A leste, rubras labaredas anunciavam o nascer do Sol.
No acampamento, os jovens ainda dormiam em volta dos restos da fogueira.
Daniel encontrava-se imerso em seus pensamentos.
Desde que se calara, após a conversa com Cris, mergulhara no oceano de escuridão que se tornara seu mundo.
Meditava sobre os incidentes daquela noite e dos dias anteriores. Sabia que ele era a origem daqueles acontecimentos.
Sim, era ele.
Descobriu isso num dia em que Ana estava insuportável. Reclamava de tudo e de todos, não parava de se lamuriar um minuto sequer.
Quieto em seu canto, ele não suportava mais aquele falatório irritante e pensou por que Carlos não a mandava calar a boca.
No mesmo instante, como obedecendo a um comando invisível, o amigo a mandou se calar.
Daniel imaginou qual seria a resposta de Ana e ela imediatamente respondeu Carlos da mesma forma.
Ele se assustou e com isso pareceu quebrar a ligação mental, e Ana e Carlos calaram-se no mesmo instante.
Teria a pancada em sua testa despertado alguma espécie de poder? Ou a cegueira obrigava seu cérebro a buscar novas formas de contato exterior?
Não sabia, naquele momento, se podia ler as mentes e antecipar o que seria dito ou se realmente as influenciava, mas com o passar dos dias descobriu que podia fazer as duas coisas.
Ler pensamentos era mais fácil, influenciar era mais difícil. Podia fazer com que lhe trouxessem água e comida sem que precisasse pedir, fomentava discussões entre Ana, Carlos e Pedro apenas para se divertir, mas não conseguia fazer com que Ana se jogasse em um abismo, coisa que havia tentado.
Com o passar dos dias, novas sensações foram surgindo.
Começou a “perceber” não só os pensamentos, mas os sentimentos dos demais. Sentia quando alguém estava triste, mentindo ou preocupado.
Percebeu as investidas de Pedro sobre Cris.
A princípio não se perturbou, pois sabia que o primo sempre fora louco por ela e se aproveitava agora da cegueira dele. Que tentasse! Cris pertencia a ele!
A coisa começou a mudar quando Daniel pressentiu uma mudança na disposição de Cris.
Ficou furioso, sentindo-se traído. Teve vontade de arrebentar a cara de Pedro, mas se conteve e resolveu aguardar o momento oportuno.
E este surgiu depois da revelação de Ana, sobre a qual Daniel ficou sabendo um pouco antes de todos, lendo diretamente da mente dela. Não deu muita atenção, apenas ficou chateado por Carlos, que teria que aturar aquela chata.
Estava focado nos pensamentos e sentimentos de Pedro, mas a discussão entre Carlos e Ana parecia congestionar o ar e ele não conseguia “ler” o primo, até que se irritou e mentalmente ordenou que Carlos cessasse a discussão e implantou nele a ideia de que, quando estivessem em casa, poderia fazer com que Ana tropeçasse na escada. Havia uma escada enorme na casa de Carlos.
O silêncio permitiu que percebesse que o primo estava nervoso, pois Cris recusara-lhe um beijo, claro, a mando mental de Daniel. Era a hora!
Como ele previu, a acusação que lançou caiu como uma bomba.
Todos achando que, estando cego, estava também alheio, indefeso, mas ele provou que não podia ser passado para trás.
Cego ou não, ainda era o melhor!
O ciúme demonstrado por Cris, que foi uma manifestação espontânea, provava que ela ainda era dele.
Podia então desviar seus pensamentos para outra direção, para a garota de suas visões.
Concordou com Cris para terminar a discussão, mas sabia que a garota não era produto de sua imaginação. Daniel tinha certeza de que a conhecia, mas de onde?
No esforço de lembrar, sentiu sua mente deslizando rapidamente em direção ao passado.
Imagens começaram a se formar: as brigas da noite anterior, os dias de caminhada. Reviveu a dor que marcou sua fronte, o vulcão em fúria, a fuga desesperada da avalanche, a caverna, e depois... o nada, um profundo vazio em sua mente.
Reviu toda a viagem de São Paulo a Vilhena, mas em sentido contrário. As pessoas que conheceram na viagem desfilaram diante de si, mas a garota misteriosa não estava entre elas.
Cada vez mais rápido, sua mente voltava ao passado procurando, procurando. O dia a dia de sua vida se repetindo. Reviu tudo o que vivera com Cris, as emoções, as brigas, as alegrias e tristezas, a inocência perdida em algum ponto que ele não soube bem precisar, o primeiro beijo.
Reviu o colégio com todos os seus rostos, mas não encontrou aquela que procurava.
As cenas desenrolavam-se agora em velocidade estonteante.
A infância passou. Via agora o mundo da mesma posição que vê o bebê que engatinha, viu os rostos enormes das pessoas que o pegavam no colo, a visão de dentro do berço. Vislumbrou a primeira luz que viu neste mundo, e depois o aconchego do útero de sua mãe, seu pequeno corpo perdendo forma. Viu o primeiro momento de sua existência no mundo, quando duas células se encontraram.
Subitamente, foi como se se chocasse contra um muro de pedras em alta velocidade, e ficou atordoado com o impacto.
Não dava para ir além daquele ponto. Sentia haver algo mais além da barreira, talvez até o rosto que procurava, mas teria que retornar.
O simples pensamento do retorno fez com que caísse em um turbilhão, que o trouxe até o momento atual.
Sentiu seu corpo encostado na rocha, a brisa da manhã em seu rosto.
O que fizera?! Conseguira recuar no tempo?! Seria mais um de seus novos poderes?!
Era incrível!
Daniel meditou um pouco. Se conseguiu ir para o passado, por que não conseguiria ir para o futuro?
Levado por seu comportamento impulsivo, Daniel não parou um segundo para pensar que o que estava fazendo era extremamente incomum e, por isso mesmo, proibido. Ler e influenciar mentes? Voltar no tempo?
Estava quebrando regras universais, penetrando em segredos para os quais não estava preparado. Não percebeu os avisos à beira do caminho e, mesmo se os visse, com certeza passaria por cima.
Ele respirou fundo e se concentrou, obrigando sua mente a seguir em frente.
Estava em um espaço em branco, sem limites definíveis. Uma névoa densa tomava o que deveria ser o horizonte.
Seguiu para lá.
Nisto, percebeu uma figura logo à frente.
Era uma menina morena, de cabelos negros, que se sentava no chão com as pernas cruzadas.
Estava entretida em jogar uma pedrinha para o alto, enquanto tentava pegar as que estavam no chão.
Quando Daniel se aproximou, ela levantou o rosto e o encarou.
Ao cruzar seu olhar com aqueles olhos grandes e negros, ele sentiu um calor agradável tomar-lhe o peito. Era como se esperasse há milênios poder mirá-los novamente.
A menina sorriu:
— Olá, Olruzin. Joga comigo?
Sorrindo, ele se agachou em frente a ela, embevecido por sua presença. Percebeu que não era com pedras que ela brincava. Eram pequenas esferas de luz, dentro das quais era possível ver galáxias, sóis, planetas. Universos inteiros boiavam lá.
Daniel olhou em direção à névoa, logo à frente.
— Não tem nada para você lá — disse a menina, sem levantar os olhos de sua brincadeira.
— O “nada” não existe — respondeu o rapaz com perspicácia.
A garota o encarou, um sorriso matreiro nos lábios como se tivesse sido pega mentindo.
— Certo — confirmou ela. — Não tem nada concreto para você lá. Apenas possibilidades.
A sabedoria e maturidade que Daniel sentia naquelas palavras eram incompatíveis com a voz infantil que as pronunciava, e ele sabia que ela estava certa. Eram apenas possibilidades, mas a necessidade de satisfazer seus desejos era mais forte que a razão. Ele então se levantou e se encaminhou para a névoa.
A garota ainda o segurou pela mão:
— Não vá, Olruzin! — implorou ela. — Pode pôr tudo a perder! Ouça-me! Não vá para lá, em vez disso, siga a corsa.
Ela apontou e Daniel viu materializado ali perto um pequeno animal, que o olhou, mexeu as orelhas e se pôs a caminhar no sentido oposto.
Ele se voltou para a menina, apertou carinhosamente sua mão e disse:
— Akenath, por mais que a ame, você sabe que eu sempre seguirei aquilo que meu coração manda.
Daniel não sabia por que a chamara daquele nome ou porque dissera aquilo. Fora algo que viera espontaneamente aos seus lábios.
A menina suspirou tristemente e voltou-se para seu brinquedo enquanto dizia:
— Eu sei. E isso ainda será nossa ruína.
Ele a deixou e caminhou resoluto. Precisava saber quem era a garota de suas visões! Mesmo sendo ela uma possibilidade!
Mas, quando ia mergulhar na névoa, sentiu uma mão em seu ombro e uma voz perto de si:
— Já chega!
Ele foi violentamente puxado em direção ao vazio. Depois o mundo se contorceu avermelhado à sua volta. Via sombras sem forma definida ao seu redor, mas, vagarosamente, as coisas acomodaram-se e as imagens se cristalizaram.
Daniel viu os quatro amigos deitados, enrolados em seus cobertores. O sol matutino lançava seus raios sobre as pedras e plantas próximas.
Essa visão não existia somente em sua cabeça. Ela chegava até seu cérebro através de seus olhos.
Ele estava enxergando!
Levantou-se.
De pé podia ver o horizonte, o céu, as montanhas distantes.
Começou a girar, girar, até ficar zonzo e cair de joelhos. Ergueu a face para o céu, enquanto abria os braços num gesto de alegria e agradecimento.
— Você está bem, Dan?
Ele levantou-se e se virou. Cris estava em pé, olhando para ele preocupada.
Ela aproximou-se e mirou-lhe os olhos límpidos:
— Dan, você está me vendo?
Ele sorriu:
— Você é a coisa mais linda que já vi!
Cris o abraçou e seus lábios se encontraram em um longo beijo.
Ela se soltou dos braços dele e correu para acordar os outros:
— Acordem, seus dorminhocos! — chamava enquanto descobria um por um. — Acordem!
Os três levantaram-se cambaleantes.
— Que saco! — resmungou Ana.
— O que aconteceu, Cris? — perguntou Pedro preocupado.
Ela postou-se ao lado de Daniel, cheia de alegria:
— Um milagre! Daniel voltou a enxergar!
Os demais se aproximaram incrédulos. Quando constataram a verdade, deram gritos de alegria.
Abraços e perguntas choveram.
Daniel tentava explicar o que acontecera quando sua atenção foi atraída para algo que se movia a alguma distância do grupo.
— Vejam! — disse apontando.
Há pouco menos de quinze metros do grupo, um animal de aproximadamente meio metro os observava, aspirando o ar. Era um pequeno veado.
Daniel deu alguns passos na direção do animal, que fugiu saltitando.
“Siga a corça”, ele lembrou-se das palavras da menina.
— Vamos atrás dele! — E se pôs a correr.
Pedro gritou-lhe:
— Espere, Daniel! Temos que recolher nossas coisas!
Mas Daniel não lhe deu ouvidos. Já se encontrava subindo o morro calcado de cascalhos atrás do bicho.
O animalzinho parava, virava o pescoço e observava se ainda estava sendo seguido.
Daniel vinha logo atrás, escorregando e tropeçando. Tinha certeza de que ele o levaria até a garota.
O animal parou mais uma vez na crista do morro e depois desapareceu.
Daniel chegou ao topo ofegante e empoeirado. Parou por instantes, tirando a poeira dos olhos.
Quando olhou para o outro lado do morro, prendeu a respiração.
À sua frente, estendia-se quilômetros e quilômetros de florestas densas que subiam e desciam por entre montanhas, cânions e vales, até sumirem no horizonte.
Quando os outros chegaram, também ficaram perplexos.
— É um sonho! — exclamou Cris.
— Não, é de verdade! — respondeu Daniel.
Ele viu quando o veado sumiu entre as árvores mais abaixo.
— Venham — ordenou, indo em direção à floresta.
Seguiram por uma trilha aberta por animais.
Depois de dias vendo apenas regiões áridas, a exuberância do local os deixava zonzos.
Entre as árvores gigantescas, um emaranhado de cipós e plantas aéreas formava o palco para pássaros das mais diversas cores. Flores e frutos espalhavam-se em profusão pelo chão e pelas árvores. Uma brisa corria entre as árvores centenárias e trazia diversos cheiros e sons.
Chegaram a uma clareira na beira de um rio. Capivaras e veados pastavam por ali e, quando avistaram os jovens, dispararam em direção à mata ou ao rio.
Andaram até a margem deste, que era límpido, cristalino e corria mansamente. Um pouco acima, uma pequena cascata caía entre samambaias e outras plantas.
Os jovens olharam silenciosamente as águas, como se não acreditassem no que viam, depois, como acordando de um sonho, deram gritos de alegria e, despindo-se das roupas de cima, pularam na água, pois há dias não sabiam o que era um banho.
A água estava gelada, mas não ligaram. Nadaram, brincaram empurrando-se uns aos outros, esquecidos do mundo caótico à sua volta.
Aproveitaram para lavar suas roupas e as estenderam sobre os galhos próximos para que secassem.
Improvisaram um piquenique na margem, com os alimentos que trouxeram e as frutas que encontraram por perto.
Depois de se fartarem, deitaram-se sobre as pedras para se aquecerem sob o sol generoso da manhã.
Daniel sentia-se leve, olhando para o céu onde as nuvens pareciam ovelhas soltas em um grande pasto azul. Nas flores próximas, insetos zumbiam, e a rabanada mais violenta de um peixe quebrava o silêncio cristalino do rio.
Ele foi se envolvendo pelo clima ao seu redor, deixando que as preocupações e incertezas dos últimos dias se esvaíssem. Naquele lugar tranquilo, as visões que tivera lhe pareciam somente isto, visões, nada mais. Até a garota misteriosa parecia agora algo inverossímil.
Começou a adormecer lentamente, embalado pelo som da
brisa nos arvoredos.
Subitamente, um estampido cortou o ar da manhã.
Eles levantaram-se sobressaltados. Outro estampido se seguiu.
— O que foi isso? — perguntou Cris, procurando suas roupas.
— Tiros. — respondeu Daniel.
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Veio de trás deste morro — observou Carlos.
— Então vamos até lá dar uma olhada — disse Daniel.
— Não é perigoso? — objetou Ana.
— Talvez — respondeu Daniel —, mas é uma chance de descobrirmos onde estamos.
— Vamos com cuidado, então — sugeriu Pedro.
Vestiram as roupas ainda úmidas e, com as mochilas nas costas, puseram-se a subir o morro do lado oposto de onde tinham vindo.
A vegetação densa deu lugar a um capim alto e a árvores esparsas na crista do morro, e eles se deitaram no chão para não serem vistos.
O declive daquele lado tinha a mesma vegetação aberta do topo e descia até outro vale onde uma estrada de terra margeava uma floresta.
Na estrada, desenrolava-se uma cena estranha.
Cinco carroções, parecidos com gaiolas e puxados por quatro animais cada, estavam parados.
Na beira da estrada, um homem estava caído e, à sua volta, vários homens de aspecto selvagem se movimentavam. Eles portavam armas parecidas com espingardas e aparentemente haviam atirado no homem caído.
Os jovens arrastaram-se para a frente a fim de ver melhor.
Daniel abriu o capim alto e se fixou nos carroções. Seu coração deu um salto dentro do peito.
Dentro daquelas gaiolas sobre rodas estavam presas dezenas
de pessoas. Provavelmente aquele homem caído tentara fugir e fora abatido.
— Meu Deus! — exclamou Carlos. — Tem pessoas presas naquelas gaiolas!
— Quem serão estes brutamontes? — perguntou Pedro.
— Eu é que não vou descobrir — disse Ana. — Acho melhor darmos o fora daqui.
Os homens selvagens gritaram palavras estranhas e começaram a subir nas carroças, prontos para partir.
A curiosidade, e algo mais que não soube definir, fizeram Daniel levantar-se e começar a descer o morro em direção à caravana.
Pedro o chamou:
— Daniel, seu louco! Volte aqui!
Ele virou-se:
— Fiquem aí e, não importa o que aconteça, não se mostrem.
Cris tentou dizer-lhe algo, mas ele sumiu na vegetação. Reapareceu pouco depois, já no pé do morro.
Caminhava resoluto em direção às carroças sem saber direito o que ia fazer.
Um dos homens o avistou e deu um grito de alarme. Todos os outros levantaram-se e apontaram as armas para Daniel. Ele estacou a poucos metros e ergueu as mãos para mostrar que estava desarmado.
Caminhou lentamente em direção ao homem que parecia o líder.
Daniel olhou para trás, para o alto do morro. O homem no alto da carroça olhou na mesma direção, desconfiado.
Era o que o rapaz queria, que o homem pensasse que ele não estava só e que não seria tão imbecil, como estava sendo, de vir sozinho.
Analisou melhor aquelas criaturas.
Eram homens de aparência rude e grotesca. Vestiam-se com peles de animais mal curtidas, tinham cabelos e barbas longas, sujas e desgrenhadas. Lembrou-se das figuras de homens primitivos que vira em livros.
Só que estes “homens primitivos” portavam armas, que eram longos canos enferrujados guarnecidos com uma tosca coronha, além de machados e porretes.
Daniel dirigiu-lhes algumas palavras:
— Olá, bom dia! Será que poderiam dar algumas informações? Que lugar é este? Tem alguma cidade por aqui?
Em resposta recebeu um jorro de palavras em uma língua que não conseguia compreender.
Pensou ter ouvido algumas palavras em castelhano, mas não conseguiu apreender-lhes o significado.
Pela cara do homem e pelo tom das palavras, Daniel percebeu que ele o estava xingando.
Desviou sua atenção da grotesca criatura e olhou para as pessoas presas nas gaiolas. Eram homens, mulheres e crianças, todos amontoados como animais. Estavam sujos, subnutridos e assustados.
Daniel sentiu uma grande pena e uma imensa revolta se acumular em seu peito.
Como seres humanos podiam ser levados naquela condição? E que seres bestiais eram estes que dominavam aquelas pessoas?
A pouca luz que entrava pelas grades iluminou um rosto ao fundo. Daniel prendeu a respiração.
Era a menina morena de sua última visão!
Mas ela não tinha nada da postura jovial e firme daquela outra.
Estava encolhida e assustada como um animalzinho. Não devia ter mais que treze anos. No rosto, os grandes olhos negros, idênticos ao que Daniel lembrava, eram dois poços de terror e desespero.
Como que hipnotizado, ele se aproximou da grade e, neste instante, sentiu uma dor cortante nas costas.
O homem sobre a carroça o havia chicoteado e levantava o chicote para mais um golpe.
Daniel levantou o braço numa tentativa de defender-se, mas, com certeza, seria retalhado.
Sentiu um toque em seu outro braço e, quando olhou, viu que a menina o tocava.
O tempo pareceu congelar-se enquanto os olhos dos dois se cruzavam.
Daniel sentiu, naquele toque, como se milhares de anos se tornassem segundos.
Um sentimento de completude como nunca havia sentido na vida tomou conta dele, seguido de uma onda de energia que parecia fazer frente ao próprio calor do Sol.
Ele olhou para cima, para o homem que parecia congelado com o chicote na mão. Um pensamento seu e o chicote explodiu em chamas, fazendo o carrasco atirá-lo longe com um grito.
A menina caiu desacordada no fundo da gaiola e, quando deixou de tocar Daniel, este sentiu como se tivessem tirado o chão de sob seus pés. Cambaleou e caiu zonzo na beira da estrada.
O homem segurava sua mão queimada com os olhos esbugalhados. Balbuciou apenas uma palavra:
— Brujo!
O brutamonte gritou ordens para o resto da caravana e depois tocou violentamente as mulas, pondo a carroça em movimento. Os demais o seguiram.
Os homens olhavam assustados quando passavam por Daniel, que tentava se levantar. Sentia-se fraco, com tonturas, mas, com esforço, conseguiu pôr-se em pé.
Os amigos chegaram correndo. Cris o amparou, pois ainda estava cambaleante:
— O que foi que aconteceu, Daniel? Quem eram aqueles homens?
Quando sentiu a cabeça novamente no lugar, contou-lhes em rápidas palavras o que acontecera, omitindo a parte do contato com a garota e o ocorrido com o chicote. Disse que o homem o havia chutado.
— E aquelas pessoas? Eram escravos, prisioneiros ou o quê? — perguntou Pedro.
— Me pareceram escravos. E a garota estava com eles.
— Que garota? — Quis saber Cris.
— A das minhas visões.
— A garota! Então ela existe? — Carlos não pôde deixar de
olhar de soslaio para Cris.
— Sim. Não — corrigiu Daniel. — Não aquela. Outra garota.
— Outra garota? Cara, você só sonha com isso? — alfinetou Ana.
Daniel ignorou. Não queria dar explicações:
— Não importa, vamos segui-los para ver aonde vão.
— Tá louco! — objetou Ana. —Vamos em sentido contrário, isto sim!
Pedro interveio:
— Não, Daniel está certo. Fossem prisioneiros ou escravos, eles devem estar indo para algum lugar povoado para entregá-los, e é onde conseguiremos algumas informações.
Não era essa a motivação de Daniel, não mais. Ele só queria poder encontrar a menina e libertá-la. Ele precisava vê-la novamente! — Então vamos logo, antes que se afastem muito — disse ele.
— Esperem um pouco. — Cris deteve-os. — Acho que seria decente de nossa parte enterrar aquele pobre homem lá atrás.
— Ei! Não se pode ir enterrando assim as pessoas! É preciso avisar uma autoridade! — disse Ana.
— Autoridade?! — ironizou Carlos. — Com pessoas metidas em gaiolas como escravas, você acha que existe alguma autoridade por aqui?!
Para evitar uma discussão entre os dois, Pedro interveio:
— Vamos fazer assim: enterramos ele em uma cova rasa, marcamos o lugar, e depois veremos se em alguma cidade mais para a frente existe alguém para ser avisado. O que acham?
Carlos e Cris concordaram.
— Eu não toco em morto! — disse Ana cruzando os braços.
— E aí, Daniel?
Daniel suspirou impaciente. Queria ir logo atrás da caravana, mas sabia que eles tinham razão. Seria desumano deixar o corpo daquele homem ali, na beira da estrada.
— Tudo bem — concordou. — Mas vamos acabar logo com isto.
Quando se voltaram, não viram mais o corpo.
— Ih, cadê o cara? — perguntou Carlos.
Eles acompanharam com os olhos dois sulcos feitos no chão de terra, mostrando que algo fora arrastado.
Quando olharam para a borda da mata, ainda puderam ver um par de pernas ser arrastado para a escuridão da floresta.
Algo havia levado o corpo do cativo!
Eles não esperaram para descobrir o que era este algo.
Em desabalada carreira, sumiram estrada afora, deixando para trás, vários olhos desapontados e famintos.