Carlos estirava-se sobre uma das três camas do quarto enquanto Pedro examinava cuidadosamente o aposento, e Daniel andava de um lado para o outro.
— Quem é esse Kantor? Quem??
— Calma, cara! — pediu Carlos. — Logo saberemos.
— Tem algo nele que me irrita. Aquela calma e aquele sorrisinho irônico me deixam doido! E tem mais, acho que o conheço, mas não me lembro de onde. E isso só me deixa mais com o pé atrás.
Carlos apoiou-se em um cotovelo:
— Por quê?
Daniel o encarou:
— O fato dele saber quem somos e estar nos esperando não é suficiente?
Pedro, que examinava um botão com um símbolo, disse:
— Concordo com Cris. Ele parece confiável.
Daniel balançou a cabeça:
— Você foi coroinha, Pedro. Qualquer um com uma batina lhe parece confiável.
— Aquilo não é uma bat…. — Pedro calou-se quando apertou o botão. Um chiado se fez ouvir, e uma parte da parede deslizou, expondo outro ambiente.
— O que é isso? — perguntou Daniel.
Pedro espiou:
— É um banheiro!
— Banho! — comemorou Carlos.
— Primeiro eu! — E, antes que alguém questionasse, Daniel entrou, e a porta se fechou atrás dele.
O banheiro era relativamente grande e, como tudo ali, era feito de pedra, mas de uma tonalidade mais clara. Havia uma latrina, toalhas feitas de algum tecido grosso, mas macias, e um lavatório sobre o qual havia um espelho.
Daniel olhou-se nele.
Seu rosto estava abatido, arranhado e, embaixo dos olhos, havia grandes olheiras. “Que lixo!”, pensou. Afastou-se do espelho.
Atrás dele havia um box. Olhou para cima e não viu nenhum chuveiro. Quando entrou, uma cascata de água agradavelmente quente caiu sobre ele.
Daniel recuou e a água parou. Ao olhar novamente para cima reparou em dezenas de pequenos furos nas três paredes do box. “Olha só, banho automático! Legal, mas podia ter esperado eu tirar a roupa!” Nisto, olhou para os trapos que vestia e sorriu, pensando: “Que roupa?”
Livrou-se delas e entrou no box. A água caiu como uma benção sobre seu corpo cansado.
Sobre um aparador havia um frasco. Daniel cheirou o conteúdo. Sabonete ou xampu? Ou ambos?
Sem saber por que, o perfume lhe trouxe à memória a imagem da garota de olhos verdes.
Fechou os olhos e pensou em Cris. O perfume dela, leve, floral, invadiu sua mente. Não o perfume que se compra em qualquer lugar, mas sim aquele cheiro único que cada pessoa possui. O de Cris era tão conhecido, arraigado em seu ser.
Tentou se lembrar do perfume de outras garotas que conheceu e não conseguiu.
Ao pensar na garota de olhos verdes, um perfume cítrico, doce, lembrando fruta madura, pareceu tomar conta do ambiente e chegou a lhe dar água na boca. Lembrava o perfume do líquido que havia no frasco em sua mão.
Como podia ter a lembrança do perfume de alguém que nunca conhecera?
Ele balançou a cabeça com veemência.
Todas aquelas dúvidas o estavam irritando. Nunca em sua vida tivera tantas perguntas, aquilo o fazia se sentir acuado.
E aquelas visões? Sempre achara isso uma grande besteira, mas no quarto ao lado havia uma prova viva de que talvez não fosse assim, e isso lhe trazia mais dúvidas ainda.
Kantor provavelmente tinha as respostas, e Daniel conseguiria todas, por bem ou por mal.
Um calafrio percorreu seu corpo, apesar da água cálida, e pensou se desejava mesmo estas respostas.
No outro quarto, as garotas já haviam descoberto o banheiro e o armário com roupas ao seu dispor graças a Mirna, que parecia acostumada com tal ambiente.
Kantor realmente estava à espera deles. Todas as roupas tinham a numeração de Cris e de Ana.
Mas Mirna não era esperada, e Cris tentava improvisar algo para ela.
Com tesoura, linhas e agulhas que encontrara em uma cômoda, ajustava uma das roupas destinadas a Ana. Mirna era muito miúda, então Cris tinha que cortar e costurar muito do tecido grosso, cor cáqui.
“Parece roupa para andar na selva”, pensou. “Bem, nós estamos na selva”.
Com o canto dos olhos, viu a pequena ex-escrava sentada na beira da cama, observando-a.
Há pouco, a coitada fora expulsa do banheiro por Ana, por querer ajudá-la a se banhar. Cris mostrou a roupa que ajustava:
— Não vai ficar deslumbrante, mas vai servir até Kantor providenciar-lhe roupas, Mirna.
A garota sorriu. Um sorriso franco e encantador.
“Tão encantador a ponto de atrair Daniel? Não Cris! Não se deixe levar para esse lado!”
— Cadê a toalha! — O grito de Ana a tirou de sua luta íntima.
— Tome, Mirna, leve para Ana e aproveite para se banhar também.
Cris entregou-lhe duas toalhas e a menina se dirigiu ao banheiro.
Um burburinho veio lá de dentro:
— Pode deixar, garota! Eu sei me enxugar sozinha!
Ana saiu furiosa do banheiro, enrolada na toalha:
— Que garota esquisita, eu hein!
Cris defendeu Mirna:
— Ela só é prestativa, Ana.
— Pode ser, mas eu não gosto que toquem em mim!
Ela chegou junto ao grande espelho na parede e deixou a toalha escorregar para o chão. Pareceu satisfeita com o que viu.
— Ninguém põe a mão no meu corpo! A menos que eu deixe, e até hoje não encontrei ninguém digno disto! — Um leve rubor tingiu suas faces. Cris percebeu e brincou:
— Ninguém, é?
Os olhos de Ana encontraram os de Cris através do espelho. Havia um ar de culpa neles. Ela enrolou-se na toalha e se sentou ao lado da amiga.
— Uma vez… — segredou — quase. Mas ainda bem que recuperei o bom senso a tempo e… Cris ficou esperando-a continuar.
— Preciso te contar uma coisa, Cris….
— Sim? — perguntou a outra, solícita.
Ana torceu as mãos, olhou para os lados, suspirou e, depois de um minuto de silêncio, perguntou sem olhar para a amiga:
— Lembra quando teve aquela feira mística no colégio?
— Lembro. Aquela que você organizou e que seu pai bancou — respondeu Cris, percebendo que não era aquilo que Ana queria falar, mas respeitou a vontade da amiga de mudar de assunto.
Ana finalmente olhou para Cris. Parecia novamente mais segura de si:
— Uma cigana leu a minha mão e disse que há um rei no meu futuro.
— Esse rei não terá sido um de seus namorados? O Júnior, por exemplo. É tão rico que poderia ser um rei.
— Um príncipe, no máximo — corrigiu Ana. — Afinal, quem é rico é o pai dele, e não ele. Mas ela disse “rei”, não príncipe.
Os olhos azuis dela brilharam mais intensamente:
— A cigana disse que eu só me entregaria a este rei, o meu verdadeiro amor. E você sabe que sou virgem e que, com estes namoradinhos, foram só beijos e abraços. Eu nunca permiti nada além disso.
— E esse lance com o Jonas, o irmão do Carlos?
— Ah, eu gosto dele. É legal, diferente dos playboyzinhos do colégio, mas acho que não vai rolar com ele não.
— Por quê?
— Porque somos amigos demais. Na verdade, nem sei por que topei namorar com ele.
— Você não ficou com ele só para irritar o Carlos, não é?
— Tô nem aí pro Carlos! A verdade é que só vou me entregar ao “meu rei”! — ela falou de forma inflamada. Depois baixou os olhos. — Acha que sou uma boba por pensar assim?
Cris sorriu diante da falta de jeito dela:
— Você é turrona, brava, mas, aí dentro, tem o coração de uma menina romântica. Não, não acho que seja boba, muito pelo contrário. Você decidiu que vai esperar pelo grande amor da sua vida, e foi uma escolha só sua, sem pressão de ninguém. Só sua! — frisou Cris. — Isso te faz tudo: forte, decidida, dona de si. Tudo, menos boba. E, sinceramente, gostaria de ser como você.
Uma imensa tristeza estampou o rosto de Cris.
Ana segurou a mão dela:
— Você é muito mais forte do que eu, e sabe por quê? Porque é boa, tem o coração de ouro. Tenho muita sorte em ter uma amiga como você.
As duas se abraçaram.
Ao se separarem, Ana secou os olhos.
— Ai, não me faça chorar, ou vai inchar minhas pálpebras e não vou ter como disfarçar, pois minha maquiagem se perdeu com a mochila.
Cris riu.
Ana se virou para as roupas sobre a cama:
— Credo, que coisas horríveis!
— São horrorosas, mas são práticas e estão limpas.
Ana segurou o sutiã de tecido grosso e alças largas:
— Temos que voltar logo para o nosso mundo. Não posso viver em um lugar com uma moda sofrível como esta.
Neste momento, Mirna saiu do banho e Cris estendeu-lhe as roupas que costurara.
Quando ela se livrou da toalha para se vestir, Cris e Ana soltaram um grito consternado.
O corpo da menina estava coberto de arranhões e hematomas.
Quando olhou para si mesma, Mirna chorou copiosamente, como se lembrasse o que significava cada uma daquelas marcas.
Cris a abraçou forte.
— Não chore, meu amor! Você está entre amigos agora! Ninguém mais vai maltratá-la!
Ana a puxou pela mão e a fez sentar-se na beirada da cama e, pegando uma escova de cabelo, disse:
— Vem cá que vou pentear seus cabelos.
E passou a escovar de forma suave os longos cabelos negros. A menina se acalmou e parou de chorar.
Cris observou-as satisfeita. Ana sabia ser carinhosa quando queria.
Pobre Mirna! As coisas horríveis que deve ter passado. Teria sido abusada? Precisaria conversar com Kantor sobre isso.
Pegou-se pensando carinhosamente na desafortunada menina e qualquer animosidade que sentira foi embora, substituída por preocupação pelo bem-estar dela.
O que não deixaria dali para frente era a vigilância em Daniel. Não confiava nele e não permitiria que ela magoasse a menina de jeito nenhum.
— Ih, Cris! As pontas do cabelo dela estão muito embaraçadas. Acho melhor cortar.
Cris viu que, de fato, não teria como desembaraçar. Explicou através de gestos a Mirna, perguntando-lhe se poderiam cortar seu cabelo:
— Vamos deixar na altura do ombro, igual ao meu e o de Ana, tudo bem?
A menina anuiu. Ana apoderou-se da tesoura: — Deixa comigo, que disso eu entendo!
Daniel bateu outra vez na porta.
— Pô! Mas que demora! — E, virando-se para os outros rapazes, questionou: — Por que as mulheres demoram tanto para se arrumar?
Cris abriu a porta:
— Onde é o incêndio? — perguntou.
— No meu estômago — respondeu Carlos. — Vamos logo, que estou morrendo de fome!
— Grande novidade. — Riu ela e, observando-os, comentou: — Vejo que Kantor não tem muita imaginação para roupas.
As roupas deles eram idênticas nas cores e estilo. Calças, camisas e coletes em tons cáqui variados, e as botas de couro marrom.
— Apesar disso, são confortáveis — Pedro comentou.
— São horríveis, isto sim! — resmungou Ana, saindo do quarto.
Carlos coçou o queixo:
— Pode ser, mas você as preenche muito bem.
Ana o encarou:
— Eu é que vou preencher sua cara de pancada!
— Onde está Mirna? — perguntou Daniel.
A menina saiu do quarto e o abraçou. Depois recuou e mostrou os cabelos para Daniel, sorrindo como se procurasse a aprovação dele.
Os cabelos estavam cortados na altura dos ombros e escovados com as pontas para dentro. A franja tinha sido repicada e haviam lhe feito uma pequena trança que descia pela lateral da cabeça e estava presa por uma fivela em forma de coração.
A expressão de Daniel escureceu:
— O que vocês fizeram no cabelo dela?
— Estava muito embaraçado, então cortamos e ajeitamos. — explicou Cris.
— Ficou bonito — observou Carlos, e Pedro concordou.
— Com ordem de quem fizeram isso? — perguntou Daniel, carrancudo.
— Como assim, “com ordem de quem”? — rebateu Cris, intrigada. Daniel a olhou firme.
— É o seguinte: de agora em diante, tudo o que diz respeito a ela, eu quero ser informado antes.
Ana riu de forma cáustica:
— O que foi que eu disse? Sultão! Não quer que façam nada com sua escrava sem sua ordem.
Daniel inspirou de forma ameaçadora.
— Por favor, vocês não vão começar de novo, não é? — pediu Cris.
Mirna tocou no braço de Daniel e quando ele olhou para ela, notou que a menina parecia triste.
Disse algo em sua língua enquanto tocava o cabelo.
O rapaz, parecendo entendê-la, relaxou a expressão:
— Não, querida, eu gostei. Ficou lindo! — E sorriu-lhe.
Ela sorriu de volta, e Daniel pegou sua mão:
— Vamos comer. — E passando por Ana, dirigiu-lhe um olhar duro, que ela retribuiu na mesma medida, e ainda verbalizou:
— Babaca!
Atravessaram correndo o pátio, por causa da chuva que
parecia não dar trégua, e bateram à porta dos aposentos de Kantor.
— Entrem.
Um cheiro delicioso os recebeu.
— Sentem-se, por favor — convidou Kantor.
Ele apontou para uma mesa retangular baixa, com almofadas à sua volta, onde se sentaram.
Kantor passou distribuindo uma sopa espessa em seus pratos.
— Espero que gostem — disse ele.
— Gostaremos sim, senhor Kantor, gostaremos — respondeu Carlos com um brilho nos olhos.
Realmente estava deliciosa. Repetiram três vezes antes de porem os pratos de lado, totalmente satisfeitos.
Apenas Ana continuava a comer e pediu mais um prato, o quinto.
— Credo, Ana! — censurou Cris — Que coisa feia!
— Estou com fome! — retorquiu ela.
— Você acha que algum rei se interessaria por uma garota tão esganada? — perguntou Cris.
— Rei? Que rei? — Quis saber Carlos.
Ana, comendo distraída, respondeu:
— O rei que a cigana… — Ela calou-se, percebendo que falara demais. — Não interessa!
Mas Carlos, com sua costumeira perspicácia, entendeu.
— Ah, então uma cigana viu um rei no seu futuro?
A garota, comendo, não respondeu. Carlos a mirou por um tempo.
— Meu irmão não é um rei — disse ele. Ana continuou ignorando-o. — Então ele deve ser o bobo da corte, não é?
Ana por fim o encarou, os olhos azuis faiscando:
— Meu relacionamento com seu irmão não é da sua conta.
— Ah, é sim — rebateu ele. — Ele é meu irmão mais novo, então tenho que protegê-lo.
— Ha-ha, — debochou ela. — Agora vai pagar de irmão preocupado?
— Parem com isso! — ralhou Pedro. — Discutindo na frente do nosso anfitrião! E por um assunto tão besta quanto adivinhações e leitura do futuro!
Ana se doeu:
— Besta para você que é uma besta! — atacou.
Pedro ficou vermelho e procurou se socorrer em Kantor:
— Hã… O que o senhor acha disto? O futuro está escrito?
O velho, que até então estivera calado, apena observando e parecendo se divertir com a discussão dos jovens, respondeu:
— Não diria que está escrito, mas rascunhado. O futuro é um amontoado de probabilidades.
Daniel o olhou com o canto dos olhos, ressabiado. Era aquilo que a Mirna de suas visões havia lhe dito.
— E essas probabilidades — continuou Kantor — se tornam realidade em função das ações que tomamos. Ou, ainda, com essas mesmas ações, criamos mais e mais probabilidades, tornando o futuro algo muito incerto. Só o que há de sólido é que tudo tem um ponto de partida e um de chegada, mas o percurso e o tempo de realização somos nós quem definimos.
— Tá — interveio Ana —, resumindo esse blá-blá-blá, tem um rei no meu futuro ou não?
Cris a cutucou, mas Kantor não pareceu ofendido com a grosseria dela:
— Alguns seres têm o dom da profecia, de enxergar algo entre os caminhos tortuosos do futuro. Uma cigana, você disse? É um dom muito comum a este povo. Então, é provável que haja mesmo um rei em seu futuro.
Ana olhou vitoriosa para Pedro e Carlos.
— Mas — disse ainda o velho — tome muito cuidado, minha filha, de não fixar demais os olhos no amanhã e perder as oportunidades que surgem hoje. Entre elas pode estar aquilo que deseja.
Ana franziu a testa:
— Não entendi.
Kantor sorriu:
— Um dia você entenderá.
Daniel deu um murro na mesa, fazendo todos, menos Kantor, darem um pulo assustados.
— Dá para parar com essa palhaçada e ir direto ao que interessa? — vociferou ele para o velho. — Já nos limpamos, já comemos. O tempo das respostas chegou!
Kantor fitou o rapaz sentado do outro lado da mesa.
Daniel estava com o tronco ereto, as mãos firmemente apoiadas nos joelhos, o olhar decidido. A marca em sua testa davalhe um ar feroz, mas, apesar disso, pensou Kantor, aparentemente era apenas um rapaz.
“Ignore o efêmero, detenha-se no eterno”.
O velho concentrou-se e olhou além do corpo jovem, e tremeu.
Uma aura de destruição envolvia Daniel como um manto negro. A espada em sua testa pareceu ganhar vida e querer saltar dali e partir o universo em pedaços.
Kantor fechou os olhos. “E queremos aproximá-lo de outro portal?”, sussurrou-lhe uma voz interior.
“Vou domá-lo”, respondeu o velho. Sua resposta foi o silêncio.
— Sim, o tempo chegou — confirmou Kantor. — O problema é: por onde começamos?
— Que tal pelo início! — disse Daniel encarando-o sisudo.
— Que mundo é este? — perguntou Pedro, o mais objetivo.
— Atlantis — respondeu Kantor. — O centro de um império galáctico. O planeta sagrado para a raça atlante.
— Atlantis? De Atlântida? — perguntou Carlos, incrédulo. — Isso é uma lenda!
— Então, meu jovem, você tem diante de si duas figuras lendárias, pois eu e Mirna somos atlantes. Aqueles homens que os perseguiram também eram atlantes.
— Por que nos perseguiam? — Quis saber Daniel.
— Porque vocês representam um risco.
Foi a vez de Pedro:
— Como podemos ser um risco, se nem na Terra estamos?
— Vocês estão na Terra.
— Mas você não disse que aqui é Atlantis? — perguntou Cris.
— Como viemos parar aqui? — perguntou Ana.
— E….
Kantor levantou a mão ante a saraivada de perguntas. Imaginou que não seria fácil explicar.
— Calma, crianças — pediu. — Vamos tentar de outra forma.
Ele foi até uma prateleira e voltou com um objeto que pôs sobre a mesa.
Parecia um castiçal, com cristais incrustados em sua base.
Ele inseriu uma pequena barra de cristal quadrado em um orifício, também na base.
— O que é isto? — perguntou Pedro, examinando o objeto mais de perto.
— É um holoprojetor, e isto é um cristal arquivo. — Apontou para a pequena barra de cristal. — Isso vai ajudá-los a entender. Só quero avisá-los antes que o que estão para descobrir não será agradável. Peço que mantenham a calma.
Eles se entreolharam, apreensivos.
Kantor passou a mão sobre o objeto.
Os cristais na base brilharam e uma fumaça clara saiu do topo, mas não se dispersou. Acumulou-se em volta do objeto, formando uma bola gasosa.
A imagem de um planeta azul, girando no espaço, surgiu em meio à névoa.
— Este é o planeta Atlantis hoje. — O velho passou a mão sobre os cristais e a imagem mudou. — Este é Atlantis há mil e quinhentos anos.
— Parece a Terra — observou Carlos.
— E é — confirmou Kantor. — Terra para vocês, Atlantis para a minha raça. Através de um cataclismo planetário provocado, os atlantes trouxeram do fundo do mar seu continente, afundado há mais de quinze mil anos, e reconquistaram o planeta Terra, ou Atlantis. Mais de dois terços da humanidade pereceu no processo. A civilização terrestre foi erradicada da face do planeta.
Enquanto falava, Kantor manipulava os cristais, e a imagem transformou-se.
Uma grande massa de terra elevou-se no meio do oceano Atlântico, partes de continentes sumiram e outras surgiram. O Mediterrâneo invadiu o Saara. O Japão desapareceu, e a Oceania esfacelou-se.
— Nós viajamos no tempo? — Pedro quebrou o silêncio pesado que se instalara.
Kantor balançou a cabeça.
— De certa forma, sim.
— E como voltamos? — Cris não escondia a ansiedade em sua voz.
— É impossível voltar. — respondeu Kantor.
Os jovens murmuraram, contrariados.
— Como assim? Se viemos, podemos voltar! — exclamou Ana.
— Talvez se voltássemos para a caverna — sugeriu Pedro. — Lá era o portal, não era?
Kantor calou-se e baixou os olhos.
Daniel tinha os olhos fixos na imagem em sua frente e perguntou com voz baixa e rouca:
— Quando aconteceu este cataclismo?
— No dia em que vocês entraram naquela caverna. — O velho levantou os olhos e encarou o rapaz.
A respiração de Daniel alterou-se.
Ele sabia agora a resposta para todas as perguntas. Ela sempre estivera ali, no seu âmago, mas não se atrevia a ouvi-la, pois, se o fizesse, então ela seria real, e não haveria volta.
Pateticamente achava que, se não a ouvisse, aquilo tudo seria só um sonho ruim. Fecharia os olhos e, quando os abrisse, estaria em sua cama, em sua casa. Era só não ouvir a resposta.
Mas Kantor a disse e destruiu seu mundo de faz de conta:
— Vocês ficaram congelados por mil e quinhentos anos!