão!
Daniel consternado, ficou imóvel, deixando que ela o agredisse. Cris adiantou-se e a segurou por trás:
— Ana, pare por favor! — pediu com lágrimas nos olhos, chocada com a reação da amiga
A garota virou-se bruscamente para Cris, agarrando-a pelos braços:
— Ele destruiu minha vida!
Depois se curvou sobre si mesma, abraçando o abdome:
— Ai, que dor!
Kantor passou entre eles, assustando-os. Ninguém o viu ou ouviu se aproximar.
Ele colocou o mesmo cristal que usara antes em seu quarto na testa da menina histérica. O corpo dela estremeceu e teria desabado se ele não a amparasse. Ela acalmou-se e passou a choramingar baixinho nos braços dele.
— Pobre criança, tanta força e tão pouco controle — disse ele penalizado.
— O que deu nela? – perguntou Carlos preocupado.
Kantor suspirou:
— Compromissos, expectativas e o medo de que não conseguir concretizá-los — respondeu enigmático e dirigindo-se para Cris. — Vamos, precisamos por este anjo para dormir.
Ele dirigiu umas palavras a Mirna em atlante. Ela olhou para Daniel, apertou sua mão e seguiu Kantor para dentro do quarto das meninas para ajudá-lo.
Os rapazes também se retiraram, sem ânimo para comentar nada.
Uma vez no quarto vestiram roupas que pareciam pijamas confortáveis e deitaram-se em suas camas, aguardando.
No outro quarto os soluços de Ana cessaram. Kantor apareceu seguido de Mirna:
— Pronto — disse ele sorrindo. — As meninas já foram para o reino dos sonhos, agora é a vez de vocês.
Ele tirou um cristal da bolsa que levava a cintura.
— Vai doer? – perguntou Carlos.
— Não vou mentir — respondeu o velho enquanto manipulava o cristal como um médico que prepara uma injeção, a pequena pedra oscilava em um brilho avermelhado. — Quando houver o desligamento e seus corpos reassumirem o controle, vocês sentirão em suas juntas, nervos e músculos a imobilização de anos. Haverá náuseas, arritmia cardíaca, alteração da pressão arterial e dor, muita dor — Kantor sorriu diante o olhar assustado dos rapazes. — Mas podemos evitar tudo isto com a colaboração de vocês.
Ele aproximou-se de Pedro:
— Meu filho, quero que feche os olhos e tire sua mente deste momento. Acalme seu interior, relaxe e concentre-se em qualquer coisa que o agrade. Quanto mais relaxado menos dor irá.
Pedro respirou fundo e de olhos fechados imaginou um campo verdejante, sob um céu azul de outono. No centro do campo uma figura avançava para ele. Vinha com um vestido branco, leve e esvoaçante. Os cabelos avermelhados balançavam ao ritmo do caminhar e tocavam de leve os lábios finos e perfeitos. Cris!
Quando Kantor correu a mão que segurava a pedra ao longo do corpo de Pedro, ele adormeceu imediatamente, com um sorriso. Kantor dirigiu-se a Carlos:
— Está pronto?
Carlos endireitou-se na cama:
— Quer dizer que é só eu pensar em algo que goste?
— Sim e poderá até sonhar com isso.
Carlos levantou a cabeça animado:
— Vários dias sonhando com algo que eu goste?!
Ele ajeitou-se novamente, fechou os olhos e passou a murmurar:
— Uma praia, sol, mar delicioso e garotas. Muitas garotas sem biq...— com um estremecimento ele adormeceu.
O velho acercou-se de Daniel:
— Pronto para o mundo dos sonhos, Hi Graab?
— Não me chame assim — respondeu Daniel com voz cansada.
— O fato de não aceitar, não muda o que de fato você é.
Daniel virou a cabeça para o lado, sem ânimo para discutir:
— Acho que sei o que sou.
— Você está tenso. Procure relaxar ou a dor será intensa.
O rapaz fechou os olhos e a sensibilidade aguçada de Kantor não captou nenhuma perturbação nele.
Quando o cristal passou sobre o corpo do rapaz, houve um estremecimento e ele gritou de dor.
A mão de Kantor, como que magnetizada, não se movia, parada sobre o coração de Daniel, a pedra queimava sua mão e vibrava loucamente.
— Pare Daniel! — gritou Kantor desesperado. — Liberte sua mente ou você morrera!
Daniel deu um pulo e agarrou a mão de Kantor que segurava a pedra. Os olhos dele faiscavam, entre o suor que corria copiosamente:
— Diga, — ciciou ele entre dentes — foi minha culpa? Eu matei todos, não foi?
A dor no braço de Kantor era insuportável, mas ele a esqueceu completamente, penalizado pela angústia e sofrimento contidos na voz do jovem:
— Não meu filho! Você não tem culpa sobre o que aconteceu, nem sobre o que pode vir a acontecer! A perda de pessoas amadas….— a voz de Kantor falhou —….tudo será como deve ser!
Uma mão pequena e morena pousou sobre o punho cerrado de Daniel. Era Mirna.
A menina pousou seu olhar sobre o rapaz e algo naquele toque, naqueles olhos fizeram o rapaz se acalmar e aos poucos adormecer.
Kantor largou o cristal no chão. A pedra parecia estar em fogo e vibrava de encontro ao piso. Mirna abaixou-se para pegá-la.
— Não Mirna! — gritou Kantor.
A pedra estava carregada com uma partícula infinitesimal de energia primal, que viera através de Daniel das mais distantes dimensões criacionistas. Se Kantor, com todo seu preparo mal conseguira suportá-la o que seria da garota? Provavelmente seria incinerada na sua frente!
Antes que ele pudesse fazer algo, Mirna pegou o cristal.
Ele parou de vibrar, perdeu seu brilho vermelho e esfriou-se. Mirna o estendeu para Kantor que, boquiaberto, olhou para a mão dela. Nenhuma marca!
Mirna abaixou-se e acariciou os cabelos de Daniel e depois olhou para o velho:
— Por que está chorando? — perguntou ela diante das lágrimas que desciam dos olhos dele.
— Eu? — balbuciou ele. — É porque eu sou tão pequeno, tão tolo e imperfeito e mesmo assim, Athos tem piedade de mim e quando acho que fracassei ele me manda um sinal, um alento.
Mirna voltou-se novamente para o rapaz adormecido:
— Espero que Athos tenha piedade de Daniel também. O fardo que ele tem que carregar….
— Athos não desampara ninguém e como eu disse sempre nos manda um alento. Você, Mirna, é o alento de Daniel.
Ela mirou-o com seus grandes olhos negros e inocentes:
— Eu? Como posso? Sou apenas uma serva? E ele…. ele é Hi Graab.
—Até os grandes precisam de apoio. Não é assim entre você e sua princesa?
— Sim — respondeu ela em um fio de voz.
Kantor perguntou-lhe docemente:
— Você deseja voltar para junto dela, Mirna?
Ela olhou enternecida para o jovem adormecido:
— Nossos destinos se cruzaram por vontade de Athos. Vou ficar ao lado dele até que deus decida que é hora de voltar para Rehna.
Kantor sorriu-lhe e abraçou-a:
— Muito bem. Agora vamos descansar também, pois precisaremos de toda nossa energia para os dias que virão.
— Posso dormir aqui com ele?
O velho assentiu.
Quando voltou com um cobertor, ela já havia se enrodilhado como um gatinho ao lado de Daniel e dormia profundamente.
Kantor cobriu a ambos e saiu do quarto transbordando de felicidade.
Ele encontrara outro portal!