Caminharam por mais uma semana, agora num ritmo mais lento.
Ainda sentiam que algo os empurrava para a frente, mas de forma menos possessiva que nos dias anteriores. Interpretaram isso como a vontade chegar logo a algum lugar habitado, encontrar outros seres humanos.
O aspecto do caminho mudou novamente.
Encontraram árvores de maior porte e viram pequenos animais: lagartos, insetos, roedores e, num final de tarde, avistaram um bando de pássaros, que cruzou o céu soltando gritos estridentes.
À noite, em volta da fogueira, falavam do aparecimento das aves:
— Fiquei tão emocionada ao ver aqueles pássaros —confessou Cris. — É como se fossem uma mensagem de esperança.
— É verdade — concordou Carlos. — Foi um colírio para os olhos.
Depois de dias só vendo rochas e céu, eu já estava ficando neurótico.
Ana resolveu dar uma espetada:
— Mais neurótico do que já é, você quer dizer?
O rapaz sorriu-lhe, desdenhoso:
— Estou tão contente hoje que farei de conta que não ouvi esta sua vozinha irritante.
A garota ia rebater quando Cris a interrompeu:
— Escutem — disse se dirigindo aos dois —, por que vocês não sentam civilizadamente e resolvem estas arestas entre vocês?
Carlos olhou para Ana:
— É, garota, por que não assume de vez que tem o maior crush em mim?
Ela o encarou de boca aberta e expressão incrédula. Depois, balançando a cabeça, falou:
— Meu Deus! Como você é medíocre! Não dá para acreditar que o Jonas é seu irmão. Vocês são tão diferentes!
Dizendo isto, cruzou os braços e virou o rosto. Agora foi Carlos quem a encarou:
— E você, por acaso, conhece meu irmão?
Ela voltou a cabeça lentamente, seus olhos se estreitaram:
— Se eu conheço seu irmão?!
— Ana — disse Cris, em tom de recriminação.
— Não, Cris! Deixa eu dizer pro sujeitinho aqui o quanto eu conheço o irmão dele!
E voltando-se para Carlos:
— Eu e seu irmão estudamos juntos desde a pré-escola.
Carlos balançou os ombros com descaso:
— E daí?
— E daí — continuou Ana, em um tom complacente —, que há anos ele frequenta minha casa. Estudamos juntos, fazemos trabalhos escolares, vamos ao cinema. Ele é inteligente, agradável, educado e um ótimo amigo.
Carlos a olhou de lado. Ana continuou:
— Meus pais e meu irmão o adoram! Meu pai fica horas conversando com ele. Diz que é um jovem de muita cultura, maduro para a idade, um ótimo rapaz. Inclusive, já ofereceu a ele um estágio na empresa, quando ele completar dezesseis anos!
Ele a encarou, incrédulo:
— Seu pai?
— Sim, meu pai. Que em uma reunião da Associação de Empresários, citou seu pai como alguém que, além de ser um excelente e correto advogado, realiza um trabalho de apoio jurídico a pessoas de baixa renda e solicitou a doação de fundos para este projeto.
Diante do olhar espantado de Carlos, ela brincou:
— Oh, vejam só! O “velho” não é o capitalista racista que você sempre imaginou que era! Que decepção!
Carlos balançou a cabeça:
— Não acredito nisso. O Jonas nunca me disse nada.
— Claro que não! — disparou Ana erguendo a voz. — E sabe por quê?
— Ana, chega —interveio Cris.
— Sinto muito, Cris! — disse Ana exaltada. — Mas este idiota precisa ouvir umas verdades!
E, sem esperar, voltou as baterias para Carlos:
— Ele não te conta porque você é um irmão ausente! Fica só atrás daquele ali! — E apontou com a cabeça para Daniel. — Nunca tem tempo para conversar com ele, para ouvi-lo! É só Daniel, Daniel!
A expressão de Carlos, normalmente sorridente, mudou. Ele ficou transtornado:
— Você é uma cobra! Vou falar com Jonas para que fique longe de você! Quero você longe de nós!
Ana gargalhou:
— A verdade dói, né? E, quanto a ficar longe, esquece, bobão! Olha só!
E balançou o pulso diante de Carlos. Uma pulseira de ouro com um pingente, uma letra J do mesmo metal, reluziu. Ele esbugalhou os olhos:
— Ei! Esta é a pulseira do Jonas! Como…
— Viu como não está nem aí pro seu irmão! — cortou Ana. — Estou com ela desde que saímos de São Paulo e nem reparou!
Carlos segurou o pulso dela:
— Por que você está com a pulseira dele?
— Me larga! — Ela retirou o braço com violência. Depois, encarando-o com ironia, perguntou: — Sabe por que me atrasei para o encontro antes de nossa partida?
— Estava repondo o estoque de veneno? — ironizou Carlos tentando recuperar o autocontrole.
— Eu estava com seu irmão. Nos encontramos, ele me pediu em namoro, eu aceitei, nós nos beijamos. E, como sinal de compromisso, ele me deu a pulseira e eu dei a ele minha corrente de ouro, onde tem um pingente de coração com meu rosto entalhado!
Carlos emudeceu.
— Vai ter que me aguentar, cunhadinho! — Ana sorriu, se dando por satisfeita com a perplexidade que viu no rosto dele.
Um silêncio tenso reinou por vários minutos, sendo quebrado por Daniel:
— De que direção vinham as aves?
— Do Nordeste — respondeu Pedro secamente.
— Então seguiremos nesta direção — disse o primo.
Pedro contestou:
— Mas estamos indo para o leste. Melhor continuarmos nessa direção.
Daniel virou o rosto para ele, os olhos brancos fixos, como se pudesse ver o outro:
— Eu disse que vamos para nordeste. Fim de papo.
Pedro bufou:
— Você é quem manda. Você é o líder.
— Sim, eu sou o líder. E isso te incomoda, não é?
— Claro que não! Que besteira! — rebateu Pedro.
— Por que você sempre quer tudo que é meu?
O rapaz olhou para o primo, que estava sentado encostado em uma pedra, as pernas esticadas, os braços cruzados no peito. Parecia estar bem relaxado, mas em suas palavras havia um sinal de perigo.
— Não quero a droga da sua liderança — respondeu Pedro por fim.
— Não é disso que estou falando. — E lentamente volveu a
cabeça em direção a Cris.
Pedro e Cris gelaram e trocaram olhares perplexos.
Nos últimos dias eles passavam horas à noite conversando, geralmente quando Daniel parecia adormecido ou distante, mergulhado em sua cegueira.
Um clima afetuoso surgiu entre eles e, na noite anterior, quando se afastaram um pouco mais do grupo, Pedro tentou beijála, mas ela não permitiu. Virou o rosto recatadamente e, com os olhos baixos e um leve sorriso, disse-lhe num sussurro que ainda era cedo. Pedro sentiu-se incendiar de paixão, mas respeitou a vontade dela.
Isto tudo ficou entre eles, então se perguntavam, perplexos, como Daniel, cego como estava, havia percebido?
— Isto mesmo! — completou Daniel. — Você está tentando roubar minha garota!
Pedro levantou-se. Decidiu que era hora de lutar por seu amor.
— Sua garota?! — Sua voz tremia de raiva. — Como pode dizer isto?! Você não a merece! Você fez de tudo para perdê-la e já perdeu!
— Isso é o que você diz — rebateu Daniel, um irritante sorriso irônico estampado no rosto. — Ela me ama e sabe que seu lugar é ao meu lado, pois só eu posso fazê-la feliz! Só eu sei o que é melhor para ela!
Pedro levantou as mãos:
— Ouça só você, seu arrogante presunçoso! Fala dela como se fosse um objeto seu! Mas fique sabendo que ela não aceita mais isso! Não é, Cris, diga pra ele!
—Eu…. — Cris foi levantando-se aos poucos, os olhos correndo de um rapaz para o outro.
Daniel virou a cabeça em sua direção:
— Você sabe que é como eu disse. — Não era uma pergunta. Era uma afirmação.
—Eu… — balbuciou ela mais uma vez. Seus ombros caíram e Cris olhou para o chão. — Sim! Me perdoa?
Ele sorriu:
— Claro. — E estendeu-lhe a mão.
Obedientemente, ela foi na direção dele.
“Não vá, não vá, não vá”, dizia ela internamente, mas seus pés não obedeciam, assim como seus lábios não obedeceram quando pediu o perdão que não desejava.
Ajoelhou-se ao lado de Daniel e ele a envolveu em um abraço. Ela encostou a cabeça no peito dele e toneladas pareceram deixar seu corpo.
“Por que sou assim? Por que deixo ele fazer o que quer de mim?”
— Eu não acredito — sussurrou Ana.
— Nem eu — concordou Carlos.
Pedro sentiu-se desabar.
Ficou estático, perplexo, vendo a primeira e única garota por quem brigara na vida entregue aos braços do primo.
Daniel, por sua vez, lançou-lhe um sorriso de escárnio:
— Você é um perdedor. Sempre foi.
Uma onda de fúria tomou conta de Pedro e, com os dentes e punhos cerrados, avançou contra o primo.
Com uma velocidade espantosa, Daniel se desvencilhou de Cris e colocou-se à frente do outro, que parou.
Ele e Daniel eram da mesma altura, mas naquele momento o primo parecia imensamente mais alto, parecia crescer na frente dele.
Pedro não sabia se era um reflexo da fogueira ou ilusão de ótica, mas uma aura avermelhada parecia dançar em volta de Daniel. A marca em sua testa estava rubra e saliente e, com aqueles dois olhos brancos, davam-lhe um aspecto ameaçador.
Pedro recuou assustado:
— Você não dá nem pro cheiro — disse Daniel com desprezo.
Carlos se colocou entre eles:
— Calma aí, pessoal, vamos serenar os ânimos!
Daniel se sentou novamente de encontro à rocha, mas Cris não estava mais ao seu lado.
Quando ele partiu para cima de Pedro, ela sentiu um baque.
Era como se correntes se rompessem em sua mente e ela pudesse pensar com clareza.
Furiosa e envergonhada, foi para bem longe de Daniel, sem conseguir encarar Pedro.
Em um acordo mudo e tácito, todos começaram a se preparar para dormir, querendo terminar aquela noite.
Menos Daniel, que sempre dormia recostado em algum lugar e era Cris quem lhe levava um cobertor para mantê-lo aquecido. Mas aparentemente ela não o faria aquela noite, pois já se metera em seu saco de dormir e enrolara-se no cobertor, de costas para todos.
Quando Carlos se prontificou a levar um cobertor para o amigo, Ana adiantou-se, pegou a coberta e se dirigiu para Daniel.
A tensão voltou a subir.
Ela atirou o cobertor ainda dobrado sobre as pernas dele e então agachou-se em frente a ele e ficou encarando-o.
Daniel começou a desdobrar o cobertor, aparentemente ignorando a presença dela ali.
Subitamente, virou o rosto na sua direção.
— O que é? — perguntou ríspido.
— Estou curiosa —começou ela —, como é estar cego?
— Que curiosidade mórbida, hein, garota? — censurou Carlos.
Ana olhou para ele:
— Cala boca! Não falei com você!
Ela se voltou para Daniel, que lhe perguntou:
— Por que quer saber?
Ela deu de ombros:
— Curiosidade mórbida, acho
Daniel terminou de desdobrar o cobertor e ficou em silêncio.
Ana aguardou um pouco e, como parecia que não teria uma resposta, levantou-se.
— É estranho… — As palavras dele a detiveram. Ela tornou a agachar-se — Muito estranho! — continuou ele. — Quando vocês dormem e o silêncio é absoluto, a realidade me foge, fico como se estivesse suspenso no espaço, em um limbo escuro e silencioso… até que elas surgem...
— O quê? — perguntou Ana, curiosa.
— Imagens — respondeu Daniel.
— Imagens? Que imagens? Sonhos? Visões? — Tornou a perguntar a garota.
— Não sei, não consigo distinguir a diferença.
— Me fale delas! — pediu Ana, que se sentou no chão, cruzou as pernas e apoiou os cotovelos nos joelhos; a ansiedade estampada no rosto que segurava entre as mãos.
Ana era fissurada em interpretações de sonhos, cartas de tarô e qualquer outro meio que buscasse desvendar o futuro e os mistérios da alma humana.
Daniel continuou:
— Vejo lugares que, mesmo sabendo que nunca estive lá, me parecem familiares. Vivo situações que, por mais que me esforce, não consigo lembrar já ter vivido. Às vezes sinto que minha mente voa longe, vai a lugares estranhos, quase… inconcebíveis, mas sinto que são reais, que existem de fato...
— E não há nenhum elemento comum nestes sonhos? — perguntou Ana.
— Ele não disse que são sonhos. Podem ser visões —corrigiu Carlos. — E que negócio é este de “elemento comum”?
— Sonhos, visões, tanto faz — rebateu a menina. —E deixa comigo, que deste assunto eu entendo.
— Há uma garota — disse Daniel. — Ela está sempre presente nestas imagens.
— Garota? Quem é? Você conhece? — perguntou o amigo.
— Não me lembro, mas tenho a impressão de que sim. Sinto às vezes que a conheço muito bem, mas com outro rosto. Às vezes, a vejo de fora, às vezes de dentro dela, vejo o mundo com seus olhos, e são nesses momentos que sinto sua alma, seu coração, e me vem essa impressão de que a conheço. Nestes momentos, quando estou dentro dela, sinto pena, pois é muito triste. Sente-se só, abandonada, e há traição à sua volta, posso ver, mas ela não. Quero avisá-la, protegêla…, mas não posso!
Daniel calou-se. Sua expressão traía o que lhe ia pela alma: uma angústia profunda e palpável.
— O que será que significa isso? — perguntou Carlos para Ana.
— É sua imaginação!
Todos se voltaram para Cris.
Ela ainda estava em seu saco de dormir, mas com o tronco semilevantado, apoiada em um dos cotovelos.
O tom que ela usou em sua afirmativa demonstrava o que sentia.
Cris estava com ciúmes. E ódio.
Ódio daquela cegueira que não permitia que ele a visse e deixava espaço para que outra habitasse seus pensamentos.
Ela nunca sentiu ciúmes como aquele, nem nas vezes em que Daniel aprontou das suas, casinhos com garotas fúteis que Cris identificava na hora como tolas de cabeça oca, apenas diversão temporária.
Mas agora era diferente. Ela não podia ver quem era sua rival.
E a forma como Daniel se referia a garota, o tom carinhoso em sua voz, a preocupação legitima com o bem-estar dela... Ele conhecia o íntimo daquela garota dos sonhos, e a única pessoa com quem ele deveria ter uma ligação tão íntima era com ela, Cris.
E mesmo sabendo que era apenas uma visão, não gostou da paixão que percebeu na voz dele.
— É apenas sua imaginação, Dan! — reafirmou ela veementemente. — Como sua mente não consegue extrair imagens do mundo exterior, ela mesma cria! Esta garota que vê é bem aquilo que disse, uma visão, nada além disto.
Daniel pousou sobre ela os olhos brancos. E novamente ela odiou aquilo. Como queria sentir os olhos dele queimando sobre ela.
Ele balançou a cabeça, parecia triste:
— Você está certa. É só minha imaginação. — Então se calou e recostou-se na rocha de olhos fechados.
— Olha, não acho que seja só… —Ana começou a falar, mas calou-se diante do olhar de Cris.
— É só o que é, Ana! Chega de besteiras e vamos dormir!
A menina, que nunca tinha visto a amiga assim, não falou mais nada e foi de mansinho para seu canto.
Quando se virou para se deitar, os olhos de Cris encontraram os de Pedro.
E o que ela viu neles foi decepção, confusão. Raiva?
Não podia culpá-lo, afinal, há pouco Daniel a tratara como uma cachorra e agora lá estava ela, se mordendo de ciúmes.
Enviou-lhe, também pelo olhar, um pedido mudo de desculpas, que tivesse paciência, que acreditasse que ela encontraria forças para pôr um fim em tudo aquilo.
Pedro soltou um longo suspiro, relaxou os ombros e lhe sorriu. Ela sorriu de volta.
Cris aconchegou-se na coberta e adormeceu, prometendo a si mesma que, em breve, seria livre.
Talvez ela não dormisse tão serenamente se soubesse que o destino não costuma respeitar as promessas que fazemos a nós mesmos.