Daniel mergulhou em um lago profundo e escuro.
O toque frio da água em sua pele ressequida era um alívio, depois de dias sob o sol escaldante.
Ele ainda tinha sede. Muita sede. Mas seus lábios secos estavam selados.
Em vão, tentava separá-los para aproveitar da refrescante água que o envolvia.
Em um esforço hercúleo conseguiu abrir a boca, e a água revigorante desceu por sua garganta sedenta.
Quando satisfeito, tentou fechar a boca, mas não conseguiu. A água entrava aos borbotões sufocando-o, impedindo-o de respirar.
Ele se debateu em desespero diante do afogamento eminente.
— Beba devagar, ou vai se engasgar! — disse uma voz vinda através da água escura.
Ele conseguiu fechar a boca, tossiu, abriu os olhos, e luzes coloridas piscaram à sua frente, antes de um novo mergulho na escuridão.
Mas, antes disso, teve a impressão de vislumbrar uma abertura cercada de véus esvoaçantes e, através dela, o deserto que se estendia até o horizonte, onde o sol se punha.
A água novamente desceu por sua garganta, mas desta vez de forma controlada, suave.
Abriu novamente os olhos e viu um céu de tecido.
Recortado contra ele havia um rosto cercado por uma aura avermelhada. Aqueles traços lhe eram familiares, mas os detalhes estavam embaçados.
Virou de lado e lá estava novamente a abertura por onde via o deserto.
Demorou para perceber que estava em uma tenda, deitado em um leito macio. Tentou se levantar, mas uma mão pequena o segurou pelo ombro, no mesmo lugar onde as garras daquele ser se cravaram, lembrava ele.
Mas não havia dor, e agora ele percebia que aquelas não haviam sido, e sim os dedos de uma mão, muito mais rudes do que aqueles que o tocavam agora, mas eram dedos humanos.
— Fique deitado, Daniel! Você ainda não está bem!
Ele se deitou e encarou aquele rosto.
Como não o reconheceu da primeira vez, mesmo embaçado?
O reconheceria entre milhares, milhões de outros. Um misto de surpresa e ternura o tomou de assalto.
— Cris?! — sussurrou ele.
Ela colocou a mão sob sua nuca, levantando sua cabeça.
— Tome, beba mais um pouco — disse levando um recipiente aos lábios dele.
Ele abriu a boca enquanto a encarava, aturdido. O líquido desceu por sua garganta, mas não era mais a água refrescante de há pou-
co. Havia nela agora um gosto ácido e enjoativo.
Ele virou o rosto de lado e cuspiu o líquido.
— O que é isto? — perguntou ele enquanto limpava os lábios com a manga da camisa.
— É leite de camela diluído em água. É para reidratá-lo — informou ela.
Daniel se sentou na cama e olhou tudo em volta com estranheza.
Estava em uma tenda alta, relativamente grande. Era feita de tecido verde-claro com estampas indistintas em dourado.
Havia outras camas ali, e almofadas coloridas, potes e jarros, bem como alguns baús feitos em madeira trabalhada, e havia véus e tecidos leves por todos os lados, compondo uma imagem colorida e agradável, que trazia frescor e aconchego ao ambiente.
Presos ao mastro central, cristais emitiam uma luz suave que ia aumentando de intensidade enquanto o dia escurecia lá fora.
Daniel imaginou que estava delirando.
Devia ainda estar caído no deserto, com os pigafors devorando suas entranhas. Olhou para a garota que estava ajoelhada ao seu lado encarando-o.
Tocou o rosto dela. A mesma pele macia que conhecia tão bem.
— É você mesmo, Cris? — perguntou em um sussurro.
— Sim, sou eu — respondeu a garota. Havia uma certa dureza nas palavras e nos olhos dela.
— Mas… como? Onde…? E Darian? Onde está? — perguntou Daniel, confuso.
— Darian ficou com Kantor.
— Com Kantor? Como pôde deixá-lo lá? — perguntou Daniel com rispidez.
Cris se levantou de um pulo e pregou-lhe um tapa no rosto.
— Por sua causa, seu idiota irresponsável!
A cabeça de Daniel, que ainda não estava totalmente lúcida, girou, e ele voltou a ver luzes diante de seus olhos.
Quando focou novamente a visão, viu três figuras paradas na entrada da tenda. Eram Carlos, Pedro e Ana.
Carlos reclinou-se em direção a Pedro.
— Acho que não chegamos em um bom momento. — Daniel o ouviu dizer.
— Pior para ele — respondeu Pedro, taciturno. — Temos que resolver logo isto e voltar.
Eles se aproximaram.
— Vocês também estão aqui? — perguntou Daniel, surpreso.
Carlos abriu os braços.
— Pois é, amigão! Graças a você, com esta sua mania de fazer turismo em lugares inusitados! Cavernas nas montanhas, desertos no fim do mundo!
Pedro disse, sério:
— Não é momento para brincadeiras, Carlos.
O rapaz rebateu:
— Ah, mas eu tenho que brincar, pois do contrário vou bater na cara dele que nem a Cris bateu!
Ignorando o teor da conversa dos dois, Daniel perguntou:
— Mas como vocês vieram parar aqui?
Foi Carlos quem explicou, pois os outros três estavam taciturnos e calados:
— Bem, depois que demos pela sua falta, tivemos que “capturar” a rebeldezinha aqui. — Carlos apontou para Ana, que, de braços cruzados, fazia até bico de tão emburrada que estava. — Ela não quis nos dizer nada sobre você, então a levamos até Kantor. Achávamos até então que ela tinha te matado e escondido o corpo.
Ana se manifestou:
— Olha, quero dizer mais uma vez que me senti extremamente ofendida por vocês…
— Cale-se Ana! — disse Cris com rispidez, fazendo a menina fechar-se mais emburrada ainda.
Até Carlos pareceu se assustar com a atitude agressiva de Cris, mas continuou:
— Bem, diante de Kantor não precisou que ele olhasse duas vezes para ela contar o que tinha acontecido.
Daniel se virou para Ana:
— O velho foi muito duro com você?
Antes que ela respondesse, Pedro interveio:
— Não tanto quanto ela merecia!
Ele parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas Carlos o cortou:
— Ele só balançou a cabeça e disse: “Guardiões”, e ficou resmungando alguma coisa.
Pedro retomou a carga:
— Só não conseguimos arrancar dela o porquê de ter te ajudado!
— Eu a chantageei — respondeu Daniel de forma direta.
— Ah, chantageou! — continuou Pedro. — E o que, por acaso, você sabe que possa obrigá-la a fazer o que fez?
Ana olhou para Daniel, abrindo desmesuradamente os olhos.
Daniel deu de ombros.
— Não é da sua conta.
Pedro se remexeu, incomodado.
— Quer dizer que teremos segredos entre nós? — perguntou ele, desenxabido.
Cris interveio:
— Isso não vem ao caso agora. O fato é que, como punição, Kantor ordenou que Ana viesse atrás de você. Eu não poderia deixá-la vir sozinha, então vim, mesmo deixando meu filho para trás. Fiz isto também por ele, pois como poderia amanhã dizer a ele que não sabia o que tinha acontecido com o pai.
— E eu não poderia deixar Cris vir apenas com Ana — disse Carlos.
— Nem eu — completou Pedro.
— Tá, mas como foi que me acharam? Como chegaram aqui? Aliás, onde estamos?
— Estamos em um acampamento cigano — respondeu Carlos. — O líder aqui é Orlev, amigo de Kantor, que pediu ajuda para achá-lo. No final daquele dia que você sumiu, Kantor nos disse que recebeu informações de que alguém forçou a entrada numa das fronteiras da capital, em lugar chamado Tu….Tupoc...
— Turoc — corrigiu Daniel.
— Isso! — confirmou Carlos. — Ah, então foi você mesmo! Kantor achou que tinha sido. Ele nos despachou a cavalo até o litoral, para uma vila terráquea de pescadores onde um homem nos aguardava com um barco pesqueiro. Era um atlante, outro amigo de Kantor.
— Pelo visto, nosso velho tem muitos amigos — observou Daniel com acidez.
— Verdade — confirmou Carlos. — Engana bem aquela imagem de isolamento que ele passa.
— Ele ajudou muitas pessoas ao longo de sua vida — defendeu Pedro. — Fez amigos leais que retribuem a ajuda que eles ou seus antepassados receberam de Kantor. Só isso.
— Como eu já disse uma vez, ele criou foi uma máfia, uma rede! — rebateu Daniel.
— Rede essa que salvou sua vida — observou Pedro.
— Não sei se foi só isso — respondeu Daniel, pensando no que ouvira no cargueiro que o trouxe de Agóz.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Pedro.
Carlos interveio:
— Ele não quer dizer nada! Os miolos dele cozinharam e ele não diz coisa com coisa, agora deixem terminar de contar como chegamos aqui! Bem, depois de alguns dias no mar desembarcamos em uma pequena enseada escondida. Lá, alguns homens de Orlev nos esperavam com cavalos. Nos levaram até a borda do deserto onde havia uma grande planície. Embarcamos em uns veículos muito maneiros, como se fossem pequenos barcos a vela e com rodas que usavam o vento para se mover. Foram dois dias “navegando” pelo deserto. Chegamos aqui no acampamento ontem no final da manhã. Eles já tinham te encontrado, não muito longe daqui, mais morto que vivo, e estavam te reidratando. Depois Cris assumiu os cuidados. Foi isso.
— Não esperávamos encontrá-lo com vida — disse Pedro.
— Decepcionado? — perguntou Daniel, mordaz.
Pedro ficou pálido e seus olhos chegaram a marejar.
— É claro que não! Eu… — O rapaz emudeceu.
Daniel olhou para o chão, arrependido por ter falado aquilo, mas não se desculpou.
— Você só diz besteiras, Daniel! — disse Cris com dureza. — E só faz besteiras! Mas agora acabou. Vamos voltar para casa amanhã!
Daniel se pôs em pé. A tontura e a vista embaçada haviam sumido e ele sentia-se bem melhor.
— Eu não vou voltar — disse ele encarando Cris com firmeza.
Carlos abriu os braços, confuso.
— Como assim?
— Não cheguei até aqui para desistir — respondeu Daniel. — Ou volto com Mirna ou não volto, e nenhum de vocês pode me impedir.
— Eles não podem, mas eu posso.
Todos se voltaram para a entrada da tenda, totalmente tomada pela figura de um homem alto e forte, com as mãos na cintura, de cabelos negros e compridos, amarrados em um rabo de cavalo.
Sua pele era morena, tostada pelo sol, e seus olhos eram tão negros quanto seu cabelo. Usava camisa e umas calças folgadas de tecidos coloridos, e brincos de ouro, bem como várias correntes e pulseiras do mesmo material.
Apesar da firmeza com que dissera a frase, ele sorria. Era possível ver incrustações de ouro em seus dentes.
Daniel se encrespou:
— E quem é você para achar que pode me dizer o que posso ou não fazer? — perguntou rudemente.
Carlos se inclinou em direção a ele e sussurrou:
— Este é Orlev, o líder do acampamento. Foi ele quem achou você no deserto.
Ele encarou o homem por alguns segundos, depois fez um leve aceno de cabeça, mas sem tirar a expressão beligerante do rosto.
— Então tenho que lhe agradecer por salvar minha vida.
Orlev levantou uma das mãos.
— Não é preciso. Fiz isso por Kantor, que é um velho amigo de meu povo. Quando ele fez contato telepático com nossa anciã e implorou por ajuda, não medimos esforços para encontrá-lo. Aquele velho gosta muito de você, rapaz!
Daniel riu, zombeteiro:
— É, eu sou muito precioso para ele.
Orlev manteve o sorriso, mas seu olhar era frio quando respondeu a Daniel:
— Vê-se que não conhece Kantor, pois, se conhecesse, não debocharia de suas intenções.
Daniel não se abalou com a reprimenda:
— Tudo bem, então. Não preciso lhe agradecer e você agora sai da minha frente.
O homem balançou a cabeça, parecendo divertir-se com a insistência do rapaz:
— Isso não vai acontecer. Prometi a Kantor que, se te encontrasse, vivo ou morto, o mandaria de volta. E é isso que farei amanhã logo cedo, com você e seus amigos.
Daniel deu um passo.
Neste último um ano e meio ele havia crescido e encorpado, mas Orlev era um homem adulto, no auge de sua forma. Mas Daniel não se intimidou.
— Você e mais quantos farão isso? — perguntou olhando desafiador para o homem em sua frente.
— Daniel! — repreendeu-o Cris, dando um passo à frente e segurando-o pelo braço.
— Eu e mais os outros oitenta homens do meu clã, se for preciso — respondeu Orlev, também o encarando. Ele se deslocou de lado e puxou o pano que fechava a entrada da tenda. — No momento, tenho seis aqui fora, mas posso chamar mais.
Os seis homens olharam diretamente para Daniel, de forma intimidadora.
Todos usavam roupas coloridas como Orlev, e alguns tinham turbantes na cabeça. Um deles levava um porrete.
Foi a vez de Daniel sorrir.
Em sua mente, desenhou a forma como poderia derrubar Orlev
e os outros. Sabia que podia fazer isso mesmo com as mãos limpas.
Mas haveria uma briga generalizada, e Cris com certeza interviria e poderia sair machucada. Por ora, era melhor recuar e aguardar outro momento.
Abandonou a postura beligerante e se sentou na beirada do catre.
— Boa decisão — disse Orlev sorrindo e dispensando os outros homens com um aceno de cabeça. — Mas, para o caso de pensar em fugir depois, saiba que sempre haverá alguém de olho em você.
— Quer dizer então que estou confinado nesta tenda? — perguntou Daniel.
— É claro que não! — respondeu Orlev com efusividade. — Vocês são nossos convidados e faremos uma festa esta noite! Uma festa cigana!
— Uma festa cigana?! — perguntou Ana, saindo do mutismo que mantivera o tempo todo. Em dois pulos estava na frente de Orlev. — Nem me liguei que estávamos entre ciganos! Sr. Orlev, será que… alguém poderia ler minha mão? É que eu queria, bem, confirmar algumas coisas.
Orlev sorriu.
— Se me permitir, bela senhorita, eu mesmo posso ler para você.
Ele pegou a mão esquerda dela.
A mão pequena e branca de Ana pousada sobre a palma enorme de Orlev se parecia com uma pétala pousada sobre uma rocha e, com delicadeza, ele acariciava-lhe a palma com a outra mão, enquanto olhava firmemente para ela. Era como se houvesse um véu sobre ela que ele tentava remover.
Carlos se remexeu.
— É preciso alisar tanto assim? — perguntou ele, baixinho, para ninguém em especial.
O cigano olhou para ele e sorriu.
As luzes dos cristais rebrilharam em seus dentes de ouro. Ele fechou a mão de Ana e, mantendo-a entre as suas, disse:
— Ele ainda a aguarda, e vai aguardar o tempo que for necessário.
— Obrigada! Mesmo! — disse ela, enrubescida e feliz.
Carlos fez um muxoxo:
— Tá falando do rei, não é? Coitado, não sabe o que o espera.
Orlev riu alto.
— Espero vocês em breve para nossa festa. Até mais, meus amigos.
E ia saindo quando parou e voltou:
— Uma última coisa — disse ele se dirigindo a Daniel. — Quando trocamos suas roupas, havia sangue negro nelas, sangue de shakluir. O que significa isso?
Daniel o encarou de má vontade. Pareceu por um momento que não ia responder, mas endireitou o tronco e disse:
— Eu matei um. Com minha espada.
Orlev o olhou com admiração genuína.
— Você é realmente excepcional, rapaz! Atravessou sozinho o deserto de sal e ainda por cima matou um dos demônios da areia usando apenas uma espada. Muitos homens, armados até os dentes, não conseguiram tal feito. Meu povo contará histórias sobre você durante eras!
Daniel deixou os ombros caírem.
— Grande coisa. No final, não adiantou nada.
— Não fique assim — disse Orlev. — Se te serve de consolo, te encontrei a três quilômetros a noroeste daqui. — Ele se dirigiu até a porta e puxou o pano para o lado. — Vê aquela luminosidade no horizonte? — A noite havia caído sobre o deserto e uma luz tênue se projetava sobre as dunas não muito distantes, se destacando contra o céu negro.
— Ali é Poseidia! Você chegou perto, rapaz, muito perto!