O cargueiro finalmente pousou em Turoc.
Assim que a porta abriu, Daniel saiu sem sequer se despedir dos tripulantes. Agora via que levaram quase cinco horas para chegar até ali, e a urgência gritava em seu peito.
Apesar disso, parou um minuto para observar Turoc e entender para onde devia se dirigir.
Chamaria muita atenção se ele, como soldado atlante, não soubesse qual o caminho a seguir.
A primeira coisa que percebeu ao desembarcar foi o ar salgado, marítimo, e o Sol forte.
O naviporto era enorme e havia vários cargueiros pousados.
Foi em direção ao portão principal, por onde grandes veículos flutuantes saiam.
Estes veículos eram formados por uma cabine arredondada na frente, onde provavelmente ia o condutor, e uma larga e comprida plataforma atrás. Tanto a cabine como a plataforma eram fechadas por um campo negro que tremeluzia. Muitas vezes, uma cabine daquela puxava mais de uma plataforma.
Daniel percebeu que eram uma espécie de caminhão e que transportavam carga.
Passou ao lado de um cargueiro que estava sendo descarregado.
Os contêineres flutuavam até aquelas plataformas, eram empilhados e novamente magnetizados. O condutor se sentava na cabine e, acionando algum mecanismo, o campo de força negro se formava.
Seguiu o fluxo do trânsito através do portão, onde feixes de luz semelhantes ao que vira no campo faziam o registro de quem entrava e saia.
Ele foi escaneado e nada de diferente aconteceu, para grande alívio seu.
Parou ao lado da estrada. À sua volta, ao longo da larga rua, havia vários prédios feitos em pedra.
Poseidia era a única cidade na ilha de Atlântida. As demais povoações eram chamadas de postos. Pequenas e funcionais, como Turoc, que existiam para servir de entreposto ao que era produzido no planeta.
Os produtos de Atlantis eram extremamente valorizados no império, por provirem do que eles consideravam o planeta sagrado.
Produtos agrícolas, tecidos, pedras preciosas, cristais, pescados, carne, tudo era ou consumido na capital ou exportado para o resto do império por preços exorbitantes, o que proporcionava uma grande riqueza à coroa e aos que trabalhavam com isso.
Daniel olhou para a direita e viu a grande ponte, com mais de um quilômetro de largura, que fazia a conexão com o continente.
Turoc se situava próximo ao mar, mas Daniel não conseguia vê-lo, pois as costas de Atlântida eram bem escarpadas, com paredões de mais de duzentos metros de altura. Em alguns lugares mais ao sul e ao norte, havia praias e estuários onde havia portos, mas, ali, ele sequer conseguia ouvir o bater das ondas, apenas sentir o cheiro salgado e ouvir as gaivotas.
Olhando para a esquerda, para onde seguiam os transportes, viu uma construção imponente.
Era um prédio negro, do qual se estendia uma marquise parecida com uma onda. Sob esta marquise havia um portão bloqueando a estrada e, em volta, era possível ver vários soldados imperiais circulando.
Era por ali o caminho para a capital e por onde ele teria que passar.
Olhou para os lados e viu que não havia cercas em volta desta guarita gigantesca.
Pensou que poderia se esquivar e seguir por campo aberto, fora da área da estrada, evitando assim que fosse descoberto. Daniel sabia que isso era questão de tempo, bastava o soldado do qual roubara o uniforme chegar ao campo para que, mesmo que houvesse passado pela guarita, fosse perseguido.
Desistiu da ideia quando se lembrou da descrição que Kantor dera daquele lugar.
Tudo ali era cercado pelo temível Deserto de Sal.
Quilômetros e quilômetros quadrados de calor extremo, areia e salinas sopradas pelo vento. Nada crescia ali, nada vivia ali.
Bem, quase nada.
Kantor falou de algumas criaturas que habitavam aquele inferno, que pareciam ter saído de algum livro de terror.
Por isso não havia cerca. Ninguém seria louco de seguir por ali e, se fosse, o deserto daria jeito nele.
Quando da emersão de Atlântida, nada fora feito, ao contrário do resto do planeta, para a recuperação ambiental do fundo do oceano que ficara exposto. A ideia era ter aquilo como mais um cinturão de proteção para a capital.
A partir de Turoc, Poseidia ficava em torno de cem quilômetros em linha reta ao norte, mas a estrada fazia uma meia lua, atravessando o deserto e aumentando o percurso em, pelo menos, uma vez e meia esta distância.
Isto era outra estratégia de proteção. Por terra, um exército invasor teria que percorrer esta distância, sendo assolado por todos os postos de guarda instalados ao longo do caminho.
Não havendo outra opção, Daniel se dirigiu à guarita.
Ao se aproximar, viu que suas estimativas sobre o tamanho do lugar estavam subestimadas. O pé direito da cobertura em forma de onda era de mais de vinte metros.
No topo da curva mais alta, uma gigantesca estátua de harpia, símbolo do império, montava guarda com as asas abertas.
À esquerda havia o prédio que fazia a base da cobertura. Ele sedirigiu para lá.
Viu então que mais construções se estendiam a partir desta, do outro lado do portão. Pela quantidade de soldados e equipamentos, aquilo era uma verdadeira base militar.
Deixou a aeroliner em uma área onde outras estavam estacionadas e se dirigiu a um soldado que montava guarda na porta de uma sala.
Explicou superficialmente o que desejava ali e então o guarda mandou que entrasse na sala e procurasse por Laors, oficial encarregado.
Já dentro da sala, Daniel se sentiu acuado.
Como o controle de acesso à capital era considerado um fator estratégico, o trabalho era feito por soldados, e não funcionários civis imperiais. Então a sala fervilhava com umas três dúzias deles trabalhando em frente a vários painéis.
Procurando disfarçar sua preocupação, Daniel perguntou a um deles quem era Laors.
O soldado indicou um homem alto e robusto, sentado atrás da maior mesa que havia na sala.
Daniel tirou o capacete, parou em frente à mesa e fez a continência típica imperial. O oficial o olhou com indiferença.
— O que deseja? — perguntou secamente.
— Me dirijo à capital — respondeu Daniel e, ato contínuo, entregou o cristal que o comandante lhe dera no campo.
O oficial o inseriu em um painel à sua frente e passou a ler os registros projetados. Fez uma cara de extremo desagrado e mirou Daniel de cima a baixo.
— Lastimável — disse ele enquanto balançava a cabeça.
Pegou um cristal pequeno que estava sobre a mesa e o encostou no cristal que Daniel trouxera.
Aquele era seu yoz, um cristal que guardava todos os dados pessoais do seu dono, bem como sua identificação genética. Era o yoz que, em contato com cristais arquivos, legitimavam os registros como uma assinatura.
A confirmação ficava impressa nas cadeias atômicas do cristal arquivo e não podia ser removida de forma alguma, a menos que se destruísse o cristal. Também não podia ser falsificado, pois o yoz só funcionava pelo toque de seu dono, do qual fazia uma identificação genética.
— Está ciente de que deve comparecer à Reformadoria Geral para entregar sua aeroliner para reparo, correto? —perguntou o oficial.
— Sim — respondeu Daniel e resolveu perguntar sobre algo que o vinha preocupando: — Qual o problema com o equipamento?
Corro o risco de que pare no caminho?
— É possível que sim — respondeu laconicamente o oficial.
— E o que faço se isto acontecer?
Laors levantou os olhos e encarou Daniel.
— Siga o procedimento, soldado. — Sua voz se elevou um pouco. — Se é que lembra qual é o procedimento, já que você não é do tipo que parece ligar para eles, pois coabitar com terráqueos também é contra os procedimentos e, mesmo assim, você o faz!
A altercação do oficial fez com que alguns soldados na sala olhassem para eles.
Daniel contraiu os lábios com raiva.
Sabia que aquelas ofensas não eram dirigidas a ele, mas o descaso e preconceito contra os terráqueos já o estavam enfurecendo. Procurou controlar a voz quando falou, para que não se notasse todo o rancor que havia nela:
— O que acho, senhor, é que seria uma prova de bom senso despachar a aeroliner em cima de algum destes veículos e me fornecer outra para evitar contratempos.
O homem deu um murro na mesa de glasstec e se levantou.
— Está dizendo que não tenho bom senso, seu sietlor maldito?
Ele contornou a mesa e se postou em frente a Daniel. Colocou o dedo no peito dele e o cutucou, empurrando-o para trás.
Na mesa atrás do oficial, uma luz começou a piscar em um painel.
— Reze a Athos para que esta porcaria de aeroliner não pare na estrada! — O homem gritava. — Porque mesmo que acione o socorro, vou te deixar lá cozinhando no sol e deixar que vire comida de pigafors, seu monte de estrume!
Daniel achou que seria melhor se retirar. Confrontar o oficial poderia trazer-lhe sérios problemas.
Então se afastou dois passos, prestou continência, girou e foi em direção à porta.
O oficial o seguiu, ainda o ofendendo. Na mesa, a luz continuava a piscar.
— Saia mesmo daqui, seu amante de terráqueos! Se a lei fosse justa, você deveria ser pendurado do lado de fora da muralha de Poseidia como exemplo! Você empesteia o ar, seu comedor de lixo! Fora do meu posto!
Daniel saiu e a porta, ao fechar-se, abafou os gritos do homem. Ele colocou o capacete e montou na aeroliner, seguindo então em direção ao portão.
Lá dentro, o oficial ainda fazia uma preleção furiosa aos seus soldados sobre dever.
Daniel chegou ao lado de dois soldados que faziam a abertura final do portão e lhes forneceu o cristal arquivo com a autorização de passagem, para verificação.
Dentro do escritório, Laors, ainda resmungando, foi para sua mesa. Viu a luz piscando e passou a mão sobre ela.
Uma projeção holográfica com letras em vermelho surgiu à sua frente. Ele arregalou os olhos, saltou de sua cadeira e correu em direção à porta.
Nem se deu ao trabalho de abri-la com um comando vocal. Abriu-a com um pontapé e, já do lado de fora, gritou, apontando para onde Daniel estava:
— Detenham este homem!
Os dois soldados que ladeavam Daniel olharam surpresos para seu oficial por um segundo, mas, seguindo o instinto apurado dos soldados atlantes, levaram as mãos às armas.
O portão já estava aberto e Daniel, demonstrando que seus instintos também eram rápidos, acelerou a máquina, mas, em vez de tocar em frente, deu duas rabeadas laterais, acertando os soldados e atirando-os longe.
Acelerou em direção ao portão, que já começava a fechar.
Passou em um vão apertadíssimo entre as duas placas de metal que se fecharam com estrondo atrás dele.
Alertados pelo alarme, quatro soldados saíram de uma guarita lateral. Daniel deu um cavalo de pau com a aeroliner, acertando o grupo em cheio.
Embicou a máquina em direção à estrada e acelerou forte.
Dois disparos passaram perto de sua cabeça, então ele se enfiou por entre os grandes transportes que seguiam seu caminho pela estrada.
Não estava livre ainda. O oficial e mais quatro soldados surgiram atrás dele montados em aeroliners e saíram em sua perseguição.
Daniel fazia zigue-zague entre as plataformas flutuantes tentando despistá-los. Eles não disparavam, pois não queriam atingir os transportes, mas se aproximavam cada vez mais.
O que Daniel temia aconteceu.
A fila de transportes terminou e, à sua frente, havia apenas estrada livre. Acelerou ao máximo sua aeroliner, mas sabia que agora era um alvo mais fácil.
Desembaraçados também dos transportes, os soldados começaram a disparar.
Uma saraivada de feixes de luz passava por ele, que continuava a ziguezaguear. Mas aquilo o fazia ir mais devagar, permitindo que seus perseguidores chegassem cada vez mais perto.
Daniel sabia que logo viriam soldados na direção contrária, dos outros postos militares mais à frente, então ele precisava sair da estrada.
Viu uma ravina não muito profunda, cavada no leito rochoso ao lado da estrada. Mergulhou com sua máquina ali e seguiu velozmente por seu traçado sinuoso.
Subitamente, o caminho fez uma curva à esquerda e passou sob uma ponte da estrada. A ravina terminava abruptamente em uma planície coberta de dunas. Os disparos recomeçaram enquanto ele circundava velozmente as dunas.
Um disparo passou muito próximo a seu ombro esquerdo, chegando a queimar o uniforme.
Daniel decidiu que era hora de revidar, senão não escaparia daquela situação.
Sacou a pistola ao mesmo tempo em que girava o tronco para trás. Disparou contra o perseguidor que vinha mais à frente.
Mirou na aeroliner na esperança de que sua queda retardasse os demais.
O tiro acertou na parte frontal mais baixa. Houve uma chuva de fagulhas, mas não aconteceu como Daniel esperava. A máquina não parou imediatamente.
Seu condutor deu uma guinada forte para a direita, saindo da frente dos demais, chocando-se contra uma duna.
Quando Daniel se voltou, viu assomar a sua frente uma duna enorme. Por puro reflexo, empinou a frente da aeroliner, com isto evitando um choque direto, mas fez com que a máquina subisse vertiginosamente pela superfície da duna. Quando esta terminou, se viu catapultado ao ar.
Ele manteve o sangue frio. Girou novamente para trás e disparou contra seus perseguidores, agora de um ângulo privilegiado.
Os soldados se desviaram dos tiros e da grande duna pela qual Daniel havia subido.
Mas não havia caminho livre ao redor dela. Outras pequenas
dunas fechavam as laterais.
Três dos soldados conseguiram passar por elas, mas o quarto, atrapalhado por mais um disparo de Daniel, se chocou contra a areia, sendo atirado ao chão.
A aeroliner de Daniel subiu até uns cinco metros de altura e depois começou a cair, pois não fora feita para voar. Ele a embicou paralelamente à superfície oposta da duna e deslizou suave e velozmente por ela.
Ao chegar à base, topou com um dos soldados que haviam contornado a duna.
Daniel tentou desviar, mas ele e o atlante se chocaram lateralmente. O impacto fez com que a pistola dele voasse de sua mão.
Ele e o soldado seguiram lado a lado, se empurrando e tentando esmurrar um ao outro.
O atlante tentava levar a mão à pistola em sua cintura à direita, mas para isto tinha que tirar a mão do guidão, já que com a esquerda lutava com Daniel.
O soldado tentou um movimento rápido.
Usou a perna esquerda para empurrar a aeroliner de Daniel para o mais longe possível, segurou o guidão com a mão esquerda e levou a direita até a pistola.
Mas o rapaz também agiu rápido. Inclinou a máquina para que voltasse para próximo do atlante e, aproveitando o movimento, esmurrou o queixo exposto do homem.
O soldado se desequilibrou, sua aeroliner tombou e ele se chocou contra a lateral de uma duna.
Daniel, ainda correndo, procurou pelos outros dois, mas não os viu no emaranhado de dunas.
Ao contornar uma outra enorme, deu de cara com o desertoaberto. Não havia mais dunas para se esconder, apenas leves ondulações que se sucediam até desaparecer na brancura do horizonte.
Sem alternativa, acelerou tudo o que pôde, tentando colocar o máximo de distância entre ele e seus perseguidores.
Quase um minuto depois, os dois soldados atlantes surgiram por entre as dunas e ainda puderam ver Daniel se distanciando.
Um dos pilotos era Laors, o oficial do posto de fronteira. Ele fez um sinal para que o outro parasse.
— Não vamos persegui-lo, senhor? — perguntou o soldado.
— Não! — respondeu o oficial enquanto levantava a viseira de seu capacete. — A partir daqui é território de shakluir e eu não vou me arriscar. Além do mais, aquela aeroliner não vai longe. Há uma falha na unidade de transferência de energia.
— Não seria melhor mandar uma nave, pelo menos para recuperar o equipamento? — voltou a perguntar o soldado.
Laors baixou a viseira. Sob ela, era possível ver um sorriso sádico.
— Vou fazer isso, mas não imediatamente. Vamos deixar que o Deserto de Sal cuide dele primeiro.
— E quem será que era este infeliz?
Eles observaram o vulto que sumia na distância.
— Nunca vamos saber — respondeu Laors.