A mente de Kantor mergulhou entre as estruturas cristalinas,
buscando as diminutas partículas que mantinham os átomos do cristal unidos. Realinhou seus eixos para que cumprissem a função que ele desejava.
Aquele cristal era responsável pelo campo de força do templo.
O sacerdote estava reduzindo sua potência, agora que as buscas por Mirna haviam se deslocado mais para o norte.
Com a regulagem atual, o campo permitia apenas a passagem livre das assinaturas energéticas dele e dos garotos e agora permitiria também a entrada de insetos e animais maiores para a manutenção do equilíbrio ecológico em volta do templo.
Inseriu novamente o cristal no console de controle do entorno do templo, reativando-o.
O cristal brilhou. Uma luz clara e cristalina
Mas, repentinamente, um dos outros cristais do grupo, o que avisava da aproximação de indesejados, passou a piscar intermitentemente com uma luz vermelha, e um sinal sonoro se ativou.
Kantor levou alguns segundos para entender o que acontecia.
Foi então que ouviu os gritos.
O machado descia com força e rapidez, um borrão prateado, rachando facilmente a madeira que voava para os lados em dois pedaços simétricos.
Um novo toco era colocado sobre o cepo, o machado descia. Sistematicamente, a operação era repetida, sem falhas.
Pedro era quem colocava os tocos, e o fazia de maneira tranquila, apesar de o aço zunir a poucos centímetros de seu rosto. O fazia pois a atitude do primo, que manejava o machado, era de total concentração na tarefa.
Se Pedro soubesse que só uma parte da atenção de Daniel estava focada no trabalho, talvez não ficasse tão calmo.
A mente de Daniel viajava pelo futuro que se avizinhava.
Não o futuro sombrio que sonhara há algum tempo. Futuro este que, agora, com todo o conhecimento que Kantor por fim despertara, poderia se tornar realidade, se ele quisesse. Mas os meses da gestação de Cris mexeram profundamente com ele.
Ver a barriga dela crescer, sentir os primeiros movimentos do bebê, e a própria perspectiva de ser pai modificaram o temperamento e as ideias de Daniel.
E essa mudança, percebeu ele, também estava mudando a disposição de Cris quanto ao relacionamento deles. Daniel tinha certeza de que, quando o bebê nascesse, o amor deles renasceria também.
Por isso, abandonou todo o interesse por conquistas, reinos, ou qualquer outra coisa.
Tudo que queria eram as coisas simples de uma vida em família, como aquilo que fazia agora, rachar lenha para o inverno que se aproximava.
Se imaginou vivendo ali, coisa que há pouco tempo lhe parecera intolerável, junto aos amigos e a Kantor, com quem vinha se dando muito bem, seu filho e Cris, diante de uma lareira. Arranjar uma forma de trabalho, cuidar da sobrevivência de todos.
E com Cris ao seu lado!
Pensar nela lhe trouxe um arroubo de felicidade. Não imaginou que podia amá-la mais do que…
Uma voz, uma súplica apareceu em meio a seus devaneios, uma voz conhecida.
“Daniel! Socorro!”
Ele parou com o machado no ar, perplexo. Pedro levantou os olhos.
— O que foi? O que aconteceu?
Carlos, que treinava ali próximo com o arco, também percebeu o súbito mutismo dele, a palidez de seu rosto, e perguntou curioso:
— O que aconteceu, Dan?
— Cris… — balbuciou ele.
Neste instante, Mirna contornou o prédio à direita, aos gritos:
— Daniel! Daniel! Cris está em perigo! Ana também! Mutantes!
Em desespero, ela nem se aproximou dos rapazes. Girou nos calcanhares e voltou correndo por onde viera.
Daniel, segurando firme o machado, foi atrás dela. Carlos o seguiu, carregando o arco e algumas flechas.
Pedro ia segui-los, quando estacou.
— Daniel, espere! — Mas o primo já havia sumido de vista. O rapaz voltou correndo em direção ao campo de treinos.
Ana desferia golpes à esquerda e à direita.
Dava estocadas diretamente nos olhos dos seus atacantes e em suas gargantas.
Lutava com maestria, mas sua arma não era uma espada, era somente um galho grosso que, mesmo ferindo, não inutilizava os agressores, então eles continuavam vindo.
Ela tentava não entrar em pânico, mentalizando as lições de Kantor sobre o estado de espírito perfeito para o guerreiro, mas seu controle estava no limite. Sabia que a ajuda devia estar a caminho, então tudo que tinha que fazer era resistir.
Mas quando conseguiu olhar na direção de Cris e a viu quase na borda da mata, sendo arrastada por dois mutantes, e vários outros pululando à sua volta, não aguentou mais. Sentiu um nó em seu estômago e o suor sobre sua pele ficou frio.
Ela sabia o que era aquilo. Era medo!
Mas o medo rapidamente se transmutou em seu primo mais próximo, o ódio. Sentiu-o crescer em seu peito e se entregou a ele.
Gritando, avançou sobre os mutantes com fúria redobrada, mas a resposta foi idêntica na intensidade.
Mais monstros saíram da floresta e começaram a atacá-la com sua lanças curtas de pontas de ferro enferrujadas e machados toscos.
Ana recuou. Suas pernas se chocaram com o muro onde ela, Cris e Mirna estiveram sentadas há pouco.
Ela caiu para trás, mas agilmente torceu o corpo e apoiou as duas mãos no chão, logo atrás do muro, e num salto acrobático se pôs em pé.
Mas um dos mutantes, um dos maiores entre eles, subiu no muro e se jogou contra ela, acertando-a em cheio no peito e derrubando-a.
O ser caiu sobre ela e só não fechou os dentes em seu pescoço porque Ana atravessou o galho que usava como arma em frente a seu corpo, conseguindo com isso segurar o mutante, com sua boca pútrida a poucos centímetros de seu rosto.
Ela se debatia, tentando tirá-lo de cima dela, mas o chão coberto de folhas mortas não lhe dava um bom apoio. Viu com o canto dos olhos outros dois mutantes se aproximando pela direita e pela esquerda.
Achou que era seu fim, mas então ouviu um zunido cortar o ar e, mesmo sem poder olhar direito, pois estava concentrada em manter o mutante longe dela, não viu mais os outros dois que se aproximavam pelos lados.
Houve outro zunido, e as pontas de uma flecha brotaram das laterais da cabeça do monstro que estava sobre ela.
O ser ficou estático, com a boca escancarada, ainda olhando para ela, como se seu cérebro deformado demorasse para perceber que estava morto. A pressão afrouxou e Ana o jogou para o lado.
Uma mão a levantou do chão. Ela ficou em pé, imediatamente em guarda, e alguém se postou atrás dela, de costas para ela.
Ana não precisou olhar para saber quem era.
— Deixe que eu me viro aqui! Vá salvar a Cris!
— Ela vai ficar bem! — respondeu Carlos. — Estou preocupado é conosco!
Realmente, à volta deles, um grupo enorme de mutantes fechava o círculo, rosnando e babando.
— Use as flechas! — exclamou Ana.
— Infelizmente só tinha aquelas três, mas o arco vai servir para alguma coisa.
E segurando o arco à guisa de espada, e Ana ainda segurando o galho, começaram a lutar por suas vidas.
Cris desmaiou por um segundo. Voltou a consciência sentindo suas coxas sendo arranhadas.
Olhou para baixo e viu um mutante tentando afastar-lhe as pernas, para tentar chegar ao bebê ainda em seu útero.
Juntando o que lhe restava de forças, conseguiu chutá-lo no rosto, fazendo com que caísse pesadamente para trás.
Com o nariz escorrendo algo que parecia sangue, só que muito mais escuro, ele voltou a atacar, e Cris se defendeu como pôde, desferindo chutes a torto e a direito.
Mas logo a dor fez com que se encolhesse novamente, e o mutante voltou a se aproximar.
Ela olhou para cima, para os dois monstros que continuavam a arrastá-la em direção à floresta.
A inconsciência voltou a tentar dominá-la, e Cris pensou por um instante em se entregar a ela, se entregar à escuridão, onde não havia monstros, nem dor, nem nada.
Ficou olhando para as cabeças dos seres que a arrastavam, para suas deformidades, quando algo estranho aconteceu. As cabeças deles desapareceram.
Ficou ali, naquele estado de quase inconsciência, olhando os corpos que lentamente caíam ao chão, sem saber se estava sonhando ou o quê. Percebeu que não era mais atacada também por baixo.
Uma sombra caiu sobre ela.
Não era a escuridão que havia desejado, mas ali, naquela penumbra, ela sentiu uma presença que a fez se tranquilizar, uma presença que afastaria os monstros e a dor.
Ela se encolheu em posição fetal, abraçando sua barriga, abraçando seu bebê.
Daniel estava ali com ela.
Com o machado firme nas mãos, Daniel se postou protetoramente sobre Cris.
Ela havia se encolhido sob ele, parecendo ter perdido os sentidos, e ele não tinha como verificar se estava bem, pois outros mutantes se aproximavam.
O grupo atacou.
O machado fez um giro de 180º.
Mãos, braços e sangue voaram pelo ar. Houve guinchos de dor e raiva.
Daniel avançou dois passos e enterrou a lâmina em alguns pescoços, destroçando tudo, até a coluna vertebral, depois voltou à sua posição original, em guarda.
Kantor lhes falara sobre aquelas criaturas. Se agora eram seres hediondos, seus antepassados tinham sido seres humanos normais.
Durante o cataclismo atlante, muitas usinas nucleares sofreram vazamentos e explosões, e gerações de terráqueos, abandonados à própria sorte, continuaram a viver nestas regiões, principalmente no norte de planeta.
O resultado, além das mortes por envenenamento radioativo, foi o nascimento cada vez maior de pessoas com deformidades físicas e mentais que, procriando entre si, criaram uma espécie que foi tachada de mutante pelos atlantes e demais terráqueos.
Execrados, se retiraram para viver nos túneis e subterrâneos das antigas cidades, onde ao longo dos séculos perderam todo seu vínculo com a humanidade.
Depois, em grandes migrações, vieram para o sul.
As grandes colônias de mutantes existiam sob os locais onde houve metrópoles sul-americanas, mas de tempos em tempos, e sem um motivo claro, grupos saíam a vagar pelas terras, onde se esgueiravam pelas florestas que agora cobriam o planeta, se alimentando de cadáveres, de crianças ou de pessoas isoladas que conseguissem capturar, fossem elas atlantes ou terráqueas.
O império tentou por várias vezes exterminá-los, promovendo grandes morticínios, mas os mutantes sempre ressurgiam de suas alcovas escuras, e agora tudo que Atlantis fazia era eliminar os grupos que por acaso conseguia encontrar, para controlar o crescimento de sua população.
Kantor dizia que, apesar de perigosos, eram dignos de pena, pois eram apenas mais uma das vítimas do que os atlantes haviam feito àquele planeta.
Mas Daniel não sentia pena.
Não sabia se os que estava matando eram homens, mulheres ou crianças, e não se importava com isso. Naquele momento, eram apenas inimigos que ameaçavam a si e a seus amigos.
Um mutante avançou mais que os outros. Daniel enterrou fundo o machado em seu grande crânio, fazendo com que ele ficasse preso por instantes.
Outro mutante deu um golpe com algo que parecia uma foice e cortou o cabo do machado, cuja lâmina tombou junto do corpo do primeiro.
Num ato contínuo, o rapaz enfiou o cabo pontiagudo de madeira que ficou em sua mão no pescoço do segundo atacante e perdeu ali sua última arma.
Daniel rosnou alto, arreganhando os dentes. Os monstros hesitaram. Aquele ser parecia ainda mais perigoso desarmado.
“Devia ter trazido uma espada”, pensou Daniel durante os segundos de hesitação dos atacantes.
— Daniel!
Olhou na direção de onde gritaram seu nome. Era Pedro, que trazia uma espada consigo. O rapaz lançou a arma no ar.
“Longe demais!”, pensou Daniel, exasperado.
Mas a arma veio em um movimento circular contínuo em direção a ele, e então percebeu Pedro com a mão esticada, concentrado na espada no ar.
Ele estava usando de Primanergia para fazer a arma chegar até Daniel, que admirou o primo naquele instante, do quanto evoluíra no aprendizado que Kantor proporcionava.
Três mutantes atacaram no mesmo instante em que ele segurou a arma. Fez a espada girar e cortou os três ao meio, em pleno ar, fazendo voar sangue e vísceras.
Mais seres chegaram e se atiravam alucinadamente contra a lâmina. Pedaços de corpo e sangue negro se espalhavam pelo chão, mas eles continuavam vindo.
Daniel viu em um relance que Ana e Carlos também estavam cercados e quase dominados pelos monstros. Viu alguns deles correndo em direção a Pedro e Mirna, que não obedeceu à ordem de voltar para o templo.
Uma onda de desespero começou a tomar conta dele.
Sentiu como se algo começasse a romper dentro de si e o calor de um ódio incomensurável ameaçasse tomar sua alma.
Neste instante, houve um clarão de luz branca cegante e um som estridente que parecia penetrar o cérebro.
Daniel se encolheu e quase largou a espada, mas percebeu que aquilo afetava muito mais os mutantes, que, com gritos desesperados, debandaram em direção à floresta.
O rapaz levantou os olhos e viu Kantor com as mãos levantadas e uma fisionomia furiosa próximo a Pedro e Mirna, e entendeu que foi ele quem gerou a luz e o som.
Largando a espada, Daniel se abaixou em direção a Cris. A levantou do chão, apoiando suas costas e abraçando-a contra seu peito.
— Cris, você está bem?!
Ela pareceu acordar de um sonho e trincou os dentes com dor.
— Minha bolsa… Minha bolsa rompeu!
O velho e os demais já haviam se acercado dos dois.
— Venha, Daniel! Traga-a para dentro, rápido! Carlos, cubra nossa retaguarda, pois os mutantes vão voltar!
Realmente, já se viam algumas sombras se movendo na borda da floresta.
Carlos recolheu a espada que Daniel jogou ao chão e se postou em guarda. Ana pegou outro galho e quis se colocar ao lado dele, mas Kantor a puxou pelo braço.
— Não! — exclamou ele. — Eles estão extremamente perigosos neste momento, pois estão frustrados e furiosos por retirarmos sua presa! Vamos rápido para a segurança do campo de força!
— E por falar nisto, o que diabos aconteceu com o campo?! — perguntou Daniel, furioso. — E a proximidade destes monstros não deveria ter sido detectada?!
— Depois falamos disso! — cortou o sacerdote. — Atenção, Carlos, eles estão vindo!
Quatro mutantes precederam os demais, lanças em punho.
Carlos rebateu-as enquanto caminhava de costas. Fez um corte em meia lua para manter os atacantes afastados, enquanto seus amigos chegavam ao limite do campo de força.
— Venha, Carlos, rápido! — chamou Kantor.
O jovem girou nos calcanhares e correu com os mutantes em seu encalço.
Assim que passou pelo limite, os mutantes se chocaram contra o campo, caindo desnorteados.
Os demais chegaram e, pisoteando os que haviam caído, ficaram pulando, rosnando, babando de encontro ao campo, como moscas se chocando contra o vidro de uma janela.
— Vamos levar Cris para dentro! — disse Kantor.
— E estas coisas? — perguntou Carlos apontando para a massa disforme que ainda atacava o campo. — Vamos deixar aí?
— Eles se cansarão — respondeu o velho. — Vão se alimentar de seus mortos e ir embora.
Alguns dos mutantes já se atiravam sobre os restos ensanguentados que jaziam pelo chão.
Carlos fez cara de repugnância.
— Tomara que tenham uma indigestão.
O grupo correu para o templo, adentrando a enfermaria nos aposentos de Kantor.
— Coloque-a aqui.
Daniel depositou Cris suavemente sobre uma maca elevada. Ela respirava de forma entrecortada e parecia sentir muita dor.
— As contrações estão fortes… — gemeu Cris.
Kantor passou a mão pela testa suada dela.
— Não se preocupe, filha. Tudo acabará em breve, e você nem sequer se lembrará destes momentos quando tiver seu bebê nos braços. — Ele se virou para os demais. — Agora, quero vocês todos fora daqui.
— Eu vou ficar! — disse Daniel resoluto.
— Você, mais do que ninguém, não deve ficar.
— Mas é meu filho! — argumentou com firmeza.
— Com certeza — contemporizou o velho —, mas olhe para você, coberto de sangue mutante dos pés à cabeça, é um risco ambulante de contaminação. Melhor se lavar para poder segurar seu filho assim que ele nasça.
Daniel olhou para si mesmo. Realmente estava coberto de sangue escuro, e concordou relutante.
— Além do que — completou Kantor —, você está muito estressado, com a adrenalina em alta devido ao ocorrido há pouco. Tudo o que menos preciso é de alguém nervoso, emitindo energia pesadas aqui dentro. Este é um momento que exige paz e boas vibrações.
— Tá bom! Tá bom! — respondeu Daniel. — Já entendi e estou indo.
Ele curvou-se sobre Cris, depositou-lhe um beijo na testa e sussurrou-lhe algumas palavras ao ouvido.
— Quer que eu fique para ajudar? — perguntou Mirna, sempre prestativa.
— Obrigado, Maitea, mas prefiro que cuide de Daniel. Mantenha-o calmo.
Ela assentiu. Beijou Cris e foi se retirando.
Os demais fizeram o mesmo.
— Pedro, quero que você fique — disse Kantor.
— E.. eu? — gaguejou o rapaz.
Daniel girou nos calcanhares, irado.
— Mas por que ele pode?! — esbravejou.
— Sim, Pedro — respondeu Kantor, ignorando Daniel. — Pois não será o primeiro bebê que precisará ajudar a vir ao mundo.
— Mas... — iniciou Daniel, mas o velho o interrompeu.
— Mirna, por favor — pediu com um aceno.
A garota segurou a mão de Daniel.
— Venha, Brediu. Vamos aguardar lá fora.
Como sempre acontecia quando Mirna o tocava, ele pareceu se acalmar, mas não muito, pois a seguiu com expressão contrariada.
Meia hora havia se passado desde que os jovens saíram dos aposentos de Kantor e se postaram a esperar no corredor.
Daniel, descontados os dez minutos que levou para se limpar, passou esse tempo andando de um lado para o outro.
Mirna e Ana estavam sentadas em um banco, e Carlos recostado na parede.
Era possível ouvir os gritos de Cris, um ou outro respirar mais forte, e a voz abafada, mas confortadora, de Kantor dando instruções.
Ana se encolhia a cada grito, abraçando a si mesma, assustada.
— Acho que não vou querer ter filhos — disse em um fio de voz, mais para si do que para os outros.
Mirna, que estava a seu lado, orando, abriu os olhos e a encarou.
— Não diga isso. A maternidade é algo divino, o que torna a mulher completa e a aproxima do criador, a coloca em um ponto primordial do ciclo natural da vida.
Ana a olhou de lado.
Aprendera a amar Mirna, mas não conseguia aceitar a visão da menina para várias coisas, e as duas sempre debatiam longamente.
Mas hoje ela não estava para conversa.
— Mirna, fica quietinha, por favor!
Carlos resolveu se manifestar.
— Ela está certa, Ana. Você não deve rejeitar o “ciclo natural da vida”. Ter bebês é algo lindo, saudável. Fazê-los também.
Ela deu de ombros.
— Não tenho muita certeza com relação a isso também.
— Tá vendo. Você precisa se posicionar dentro do ciclo. Para isso, sugiro começar a treinar com a base, ou seja, fazer bebês.
Ana o encarou, furiosa com o sorriso cínico no rosto dele.
— Eu prefiro treinar com minha espada na base do seu pescoço, isso sim!
Daniel parou de andar e os fuzilou com o olhar.
— Dá para vocês calarem as bocas?
Foi a vez de Carlos estrilar:
— Relaxe aí, Daniel! — E, voltando-se para Ana, acrescentou: — E você também, garota! Foi só uma brincadeira!
— Eu não gosto de suas brincadeiras! Elas me irritam, me constrangem!
Ela voltou a se abraçar com força, com expressão zangada.
Carlos a olhou por um tempo e depois disse:
— Tudo bem, me desculpe. Vou parar com estas brincadeiras, ok?
Ela não respondeu. Carlos voltou a falar:
— Você agiu bem lá fora, com os mutantes.
Ana relaxou um pouco, mas parecia contrariada.
— Não muito — respondeu. — Esqueci tudo o que Kantor ensinou, deixei o desespero tomar conta de mim.
— Você segurou as pontas, isso é o que importa — disse Carlos. — Conseguiu ganhar tempo até que a ajuda chegasse. Não é verdade, Dan?
Daniel parou e olhou para eles.
— Sim, é verdade. E não se chateie por não ter conseguido manter o controle. Eu também estava quase perdendo o meu. Se Kantor não chegasse…
Ele foi interrompido por um grito de Cris, o mais alto de todos até aquele momento. Depois houve um longo silêncio, em que todos ficaram imóveis.
O silêncio foi quebrado por um som baixo e agudo, que foi crescendo em intensidade. Era o choro de um bebê!
Depois houve silêncio novamente, por um tempo preocupantemente longo.
— Eu vou entrar lá! — anunciou Daniel, se dirigindo para a porta, mas antes que fizesse algo, alguém a abriu pelo lado de dentro.
Pedro saiu, pálido e desnorteado. O primo o agarrou pelos ombros e o sacudiu.
— E aí?! O que aconteceu?!
Ele o encarou e sorriu.
— É… é um menino! Lindo…
O primo o soltou e correu pela porta aberta e, se Carlos não o amparasse, Pedro teria caído ao chão.
Daniel se deteve do lado de dentro do aposento.
Kantor veio ao seu encontro com um sorriso satisfeito. Deu dois tapinhas afetuosos no ombro no rapaz antes de se retirar.
Ele se aproximou da maca e viu um pequeno embrulho se remexendo ao lado de Cris.
Ela o olhou com expressão cansada, mas com toda a felicidade do mundo em seus olhos. Voltou depois o rosto para a pequena face que surgia por entre as dobras de um cobertor em seus braços.
— Olhe só — sussurrou ela —, seu papai chegou. Diga olá para ele.
Daniel se reclinou, extasiado.
— Olá, pequeno viajante –— disse. — Seja bem-vindo.
Ele e Cris riram e ficaram admirando o pequeno ser.
— Ele é tão bonito — disse Daniel.
— Se parece com você, Dan.
— Pode ser, mas no resto espero que seja igual a você. Que nome colocaremos nele?
— Você me deixa escolher?
— Foi o que combinamos.
— Lembra-se de quando Kantor nos contou a história de Atlantis? Ele falou de um antepassado seu... dos Agar, que fundou a capital Poseidia e reergueu o império quando a primeira capital submergiu. Falou de como ele era sábio e justo. Darian era seu nome e, em atlante arcaico, significa algo antigo e belo. É este o nome que quero colocar em nosso filho.
— E seria prudente colocar o nome de um imperador Agar em um mundo dominado por seus inimigos?
— Kantor disse que isso é história proibida, que ninguém mais a conhece. E qual a probabilidade de nosso filho vir a conhecer outro atlante, além de Mirna e Kantor?
— Se depender de mim, nenhuma — respondeu Daniel. – Que seja, então, Darian.
Ele acariciou o rosto do bebê com a ponta dos dedos.
— Que você seja tão sábio, justo e forte como aquele que carregou este nome, meu filho!