Os três cavaleiros emergiram da floresta no alto do monte e principiaram a descer a trilha íngreme que serpenteava morro abaixo.
Os cavalos pisavam com cuidado, pois o terreno ainda estava úmido da garoa da manhã.
A neblina, que durante a madrugada tomara o topo das montanhas, agora, nas primeiras horas da manhã, baixara para os vales, então eles caminhavam em direção a um colchão branco e espesso que em breve os envolveu.
— Por que razão mesmo tivemos que vir nesta roubada? — perguntou Daniel, entre irônico e irritado.
— Para servirmos de babá para seu primo — respondeu Carlos, que cavalgava ao seu lado.
Pedro, que ia um pouco mais à frente, não se deu nem ao trabalho de virar para responder:
— Vocês vieram porque Kantor achou que seria interessante conhecerem um pouco sobre a extração e processamento de cristais. E só para constar, não preciso de babá. Sei me cuidar sozinho.
—Ah, sabe! — ironizou Daniel. — Se tivesse tirado só um pouco o nariz dos cristais arquivo e aprendido pelo menos a segurar uma espada, não precisaríamos estar aqui.
Carlos entrou na conversa:
— Isso é verdade, Pedro. Não sei por que não quis aprender, ou reaprender, se é que em alguma de suas vidas você já fez isto, lutar. Kantor é um sacerdote letrado e tudo mais, mas também é um grande espadachim.
Pedro deu de ombros.
— A arte da guerra não me atrai. Não na prática, pelo menos. Conhecer as estratégias, as manobras e objetivos militares nas guerras me ajudarão a aprimorar conhecimentos de logística para movimentação de recursos e populações civis.
— E de que vai servir isso? — perguntou Carlos.
— Garantir linhas de abastecimento para alimentação, vestuário e recursos bélicos para as tropas, bem como para, e principalmente, a população civil que, geralmente, é a parte inocente e mais afetada em uma guerra.
— Nossa, que útil — ironizou novamente Daniel.
Pedro respondeu ainda sem se virar:
— Um dia, Daniel, você ainda vai me agradecer por conhecer essas coisas.
— Duvido — rebateu o primo. — O que eu agradeceria mesmo, é se você nos tirasse logo deste nevoeiro e chegássemos nesta droga de lugar para onde vamos. Quero voltar logo para casa, pois não gosto de deixar Cris e Darian sozinhos.
Carlos disse:
— Relaxa, eles estão em segurança. Kantor e Ana estão lá.
— Ana? — desdenhou Daniel. — Estariam melhores sozinhos.
— Não fale assim — defendeu Carlos. — Ela é excelente guerreira e espadachim de primeira. E está ficando fera na luta corpo a corpo, como eu mesmo posso atestar.
Ouvindo isto, Pedro se virou com um sorriso nos lábios.
— Aliás, Carlos, onde você estava com a cabeça de desafiá-la para uma luta?
— Pensei que podia aproveitar para agarrá-la, rolar com ela e apalpar aqui e ali.
— Mas não foi isso que aconteceu.
— Cara, nem vi o que me atingiu.
Todos riram. Daniel disse:
— Na verdade, quero voltar logo para ficar com Darian.
— Quem diria, Daniel — disse Carlos —, que você seria um pai babão!
O rapaz respondeu, embevecido:
— É verdade. Nunca pensei que poderia amar tanto outro ser. E o garoto é fantástico, carinhoso, esperto e inteligente demais.
— Isto ele puxou da mãe — disse Pedro com a intenção de provocar.
Daniel riu baixo e respondeu no mesmo tom:
— Com certeza puxou, afinal ela é muito inteligente, tanto que escolheu o melhor para ser pai do filho dela.
Um clima tenso principiou a surgir, e Carlos resolveu intervir antes que a coisa piorasse:
— Pedro, falta muito para chegarmos à casa da bruxa?
— Eu já disse que ela não é uma bruxa! — respondeu o rapaz, irritado. — É uma Mayyaris!
— Você já explicou o que seria isso — continuou Carlos —, mas não me lembro de todos os detalhes. Poderia explicar de novo?
Foi a vez de Daniel se voltar para ele, irritado:
— Para! Você não quer ouvir aquela papagaiada toda de novo!
— Quero sim! — respondeu Carlos, incisivo, e depois em voz baixa: — Melhor do que aguentar vocês dois brigando.
Pedro cavalgou mais um tempo em silêncio e então respondeu:
— Uma Mayyaris é uma versão feminina dos sacerdotes atlantes, mas com conhecimentos muito mais específicos, e são muito mais raras, pois como Kantor já disse uma vez, apenas meninos se apresentam para a seleção de sacerdotes, mas quando chega ao conhecimento dos recrutadores que alguma menina apresenta dons elevados, eles a testam em particular e realmente só as mais aptas são aceitas. O grande problema de utilizar mulheres no sacerdócio reside na instabilidade hormonal, que também gera instabilidade nas ondas cerebrais necessárias à manipulação da Primanergia. Mas quando, por fatores genéticos e espirituais, uma mulher supera esta condição, ela se torna um ser único e valioso, pois as mulheres têm uma sintonia mais fina com as energias provenientes da natureza e com elas conseguem lapidar cadeias atômicas de cristais para usos onde a precisão é fundamental, como os navegadores subespaço de naves, entre outros.
— Em suma, uma bruxa! — disparou Daniel.
— Saiba, Daniel, que em nossa sociedade, entre nós terráqueos que temos uma herança genética atlante, que inexplicavelmente é muito mais intensa nas mulheres do que nos homens, também surgiam Mayyaris, que foram taxadas como feiticeiras ou bruxas por lidarem com as forças básicas da natureza. E graças a preconceitos como este seu foram queimadas, torturadas, perseguidas.
— Não é preconceito — respondeu Daniel. — É apenas cuidado.
— Cuidado por quê? — perguntou Pedro.
— O fato de ela ser atlante está bom para você?
— Nahara é atlante, realmente, mas é uma aliada de Kantor, ou ele não nos mandaria até ela — rebateu Pedro.
Foi a vez de Carlos:
— Se ela é tão confiável, porque Kantor insistiu que tivéssemos cuidado e principalmente que não deixemos que nos toque de forma alguma?
Pedro pensou um pouco, como se considerasse se o que tinha para responder poderia ser compartilhado ou não.
— É que… — começou relutante. — Ela tem certa… instabilidade emocional.
Daniel se voltou para Carlos:
— Uma bruxa louca!
Os dois riram alto.
— Ela não é louca! — exclamou Pedro. — É que Nahara tem um histórico familiar… complicado.
— Sério? — perguntou Carlos. — Conta pra nós.
Pedro ficou calado.
— Diz aí, Pedro! — insistiu Daniel. — Se estaremos perto dela, precisamos estar preparados para qualquer coisa!
O rapaz suspirou.
Já havia dito mais do que achava que deveria. Que mal haveria agora em contar o resto?
— Uma ancestral de Nahara, uma Mayyaris poderosa e de grande prestígio, se apaixonou por um terráqueo e abandonou o templo em Poseidia para fugir com ele. Ela foi execrada por todo o sacerdócio, mas Kantor, que era um dos sumos sacerdotes da época, conseguiu impedir que fosse declarada uma traidora e, assim, condenada à morte. Ele a procurou por seis anos e a encontrou nesta região, vivendo em um casebre com duas filhas. — Pedro continuou a história:
“Seu marido havia morrido e elas estavam vivendo em uma situação de miséria total. Além disso, a mulher estava perturbada mental e emocionalmente devido ao stress de imaginar que o império viria atrás dela, para executá-la e a suas filhas. Kantor teve muita dificuldade em se aproximar, pois ela usou seus poderes para rechaçá-lo e quase o matou. Ele estranhou, pois era sabido que, quando ela abandonou o templo, não levou nenhum cristal consigo. Quando ganhou sua confiança, descobriu que ela possuía cristais que achou nas redondezas, o que possibilitou que utilizasse seus dons contra ele.
Ele soube então que havia um veio de cristais aflorados, bem próximo ao casebre, e que as meninas estavam sempre coletando cristais da forma como a mãe ensinara, aliás, ela as estava treinando como Mayyaris, pois as duas possuíam o dom.
Leniha, o nome desta ancestral de Nahara, foi um caso único entre as Mayyaris, pois o dom não é normalmente hereditário, mas todas as descendentes de Leniha foram Mayyaris.
Conversando com ela, Kantor soube que fora atraída até aquele lugar onde habitava por um instinto que a levou até uma fonte de cristais. Após mais alguns estudos, Kantor descobriu que mulheres em geral têm este dom para localizar veios cristalinos.
Leniha sobrevivia do dinheiro da venda de poções de ervas aos terráqueos da região que acreditavam que ela era uma bruxa. Vendia também pequenos 'feitiços' para mulheres que queriam engravidar, curava pequenas doenças, localizava objetos perdidos, despertava o amor em outras pessoas, tudo manipulação em pequeno grau de Primanergia. Uma vez, logo após a morte de seu marido, três homens da região tentaram violentá-la. Os três morreram de forma horrível, então ela, apesar de procurada pelas pessoas, era temida e odiada, e por isso ela e as filhas passavam a maior parte do tempo isoladas e sozinhas.
Tudo isso: a solidão, o medo, a raiva, mesclados a algo que Kantor descobriu, de que Mayyaris afastadas por muito tempo da manipulação profunda de Primanergia desenvolvem distúrbios psíquicos, transformaram Leniha em um ser arredio, cheia de neuroses e fobias. Sua vida era um torvelinho de emoções extremas, da agressividade à calmaria, da leviandade ao recato, do choro ao riso, tudo em questão de minutos. Isso tudo foi passado para as suas filhas, e delas às descendentes, todas mulheres, como uma maldição que seguiu junto com o dom de serem Mayyaris.
Algumas eram realmente desequilibradas, e outras apresentavam um ou outro desvio psíquico ou de comportamento.
Kantor a ajudou a explorar o veio cristalino. Ele comprava, de forma discreta para que não se notasse em Poseidia, os cristais que ela processava. Continuou fazendo isso com suas filhas e netas, melhorando a qualidade de vida delas.
Após duzentos anos ninguém mais no templo se lembrava da deserção de Leniha, que Kantor cuidou para que não fosse para os registros. E calhou de ser uma época em que havia pouquíssimas Mayyaris disponíveis, e o império se viu à beira de uma escassez de cristais de precisão. Então Kantor deu um jeito de colocar uma das descendentes de Leniha como Mayyaris no templo e assim
‘oficializá-la’.
Com o argumento da crise, conseguiu aprovar junto à coroa uma lei que permitia que quaisquer sacerdotes ou Mayyaris que fossem donos de terras que possuíssem veios cristalinos pudessem ser fornecedores remunerados do império. Como muitos sacerdotes e sacerdotisas são herdeiros de terras, isso não se tornou incomum e não chamou atenção para o fato de que a descendente de Leniha tivesse um veio a ser explorado em terras de sua família.” — Kantor é mesmo um manipulador — observou Daniel.
Pedro olhou para ele.
— Não vejo dessa forma. O que ele fez foi ajudar uma pessoa que precisava e, ao mesmo tempo, resgatar para o império um talento nato. Tudo bem que ele usou de métodos não muito legais, mas foi por um bom motivo.
— Sei — disse Daniel. — Os fins justificam os meios. Ora, ora! Meu primo sempre tão correto aprovando este tipo de coisa!
Kantor não tem sido uma boa influência para você, Pedro.
O primo o encarou com raiva.
— Você só diz asneiras, Daniel! Não é nítido que o que ele fez foi para um bem maior? As regras que quebrou não prejudicaram em nada as demais pessoas nem ao império, mas sim ajudaram a manter a matriz energética!
— Ele ajudou a si mesmo! — rebateu Daniel. — Afinal, estas Mayyaris não o favoreceram depois?
Pedro deu de ombros.
— Sim, todas as descendentes de Leniha o ajudaram, principalmente quando teve que fugir e se esconder aqui na Terra de Agóz. Nahara o ajuda até hoje, fornecendo cristais e informações, já que, como fornecedora conceituada do império, tem acesso a várias pessoas influentes. Mas isso só mostra que a família de Leniha sabe ser grata a quem tanto a ajudou.
— Para mim, o que ele fez foi premeditado. Tudo o que ele faz é assim — disse Daniel.
— Oh, Deus, vocês vão começar de novo! — exclamou Carlos antes que Pedro se manifestasse. — Vamos, Pedro, termine a história que estava contando, por favor!
Meio emburrado, Pedro continuou:
— Não tem muito mais o que falar. As descendentes de Leniha prosperaram muito, acumularam riquezas. Casaram-se, ou devo dizer, procriaram com atlantes e até mesmo com terráqueos, e perpetuaram sua descendência feminina até Nahara. É isso.
— É, é isso, bruxa, louca e rica — zombou Daniel.
— Eu já disse que ela não é... — começou Pedro já irritadíssimo, mas Carlos o cortou, falando alto:
— Falta muito para…
A última palavra morreu em sua boca.
Uma grande sombra negra surgiu diante deles.
Apareceu de repente, do nada, como um navio fantasma que viesse singrando a névoa. Eles estacaram, aturdidos, tentando absorver os limites indistintos daquilo. O que parecia ser um paredão liso aos poucos mostrou o contorno de pedras sobrepostas que subiam a grande altura.
Olhando para cima, distinguiram dois torreões recortados contra a luz mortiça do Sol que tentava rasgar a cortina de neblina.
Viram as ameias no alto da parede e um gigantesco portão que parecia brotar das pedras.
— Chegamos — Pedro por fim respondeu a pergunta mastigada de Carlos.
— Um castelo! — exclamou Daniel. — Não esperava por isso.
— Eu disse que ela era rica — disse Pedro.
— Você também disse que as mulheres desta família são perturbadas. O que devemos esperar desta aqui? — perguntou Carlos, sem despregar os olhos das pedras negras.
— Segundo Kantor, estas perturbações diminuíram muito com o passar dos séculos. Nahara é, dentro de certos padrões, normal. Só é impulsiva, irresponsável e meio lasciva.
— Então tá tudo bem — disse Carlos, irônico. — Daniel também é impulsivo, irresponsável e meio lascivo, e convivemos com ele numa boa. Acho que nos sairemos bem.
— Mas lembrem-se! — frisou Pedro. — Não deixem que ela toque em vocês! Com isso ela pode… induzi-los.
— E quem disse que vou deixar uma bruxa velha tocar em mim? — perguntou Daniel colocando a mão sobre o cabo da espada.
— Quem vem lá?
A voz masculina, falando no dialeto comum terráqueo, cortou o ar e pareceu reverberar na atmosfera pesada.
Eles viram uma sombra debruçada sobre as ameias. Parecia levar algo nas mãos. Seria uma arma? Daniel e Carlos ficaram em guarda. Pedro avançou um pouco.
— Siefor Lori — disse em voz alta.
— Pedinte? — perguntou o homem lá no alto.
— Que não pede, mas implora por sua mercê.
— Sempre temos algo. O portão será aberto para vocês.
A sombra desapareceu.
— O que foi isso tudo? — perguntou Daniel, intrigado.
Pedro respondeu:
— É uma senha. Nahara recebe constantemente visitas de atlantes. Se houvesse algum perigo ele diria que não tem nada para nós. Siefor Lori em atlante seria o equivalente a mendigo em nossa língua. É um termo pejorativo para terráqueos. Se houvesse algum ouvindo, não chamaria a atenção, pois há muitos pedintes por aí.
— Atlantes? Sei! Isto está ficando esquisito! — disse Carlos.
— E perigoso! — completou Daniel.
Pedro contemporizou:
— Relaxem. Esta é uma casa amiga.
— Temos que tomar cuidado com a dona, atlantes por perto. Imagine então quando encontrarmos uma casa que não seja amiga — resmungou Daniel.
Não falaram mais, pois um estalo lhes mostrou que o portão estava sendo aberto.
As duas grandes folhas deslizaram para a frente e depois para os lados, deixando um vão grande o suficiente para que os três passassem a cavalo lado a lado.
Adentraram um pátio amplo e pavimentado. Apesar de ser a céu aberto, não havia neblina ali.
— É Primanergia! — exultou Pedro. — Mantém a neblina longe! Vocês a sentem no ar? Vejam, ali deve ser a entrada da mina! — Ele estava empolgado.
E apontou para um portal de pedras no outro extremo do pátio.
— Pedro, se contenha — disse Daniel, enquanto examinava o contorno.
O castelo propriamente dito se elevava no meio do pátio que, de onde estavam não era possível ver, mas parecia contornar o palácio, que era todo espigado com torreões circulando uma construção central, de formato retangular.
Os espigões eram em número de cinco e de alturas variadas. A construção toda se assemelhava a uma mão semiaberta que segurava um bloco retangular em sua palma. Era todo em pedra negra, com janelas à volta de todos os torreões e no bloco central.
Havia várias outras construções adjacentes que pareciam prédios de apoio. Mais ao fundo, viu casas que imaginou serem onde habitavam as várias pessoas que circulavam por ali, entretidas em seus afazeres diários.
Ele não conseguia distinguir se eram terráqueos ou atlantes, mas percebeu que todas estavam vestidas de forma limpa e pareciam bem alimentadas e tranquilas, então não deviam ser escravos, coisa comum em propriedades atlantes.
Tampouco havia guardas ou soldados uniformizados, ou, pelo menos, ninguém que se parecesse com um soldado.
Daniel sentia-se levemente incomodado, como se estivesse sendo detidamente observado, mas não era pelas pessoas que passavam, os olhavam e cumprimentavam gentis. Era como se fosse por algo oculto naquelas pedras.
“Cuidado!”, dizia seu instinto.
Um homem se aproximou.
— Os lordes eram esperados. — Quando ouviram sua voz, o identificaram como a pessoa de cima da muralha.
— Lordes? Taí, estou começando a gostar deste lugar! — exclamou Carlos.
O homem chamou um garoto para cuidar dos cavalos.
— Por favor venham comigo. A Senhora os espera.
Seguiram o homem até uma porta situada na face do torreão mais próximo.
Ele a abriu com um comando de voz, o que demonstrou para os garotos que ele era atlante, pois terráqueos não tinham a capacidade de abrir portas assim. Os atlantes usavam comandos vocais para ativar certas áreas da mente, que captava a Primanergia do ambiente e a direcionava para efetuar a ação.
O vestíbulo da torre era espaçoso. Seu piso branco, quase polido, contrastava fortemente com as paredes escuras.
Havia poucos móveis ali, todos em pedra, como era comum nas habitações atlantes, e alguns em glasstec, o material plástico de origem vegetal que os atlantes usavam para moldar objetos diversos.
— Me deem seus casacos, por favor, lordes. Aqui dentro a temperatura está bem mais agradável.
Eles entregaram os grossos casacos impermeáveis com capuz que estavam usando.
— Podem também deixar suas espadas — pediu o homem.
Daniel pôs a mão sobre o cabo de sua arma.
— Nem pensar!
O homem pareceu assustado com a atitude agressiva dele.
— Daniel, por favor — pediu Pedro.
Daniel olhou em volta.
Havia algo ali que o mantinha em guarda. Mas, depois de alguns segundos, soltou o cinto da espada e a entregou ao homem. Disse a si mesmo que ele poderia dar conta de qualquer ameaça que houvesse, mesmo sem espada.
O homem os convidou a acompanhá-lo por uma escada que subia circundando internamente a torre. Subiram um bom pedaço até uma plataforma onde havia uma porta.
Esta, seu cicerone abriu manualmente e fez um gesto para que entrassem. Ele mesmo não entrou.
Assim que eles passaram, fechou a porta suavemente.
A sala diante deles era ampla, tomada por uma iluminação tênue que vinha das janelas semicobertas por cortinas de tecido. Havia grossos tapetes pelo chão e era possível vislumbrar quadros e esculturas nas alcovas obscuras mais distantes.
No centro da sala, havia uma grande mesa de trabalho com uma poltrona e duas cadeiras ricamente entalhadas à frente. Todas em madeira!
Árvores eram consideradas sagradas por serem uma das maiores representações da natureza, uma das três faces de Athos, o deus atlante. Sua madeira só podia ser utilizada após tombarem por causas naturais, e desde que não fosse possível seu replantio. E só mediante a autorização de um alto sacerdote. Por isso, apenas pessoas ricas e influentes possuíam móveis de madeira.
Terráqueos, que os atlantes julgavam pouco menos que animais, e por isso eram criaturas fora da mercê de seu deus, utilizavam como lenha as madeiras que achavam jogadas pelas florestas, mas, se um fosse flagrado cortando uma árvore, a pena era a morte.
No canto direito havia uma lareira na qual tremulavam as chamas azuis do fogo provocado por Primanergia, pois tampouco os atlantes queimavam madeira. Ao lado havia uma cadeira sobre a qual uma massa de panos negros se moveu.
Foi então que os jovens notaram que havia uma pessoa ali.
A luz da lareira contra seus olhos não permitia que visualizassem quem era, então se aproximaram. Estacaram, assustados diante da figura.
— Nossa! — exclamou Daniel. — É pior do que pensei!
Uma velha ali estava.
Era impossível definir sua idade, mas os vincos e sulcos profundos em seu rosto de pele amarelada diziam que era muito idosa. Manchas escuras permeavam os braços esqueléticos que assomavam entre as dobras do manto escuro.
Estas mesmas manchas subiam pela testa em direção ao crânio exposto, pois raríssimos fios de cabelo branco o cobriam.
Vencendo o choque, Pedro balbuciou para a velha:
— Se… Senhora, nós viemos… viemos da parte de Kantor, o sacerdote.
Ela o mirou com olhos esbranquiçados e nada disse.
— Acho que ela é surda — opinou Carlos. — Ei! — disse quase gritando. — Kantor nos mandou aqui para falar com você!
A velha ficou agitada e soltou um som como se fosse um gemido.
— Você a está assustando! — censurou Pedro.
— Mas ela…
— Ela é praticamente surda. Mal pode ouvi-los.
Os três se viraram instantaneamente em direção à voz que surgira atrás deles.
Sob a luz de uma janela estava uma bela mulher, tão linda que os deixou mudos.
Ela trazia as mãos postas junto aos quadris em atitude imperiosa.
Era de estatura mediana. Os cabelos de um negro intenso nasciam lisos no alto da cabeça para, logo abaixo, em cachos abertos e ondas, se esparramarem sobre os ombros nus e de pele branquíssima. Ela usava um corpete azul, trabalhado com motivos dourados e que deixava os ombros, os braços e o colo à mostra, e que mal prendia os seios generosos que pareciam que iam saltar à vista.
Os rapazes não sabiam se olhavam para eles ou para o belo rosto em forma de coração, que emoldurava uma boca pequena de lábios carnudos que desenhava um coração rosado contra a pele branca. O queixo era levemente saliente, o nariz, pequeno. Os olhos eram de um azul vivo, visível mesmo da distância onde estavam e encimados por grossas sobrancelhas negras.
Usava também uma saia azul longa e pregueada que marcava bem os quadris largos e que se movimentou com graça quando ela veio na direção deles.
Passou por eles, deixando no ar um rastro de perfume que lembrava canela, e foi diretamente até a velha sentada. Abaixou-se diante dela e lhe acariciou o rosto enrugado.
— Está tudo bem, minha velha querida. — Sua voz saiu suave e musical, bem diferente do timbre que haviam ouvido há pouco. — Cimira? — chamou ela, e uma mulher em um vestido cor creme deslizou das sombras laterais, pegando os rapazes de surpresa.
— Senhora? — disse a mulher abaixando a cabeça.
— Leve Adja para a estufa leste. Logo o Sol aparecerá, e o calor fará bem a ela. — Havia agora em sua voz, um tom de quem tem autoridade, mas sem rudeza.
A mulher meneou a cabeça e ajudou-a a levantar a idosa com cuidado.
Quando as duas se foram, ela se voltou para os rapazes, as mãos novamente nos quadris, o queixo erguido.
— Eu sou Nahara!