Daniel encarou Carlos.
“Como vocês são chatos!”, foi o que teve vontade de falar, mas só não o fez por causa de Carlos, pois eram amigos desde a infância, e o considerava um irmão. Provavelmente era por isso que o tinham escolhido como porta-voz do grupo.
Deixou então de lado sua arrogância costumeira e contemporizou:
— Olha só, Cacá, é claro que as cavernas não ficam na cidade, teremos que subir um pouco mais. E não foi por isso que trouxemos barracas? Para acampar na caverna, na montanha? Já conhecemos lugares maravilhosos: Buenos Aires, Mar Del Plata, Mendoza. Ficamos em ótimas pousadas, comemos bem, e agora — ele abriu os braços, abarcando a paisagem majestosa dos Andes — só faltava esta maravilha para coroar nossa viagem.
Carlos suspirou e revirou os olhos.
Daniel agora o mirou de forma dura. Fora até o limite de sua curta paciência. Não pediria mais. Se fosse preciso os largaria ali e seguiria sozinho.
O amigo, que o conhecia tão bem, percebeu isto e cedeu:
— Tá bom, Dan. Que seja! — E fez um aceno com a cabeça, instando os demais a prosseguir.
Entre suspiros desanimados e caras emburradas, se puseram a caminho.
Daniel se inclinou em direção a Carlos:
— Valeu pela força. Você vai ver como vai valer a pena.
O outro sorriu e encarou o amigo:
— Espero mesmo que valha. O pessoal está por aqui com você, principalmente a Cris.
O rapaz virou o pescoço e olhou rapidamente para a namorada, que caminhava mais atrás. Ela levantou os olhos castanhos.
Daniel lhe sorriu, mas ela não retribuiu, voltando a olhar para o chão.
— Ela ainda está brava pelo que aconteceu em Mendoza? — perguntou. — Que exagero. Aquilo não foi nada.
— Como não foi nada? Ana te flagrou saindo do quarto da Luísa logo pela manhã.
— Ana é uma fofoqueira. Calhou de a Luísa estar hospedada na mesma pensão e a garota deu brecha. O que eu deveria fazer?
Carlos olhou estarrecido para ele:
— Você fala como se tivesse acontecido por acaso. Sei que combinou com ela ainda no colégio, você mesmo disse.
O amigo deu de ombros:
— Bom, como eu disse, não foi nada e já passou. Logo Cris esquece.
— Como todas as outras vezes, né? Só que agora ela não está brava, está triste. Muito triste. E me dói demais vê-la assim. Amo você, Dan, como amo meu irmão, mas amo Cris, afinal a conheço também desde que éramos crianças.
A amizade entre Carlos e Cris era muito profunda, coisa de abrirem o coração e confidenciarem um ao outro em um nível que não acontecia com Daniel. Mas este não tinha ciúmes. Entendia a relação dos dois. Era algo praticamente espiritual, almas gêmeas.
— Pode deixar, Cacá, depois vou me desculpar com ela. E prometo que isso nunca mais vai acontecer — disse Daniel.
Carlos suspirou. “Como todas as outras vezes”, pensou, mas disse:
— É, eu sei.
Daniel passou o braço sobre os ombros do amigo e sussurrou:
— Ei, que tal, depois de aqui, irmos para Bariloche, antes de voltarmos para casa? Está cheio de gatas lá.
Carlos não pôde deixar de rir.
— Você não presta mesmo, cara — disse em tom de brincadeira. — Eu até topo ir, mas não sei se os demais vão querer.
O amigo deu-lhe um tapa afetuoso nas costas e, sorrindo cinicamente, disse:
— Conto com você para convencê-los. — Deu uma piscadela e seguiu adiante.
— Argh, será que tem algum lugar decente neste fim de mundo pra gente se aquecer? Estou congelando! — reclamou Ana ostensivamente, caminhando ao lado de Cris.
Carlos se materializou do outro lado e se intrometeu na conversa:
— Se quiser, posso te aquecer, calor é que não me falta.
A loira o fuzilou com seus olhos azuis:
— Já te mandei pro inferno hoje?
— Umas vinte vezes.
— Então vai de novo e, desta vez, fica por lá.
Carlos riu alto. Um de seus passatempos favoritos era perturbar Ana.
Cris se achegou a ele e perguntou timidamente:
— Sobre o que vocês estavam falando?
O rapaz entendeu que era sobre a conversa dele com Daniel.
Mirou os olhos tristes da amiga, emoldurados pelo rosto oval, de maçãs salientes e vermelhas pelo frio. Fios do cabelo castanho avermelhado escapavam do capuz, contrastando com a pele alva.
Ela era bonita, mas mais do que isso, era uma pessoa maravilhosa, bondosa, inteligente, meiga, e Carlos se perguntava como Daniel podia trair uma garota como aquela.
Contraiu os lábios e pensou por instantes se devia mentir ou não. Se fosse sincero, isso só ia machucá-la mais ainda.
— Falávamos sobre o que aconteceu em Mar Del Plata — começou. O olhar dela se fixou nele com ansiedade. Ana também o olhou. — Ele, é…. está envergonhado pelo que fez e quer muito te pedir desculpas. Na verdade, está arrasado.
Cris suspirou, cruzou os braços, abraçando a si mesma, e olhou para o chão pensativa.
Então ele fizera mesmo? Alimentava uma tênue esperança de que Ana estivesse enganada, que desta vez ele não a estava traindo.
Ana esbravejou:
— Arrasado? Eu vi a cara de arrasado dele quando saiu do quarto da Luísa! Cafajeste!
— Para com isso! — Carlos a cortou, furioso. — Essa sua
atitude não ajuda a melhorar o ânimo da Cris, pô!
— Desculpa! — disse ela abanando as mãos. — Mas é que esse cara me irrita! — E apontou para Daniel, sem se preocupar se ele estava ouvindo ou não. — Sinceramente, amiga, não sei por que não dá um pé na bunda dele de uma vez!
— Ana — respondeu Cris pacienciosa —, já te expliquei que é um assunto complicado.
— Sim. De que namoram há anos, que ele foi o primeiro em várias coisas, é o depositário de seus medos, alegrias e tristeza e blá, blá, blá.
— Você só tem quinze anos. Não tem maturidade para entender essas coisas — sentenciou Carlos.
— Falou o “senhor-maduro-dois-anos-mais-velho-que-eu”! — rebateu ela. — Pode ter certeza de que destes assuntos eu entendo.
— Não duvido que entenda — respondeu Carlos com um sorriso cínico —, afinal, você é a “Princesinha do Colégio”, a “Boneca Cobiçada”, que só sai com carinhas mais velhos, os playboys que ganham carro do papai. Imagino todas as coisas das quais você “entende”.
A garota ficou vermelha, mas de ódio:
— Seu desgraçado! Vou arrebentar você!
Trincou os dentes e quis avançar sobre Carlos, sendo detida por Cris.
Ana tinha um metro e meio de altura, era uns vinte centímetros mais baixa que Cris, mas também era uma ginasta treinada, portanto, muito forte. A amiga penava para segurar a menina enfurecida.
— Pare, Ana! Por favor!
Carlos provocava com deboche:
— Deixa ela vir, Cris. Faz tempo que ela está louca para pôr as mãos em mim.
— Eu quero! — berrou Ana. — Mas é no seu pescoço, seu fi….
— Parem, os dois, agora!
Uma sombra providencial entrou no meio, separando definitivamente a briga.
Era Pedro, primo de Daniel.
Mais velho que os demais, aliás, o único maior de idade entre eles, Pedro puxou para si o papel de adulto do grupo e a responsabilidade por todos. Isso o fazia entrar em constante rota de colisão com o primo, pois Daniel se julgava o líder incontestável ali.
— Quanta infantilidade! O que há com vocês dois? Vivem brigando? — perguntou olhando de um para o outro.
— Esse sujeitinho vive me tirando do sério! — exclamou Ana, o dedo em riste.
Carlos levantou as mãos espalmadas e falou calmamente, com ar de inocência:
— Na verdade, essa garota é doida por mim, Pedro. E faz esses barracos pra chamar minha atenção.
— Eu o quê?!
Ana tentou avançar novamente, mas Pedro se interpôs. O movimento dela o desequilibrou e o fez cair sobre Cris.
Os dois não foram ao chão, mas ele acabou abraçando-a e a puxando para junto de si.
Eles ficaram bem próximos, as respirações praticamente se misturando, olhos nos olhos, e Cris viu neles algo que tinha percebido há tempos: a paixão de Pedro por ela.
— E..eu… — gaguejou ele.
— Ei! Desencosta dela!
A ordem imperiosa fez todos estacarem.
Alguns metros à frente, Daniel encarava Pedro furiosamente.
Este largou Cris desajeitadamente.
— Desculpe — murmurou para ela, que anuiu encabulada. E, virando-se para o primo, disse: — Foi um acidente.
— Não, vai ser um acidente para seu lado se encostar de novo na minha garota!
Pedro ficou rubro:
— Está me ameaçando?
— Estou te avisando! E andem logo, que depois de visitar as cavernas, vamos para Bariloche.
O grupo ficou em silêncio, absorvendo aquilo.
— Bariloche? — perguntou Pedro. — Mas isto não estava no cronograma.
— Dane-se o cronograma. Vamos para onde eu decidir — rebateu Daniel.
— Eu topo! — disse Carlos efusivamente, tentando quebrar o clima pesado que se instalara entre Pedro e Daniel. Teria tentado convencer todos na boa, mas o amigo tinha que estragar tudo com aquele jeito de quem chega metendo o pé na porta e gritando ordens.
Olhou para Ana procurando apoio.
— Hum, Bariloche? — perguntou ela, balançando a cabeça, pensativa. — Fui tantas vezes para lá, que já enjoei. Mas, pensando bem... — E abriu um largo sorriso. — Seria ótimo para comprar roupas novas, ficar em um hotel top, tomar um longo banho perfumado para me livrar do cheiro que, provavelmente, vai grudar em mim nesta droga de caverna. Eu topo também!
Pedro interveio:
— Nada disso! Eu prometi aos pais de vocês que estariam de volta a tempo para as provas de fim de ano. — Então apontou para Carlos e Ana e acrescentou: — E vocês dois ainda têm que treinar para as olimpíadas intercolegiais.
— Problema seu se prometeu. Volte sozinho se quiser, mas nós vamos para Bariloche.
Daniel disse isso sem sequer se voltar ou parar de caminhar.
Pedro se sentiu esbofeteado, mas decidiu ficar calado para não entrar em uma discussão com o primo, que, ele sabia, levaria a melhor no final, como sempre fora desde que eram crianças.
Ele se calou, mas Cris não. Numa atitude inédita, ela resolveu desafiar Daniel:
— Não! Não é justo que Pedro quebre sua promessa apenas para alongarmos essa droga de viagem, que já deu o que tinha para dar. Eu quero voltar para casa.
Desta vez, Daniel parou e se virou. Estreitou os olhos ao encarar a namorada, a fúria mal disfarçada na expressão.
Cris tremeu, engoliu em seco, mas manteve sua posição, sustentando o olhar do outro:
— Eu não irei para Bariloche!
Daniel soltou um riso baixo e irônico:
— Veremos... — E continuou a caminhar.
Agora foi a vez de Cris se sentir esbofeteada. Lágrimas brotaram em seus olhos.
“Quem ele pensa que sou? Uma cachorrinha que ele maltrata, depois chama e eu atendo? Não vou para Bariloche, não vou!”, pensou, mas depois se encolheu, angustiada e envergonhada, pois sabia que, no fim, ela iria sim.
O clima no grupo ficou pesado e, em um tácito acordo silencioso, resolveram não falar mais nada e continuar caminhando.
Ana chegou em Cris e passou seu braço pelo dela:
— Amiga, esquece esse negócio de muito tempo, das coisas que já aconteceram, e dá um fim nisso. Já passou dos limites. — Cris se limitou a baixar os olhos. Ana continuou: — Invista ali, ó. — E apontou com o queixo para Pedro. — Tem mais a ver com você.
Cris olhou para o rapaz.
Apesar de serem primos, Pedro e Daniel eram muito diferentes fisicamente. Os dois eram altos, mas o namorado era mais forte. Diferentemente deste, que tinha o rosto quadrado, queixo bem definido, lábios carnudos, sobrancelhas grossas, Pedro tinha os traços suaves, mas bem distribuídos em um rosto alongado. Em comum, os dois tinha os cabelos castanhos escuros, sendo o de Pedro mais ondulado que o do primo.
Ele não era bonito como Daniel, mas isto não interessava para Cris. O jeito calmo e focado de Pedro a atraía. Ele era estudioso, avesso a badalações, tão diferente do outro, mas tão mais parecido com ela.
Ana estava certa. Investiria nele.
Sentiu um aperto na boca do estômago, um medo repentino, medo de Daniel e de sua reação. Achou melhor postergar isso, como fizera tantas vezes. O aperto sumiu e, em seu lugar, ficou um sabor amargo de derrota na boca.
Vilhena não tinha nada de excepcional.
Não passava de algumas dezenas de casas e meia dúzia de ruas calcadas de cascalho, de onde o vento frio levantava redemoinhos de poeira — os únicos sinais de movimento.
— Que fim de mundo — resmungou Ana.
— Tudo bem, não vamos ficar muito tempo mesmo — disse Daniel enquanto deixavam as mochilas sob o toldo de um estabelecimento que parecia um mercado. — Agora, vão dar uma volta por aí enquanto compro mantimentos e arranjo um guia.
— Vamos te ajudar… — começou Pedro, mas foi imperiosamente cortado pelo primo:
— Não, não! Deixem que eu cuido disso.
Os outros o encararam sem entender. Daniel ergueu as mãos para o céu, irritado:
— Que saco! Não veem que terei que negociar os mantimentos e a contratação de um guia, e um bando de gente em cima querendo comprar balas e salgadinhos só vai atrapalhar? Vão, sumam daqui!
Ana saiu resmungando. Cris e Pedro a seguiram. Carlos foi logo atrás, mas não sem antes enviar um olhar ressabiado para Daniel.
Este ficou observando os amigos se afastarem e, logo depois, entrou na loja.
Entre prateleiras cobertas de poeira e atrás de um velho balcão, um homem encolhido dentro de um capote encarou o rapaz que entrava.
— Buenas tardes — cumprimentou. O homem respondeu com um aceno de cabeça. — Señor, existem hã… cuevas en nesta region?
— Eu não acredito!
Daniel virou-se em um pulo. Carlos estava parado na porta, mãos na cintura e expressão de total incredulidade no rosto.
— Espere aí, Carlos. Eu… — Pego de surpresa, Daniel tentou se justificar, mas foi interrompido pelo outro, que avançou até ele.
— Como assim, você não sabe se existem cavernas por aqui? Você disse…
Foi a vez de Daniel levantar a voz e interromper o amigo:
— Calma!
Carlos se calou. Daniel respirou fundo e, voltando ao tom normal, disse:
— Desculpe por gritar, mas me ouça. As cavernas existem sim, só não sei se são aqui, ou no povoado que passou, ou no próximo. Meu avô não soube precisar, mas garantiu ser nesta região.
Carlos passou a mão no cabelo, exasperado:
— Cara, por que não dividiu isto com a gente? Aquele ônibus só passa de novo daqui a dois dias.
Daniel balançou de um pé para o outro:
— É que, bem, não queria mostrar que não tinha certeza. Os outros iam achar que eu estava perdido e…. Você entende, não é?
Carlos suspirou. Sim, ele entendia de como o orgulho do amigo era gigantesco, e como o impedia de pedir ajuda por achar que isto seria interpretado como fraqueza.
— Sim, Dan, eu entendo. E agora? O que faremos?
— Las cuevas existen. Están en la Montaña de La Profecía.
Os rapazes se viraram para o comerciante, até então calado.
— Montanha da Profecia? — perguntou Daniel com estranhamento.
— Sí — respondeu o homem. — Dicen que hay un mensaje allí. Un mensaje del futuro. Puedes escucharlo si tienes un corazón justo y bueno.
— E você, já ouviu?
O homem suspirou e encolheu-se novamente dentro do capote, enquanto balançava negativamente a cabeça:
— ¿Por qué conocer el futuro? El presente ya es bastante malo. — E fechou-se em seu mutismo.
— Sinistro — comentou Carlos.
— Besteira! — rebateu Daniel. — Não passa de alguma lenda local. Não acredito em profecias ou predestinação. Eu faço meu próprio destino e meu próprio caminho, e não tem força no universo que me obrigue a fazer algo diferente. — E bateu no peito.
Uma lufada de vento abriu violentamente a porta e invadiu o mercado. Revirou papéis, derrubou potes e voluteou ao redor dos rapazes e, tão subitamente como entrou, saiu e desapareceu.
Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, olhando para a porta que lentamente se fechava.
— Sinistro, de novo — disse Carlos.
Daniel deu de ombros e se voltou para o comerciante:
— ¿Entonces, podemos conseguir una guía y suministros?
O homem anuiu, chamou um garoto e pediu que procurasse um tal de Hernandez.
Cris, Pedro e Ana apareceram e, enquanto ajudavam a guardar os mantimentos nas mochilas, Carlos contou a história da profecia.
— Que demais! — vibrou Ana. Ela era fissurada em assuntos esotéricos, metafísicos e afins. — Com certeza a montanha vai falar comigo.
— Não entendeu o que eu disse? — perguntou Carlos. — Ela só fala com quem tem o coração puro, sua tonta.
— Cala boca, idiota! Eu tenho o coração puro como um anjo.
Carlos cochichou algo para Daniel e eles gargalharam. Ana ficou vermelha de raiva e ia dizer algo, quando o guia apareceu do nada entre eles.
O tal Hernandez parecia estar dormindo quando o foram chamar e tinha a expressão mal-humorada. Nem os pesos que Daniel lhe deu pareceram animá-lo. Arrastando os pés, se pôs a caminho, seguido pelos jovens.
A trilha que subia pela vertente da montanha era íngreme, calcada de pedras e muita terra solta, fazendo o grupo escorregar diversas vezes.
Estavam ofegantes devido à altitude e ao ar rarefeito, e o peso das mochilas parecia ter dobrado.
Quando acharam que não conseguiriam dar mais um passo, a trilha desembocou em um platô.
Desabaram exaustos sobre as mochilas, exceto Hernandez, que se sentou calmamente em uma pedra e acendeu um cigarro.
Cris levantou-se e se dirigiu à beira do platô. Aspirou longamente o ar frio e então chamou os outros:
— Venham ver isto.
Os outros se aproximaram e ficaram pasmos.
O terreno terminava abruptamente em um abismo e, diante de seus olhos, estendia-se a mais bela paisagem que já haviam visto.
Viam-se lagos cristalinos que refulgiam nos vales lá embaixo e que se sucediam desenrolando-se em uma colcha verde-escura que desaparecia na distância. À direita e à esquerda, os Andes elevavamse majestosos. Os picos eram como dedos de gigantes que buscavam tocar o céu e, à volta deles, as nuvens enrodilhavam-se como anéis brancos e sedosos.
— Que lindo! — exclamou Ana. — Espere aí que vou tirar uma foto.
— Shiii.
Todos olharam para Daniel, que tinha uma das mãos levantadas, a pedir silêncio. Tinha os olhos fechados e respirava pausadamente.
— Você está bem? — perguntou Pedro, preocupado.
O primo demorou um pouco para responder com outra pergunta:
— Vocês não estão ouvindo? — Os amigos se entreolharam confusos. — A montanha. Estou ouvindo a montanha.
— Sério? — perguntou Ana, abrindo desmesuradamente os olhos azuis.
— Sim — Daniel abriu os olhos e a encarou. — E ela está dizendo: “Pule, Ana, pule”.
Ele começou a rir. Ana e os demais demoraram uns instantes para entender.
— Seu idiota! — rosnou ela trincando os dentes.
Pedro e Cris balançaram as cabeças em desaprovação. Carlos ria junto com Daniel.
— Tomara que você se dê mal por ficar brincando com essas coisas, seu imbecil! — disse Ana furiosamente.
Daniel abriu os braços:
— Hahaha e a montanha vai fazer o quê? Desabar na minha cabeça?
— Chicos, la cueva.
A voz arrastada de Hernandez os fez virar o rosto e esquecer a briga por hora, olhando com expectativa para onde ele apontava.
Mas logo ela sumiu do rosto de Pedro, sendo substituída pela dúvida:
— Mas onde estão as outras?
O homem deu de ombros:
— Solo hay una, esta.
Pedro se virou enfurecido para o primo:
— Cavernas maravilhosas?! Várias…?! Você disse que…
— Parado aí — disse Daniel imperiosamente. — Em nenhum momento eu disse haver mais de uma. Apenas supus que poderia haver várias.
— Pois supôs errado, senhor sabe tudo! Você…
— Chega! — exclamou Daniel de forma rude e agressiva. — Não interessa o que eu disse ou deixei de dizer! Isso não importa agora, importa que estamos aqui e vamos para a caverna!
— Vai sozinho, seu babaca! — Ana entrou na conversa. — Pra mim chega! Não vou entrar neste buraco imundo, vou voltar para o povoado!
Daniel atirou a mochila nela:
— Pois vá! Você não faz falta! Aliás, o ar vai ficar melhor sem você aqui!
Ana disse um palavrão e se virou de volta para a trilha.
Pedro pegou sua mochila e foi junto com ela. Carlos ficou meio perdido, indeciso sobre o que fazer.
— Não vão!
Todos se voltaram para Cris. Ela continuava parada na beira do platô.
Um raio de sol passou entre duas montanhas e a envolveu, fazendo seus cabelos brilharem avermelhados, parecendo coroá-la de fogo. Um ar etéreo emanava de sua figura.
Ela desceu da pedra onde estava e se aproximou de Pedro e Ana:
— Por favor, fiquem. Por mim.
Ana se balançou contrariada:
— Ah, Cris…
— Por que não vêm conosco? — convidou Pedro
— Por que… — ela pensou em como explicar ter vontade
de ir, mas, ao mesmo tempo, uma “voz” dentro dela dizia para irem para a caverna? Seria a voz da montanha, ou do seu próprio coração, dividido entre o desejo de não ficar sozinha com Daniel e o medo de contrariá-lo? Odiou-se por sua insegurança, por sua covardia. Lágrimas surgiram em seus olhos castanhos, deixando os outros dois consternados.
— Não chore, por favor — disse Pedro, que chegou a levar a mão em direção ao rosto dela, mas a recolheu antes de tocá-la. — Por você, eu fico.
— Eu fico também — prontificou-se Ana, segurando a mão da amiga.
— Obrigada — respondeu Cris, sorrindo timidamente. A voz calou-se dentro dela.
Seguiram para a caverna e, ao passarem por Daniel, este sorriu para Cris, um sorriso de agradecimento pela intervenção dela, mas ela desviou o olhar.
Ele suspirou.
A raiva dela estava demorando a passar desta vez.
É, pelo visto ele teria que lhe pedir perdão. Mas faria isto em outro momento, quando estivessem a sós. Não queria que os outros o vissem se desculpando, pois isso seria admitir estar errado.
Que culpa tinha se garotas estavam sempre a fim dele? Era homem, não podia deixar passar.
Hernandez foi o primeiro a entrar, seguido dos demais.
Daniel foi por último. Quando chegou na entrada, estacou.
Sentiu uma pressão no peito, como se uma força o empurrasse para entrar e outra o impedisse, como se aquele passo para dentro da caverna fosse o mais importante de sua vida.
Recriminou-se mentalmente: “O que é isso? Vai dar crédito agora a essas baboseiras de misticismo e profecias? Seu fraco! Vamos, entre na caverna!”
Com um esforço hercúleo, entrou. Ficou parado no umbral, ofegante.
— Você está bem? — perguntou Carlos, vendo o suor no rosto do amigo e sua expressão assustada.
— Claro, por que não estaria? — rebateu Daniel com certa agressividade. Depois, aliviando o tom e simulando animação, para tentar afastar aquelas sensações ruins, acrescentou: — Estamos aqui, conseguimos, Cacá!
O amigo estranhou aquela mudança de humor, mas deu de ombros e seguiu em frente.
A caverna não era grande coisa. Tinha uns vinte metros de comprimento, fazia uma curva, prosseguia por mais catorze metros e terminava em uma parede de rocha lisa. Tinha uns cinco metros de largura por quatro de altura.
— Caverna — resmungou Ana. — Só um buraco na terra isto sim.
Pedro, notando a quantidade de pedras soltas pelo chão, perguntou ao guia:
— ¿Hay terremotos en esta región? ¿Temblores de tierra?
O homem balançou negativamente a cabeça:
— No, nunca ha habido terremotos aquí…
A natureza não deixou Hernandez terminar. Um tremor sacudiu a caverna, deixando todos estáticos.
— Vamos embora, já! — ordenou Daniel encaminhando-se para a saída.
— Calma, Dan —disse Carlos. — Foi só um pequeno tremor.
— Não! — respondeu Daniel visivelmente nervoso. — Não foi só um pequeno tremor.
Daniel sentiu a angústia crescer dentro dele. Uma sensação de tragédia ardia-lhe no peito.
Não caminhou nem dois metros quando foi jogado ao solo por outro tremor, muito mais violento que o primeiro.
Tentou levantar-se enquanto a caverna sacudia como se toda a montanha estivesse sendo jogada para o alto pelas mãos de um gigante.
Foi novamente atirado ao chão, desta vez pelo camponês que passou por ele correndo em direção à saída.
O homem não conseguiu seu intento.
Assim que chegou na porta, toneladas de rochas desabaram sobre ele, soterrando-o e selando a caverna, que mergulhou na escuridão.
Daniel gritou pelos demais, mas sua voz foi abafada pelo som da terra em fúria. A poeira espessa quase o impedia de respirar.
Num esforço sobre-humano, tentou levantar-se. Uma pedra o atingiu na cabeça, fazendo-o desabar pesadamente ao solo.
Sentiu o frio e a escuridão engolfando-o enquanto perdia os sentidos.
Uma leveza reconfortante tomou conta de seu corpo e ele sentiu que tinha asas e voava sobre uma sucessão interminável de campos verdejantes e desertos, vida e morte, claro e escuro. Os caminhos que teria que escolher. O bem ou o mal.
“Estou morrendo”, pensou, mas uma voz disse-lhe que não. Ainda era muito cedo para isto.
As trevas e o silêncio o envolveram.