O som de cordas, flautas e címbalos enchia a noite do deserto.
À volta de uma grande fogueira, pessoas riam, conversavam e dançavam.
Duas lindas ciganas, com suas saias esvoaçantes, tentavam ensinar Ana a dançar, enquanto Cris, Pedro e Carlos estavam sentados ao lado de Orlev, conversando junto da fogueira.
— Peço desculpas pelo comportamento de Daniel agora há pouco, Sr. Orlev — disse Cris enquanto petiscava uma massa recheada de queijo.
O cigano levantou a mão.
— Não se desculpe pelos outros, murri shukar, minha linda. Deus sabe do peso das falhas que todos nós carregamos para termos que arcar com as falhas alheias. E me chame de Orlev, sem o senhor.
— É que Daniel é tão… — Ela não soube como completar a frase.
— Irresponsável, agressivo — completou Orlev para ela. — Mas ele também é impetuoso, forte! Com uma mão firme a guiá-lo, daria um ótimo gitano! Tenho mulheres aqui que de bom grado o aceitariam em casamento! Posso falar com Kantor e livrá-lo deste fardo, bem como a vocês.
Cris parou de comer e o olhou de frente.
— Você diz transformá-lo em um cigano?
— Sim. Ele deixaria de ser um gadjé e se transformaria em um cigano.
— Não! — disse Cris, incisiva. — Daniel tem outras obrigações inadiáveis nesta vida!
Orlev riu.
— Vejo que ele já tem uma mão forte a guiá-lo!
Cris baixou os olhos e sussurrou:
— Não tão forte como deveria.
— Sabe, Orlev — disse Pedro, mudando de assunto —, ver seu clã com os mesmos hábitos, danças e músicas que, pelo que me lembro de ter visto aqui e ali em algum contato ocasional ou em alguma pesquisa, eram comuns entre os ciganos terráqueos é como voltar no tempo, é ter de volta um pedacinho de nossa época.
— Que bom que isso lhe traz boas recordações, rapaz. Mas houve mudanças em nosso modo de vida. Meu povo existe há eras, e o segredo de tal longevidade é a capacidade de adaptação dos romani. Quando houve a grande destruição, o fato de muitos de meu povo não viverem nas cidades, e mesmo por terem já hábitos de vida nômade, foram decisivos para nossa sobrevivência. Ao longo dos séculos, nos adaptamos, outros povos nômades se juntaram a nós, trazendo sua cultura e nos enriquecendo cada vez mais. E aqui estamos nós, nos preparando para o nosso próximo grande passo!
— E o que seria? — perguntou Carlos.
O cigano apontou o dedo para o céu noturno.
— As estrelas, meu amigo! — respondeu Orlev com um brilho nos olhos. — Mercadejaremos entre os sóis, leremos a sorte das mais variadas espécies! Nossas fogueiras arderão em mil mundos e nossas mulheres dançarão nos confins do universo!
Orlev falou de forma inflamada e os garotos o olharam admirados.
— E o que falta para que isso aconteça, Orlev? — perguntou Cris, emocionada pela narrativa apaixonada do homem.
— Basicamente, uma nave. E uma forma de sair do planeta, já que os atlantes controlam toda entrada e saída espacial. Estamos muito próximos da condição de adquirir uma nave grande o suficiente para todo meu povo. Kantor até nos ajuda com isso, mas o problema é conseguir autorização para voar.
Pedro disse:
— Do jeito que os atlantes nos odeiam, é bem possível que permitam que você vá. Seriam alguns terráqueos a menos.
— Isto poderia ser verdade logo após a grande destruição — rebateu Orlev —, mas, hoje, nós terráqueos estamos diminuindo de número, e isso significa menos mão de obra escrava para os atlantes. Somos uma espécie em extinção, meus amigos.
Aquela constatação abalou os jovens e os deixou mudos por alguns instantes. Pedro retorquiu sem convicção:
— Dizem que ainda há muitos terráqueos do outro lado da barreira.
Orlev fez um muxoxo:
— Não tantos assim. Meu primo esteve lá e me disse isso.
Pedro arregalou os olhos.
— Seu primo esteve do outro lado da barreira?
— Sim — respondeu Orlev — Há alguns anos, nosso clã se tornou muito grande e achamos por bem nos dividir. Meu primo liderou o outro grupo e decidiu tentar a sorte depois da barreira. Voltou dois anos depois, com menos da metade das pessoas que foram com ele. Disse-me que há muita guerra, fome e doenças. Ele mesmo faleceu logo depois, vítima de alguma doença que não conseguimos curar. Isso foi há uns vinte anos.
— Como eles conseguiram chegar lá? — Voltou a perguntar Pedro, interessado. — Por mar?
— Não. Há um caminho por terra pouco conhecido. Tenho um mapa, meu jovem, e eu o darei a você.
— Oh, obrigado! — Pedro agradeceu. — Mas este mapa não pode vir a lhe ser útil?
Orlev riu.
— Não. Como lhe disse, meu destino é para lá, — e voltou a apontar para o céu —, e não para lá. — E apontou o polegar por sobre o ombro, mostrando a direção onde se encontrava a grande barreira magnética. — Mas, por enquanto, vamos ficando por aqui! O comércio tem sido bom para nós. Amanhã iremos em direção ao litoral buscar mais mercadorias para vendermos na Cidadela.
— O que vocês vendem? — perguntou Carlos.
— De tudo um pouco, mas principalmente tecidos. Os compramos de uma tribo que vive em algumas baías bem ao sul de Atlântida. Eles já foram um povo do deserto. Quando da grande destruição, o deserto que habitavam foi aos poucos sendo invadido pelo mar. Eles fugiram através das montanhas Skelers e chegaram ao continente de Atlântida, onde encontraram este deserto — Orlev fez um gesto com a mão abarcando os arredores —, e acreditaram ter encontrado um novo lar. Mas os atlantes trouxeram os shakluir, e eles tiveram novamente que migrar. Navegantes trazem da Terra de Agóz as fibras vegetais com que eles produzem tecidos de qualidade inigualável, tingidos com cores incríveis e estampas maravilhosas. Vejam.
Ele foi até uma tenda próxima e trouxe um belo lenço para cabelos, vermelho com arabescos verdes, estampados nele.
— Vejam a leveza do tecido, seu toque suave! Olhem como suas cores ficam vivas sob a luz do fogo!
Os rapazes olharam interessados, mas sem muita motivação. Cris, por sua vez, tinha os olhos brilhando.
— É lindo! — disse, extasiada. Depois mirou o cigano, fingindo indignação. — Orlev! Está tentando me seduzir para comprá-lo, é isto?
O homem riu alto, jogando a cabeça para trás.
— Vendê-lo a você? Jamais, murri shukar! Ele é seu, um presente!
— Oh, Orlev! — exclamou ela. — Muito obrigada! Não sei como agradecer!
— Não é preciso, bela Cris. A visão de você usando este lenço será um presente aos meus olhos
— Hum — disse Carlos. — Deixa o Daniel ver você garanhando a garota dele e aí sim você vai levar um belo “presente” nos olhos.
Todos riram, divertidos.
— Você vende os tecidos para os atlantes, Orlev? — perguntou Cris enquanto admirava seu presente.
— Não — respondeu ele. — Eles são muito arrogantes para usar qualquer coisa produzida diretamente por terráqueos livres. Nós os vendemos para os gadjés de outros planetas.
— Para ETs?! — perguntou Carlos, perplexo. — Extraterrestres, quero dizer!
— Sim. Veja, em frente aos portões de Poseidia fica a Cidadela de Honferash, que é o entreposto final das mercadorias que saem e chegam ao planeta. Mais próximos aos muros ficam os estabelecimentos dos negociantes atlantes que fazem a intermediação dos maiores volumes de negócios, aqueles que levam o selo imperial de procedência. No Segundo Círculo ficam os negociantes estrangeiros autorizados, de outros planetas, e na periferia fica toda sorte de negócios pequenos e muitas vezes ilegais. Aí ficam também os bares, as casas de jogos e o leilão de escravos. Isso gera uma movimentação grande de pessoas, então meu povo circula entre eles, oferecendo nossas mercadorias. Muitos compram como souvenires, mas alguns, como um ixiano que tem um ponto no Segundo Círculo, compram em maiores volumes e contrabandeiam para fora do planeta, para vendê-los como legítimos produtos imperiais.
Cris sentiu um arrepio.
— Vimos uma vez um leilão de escravos. — Lembrou-se ela. — Lá em Agóz. É uma coisa triste.
— Muito triste — confirmou Orlev. — E sórdido! Mas o que vocês viram, com certeza, foi um leilão regional. Este é o principal e o maior do império. Todos aqueles que quiserem vender ou comprar escravos tem que vir até aqui para negociar. E somente os melhores “espécimes” são vendidos aqui.
— Então são trazidos escravos de todo o império? De todas as raças? — perguntou Pedro, impressionado.
— De todos os cantos do império. Atlantis gera escravos todos os dias: rebeldes capturados, traidores, bandidos, seres que caíram em desgraça perante algum atlante poderoso, aqueles que, por vários motivos, acabam à margem da sociedade. Servos terráqueos e atlantes só podem ser vendidos e comprados por atlantes. Se um estrangeiro for pego tentando contrabandear um, é pena de morte na hora.
— Vocês, como terráqueos, nunca foram importunados? — Quis saber Pedro.
— Os atlantes evitam circular pela periferia, e os de fora não são tão xenófobos, e além do que são em sua maioria negociantes, e para estes não importa se você é branco ou verde, se tem uma ou duas cabeças. O que lhes importa é que tenha dinheiro. Uma vez só um caçador de escravos busniano tentou raptar uma de nossas meninas, mas nós o pegamos.
— E vocês fizeram o que? — perguntou Carlos.
— O levamos conosco para o sul e a cada dia cortávamos um pedaço dele e o deixávamos pelo caminho. Busnianos têm dois corações e sangram pouco, por isso são bem difíceis de matar. Foi possível deixar suas partes por um longo caminho até que ele morresse de fato. Isto se espalhou pelo mercado periférico, então fomos deixados em paz.
Os jovens encararam o homem sem saber se ele estava brincando, mas, pelo brilho selvagem que vislumbraram em seus olhos, viram que não.
Nisto, Ana chegou afogueada, os olhos brilhando e as faces avermelhadas.
— Nossa! — exclamou com um sorriso estampado no rosto. — Fazia tempo que não me divertia tanto!
Sentou-se ao lado de Cris e viu o lenço que ela deixara sobre as pernas.
— Amiga! Que coisa linda!
— Não é? Foi Orlev quem me deu.
A menina virou para o cigano e o fuzilou com os olhos. Ele levantou as mãos, rindo.
— Calma, minha pequena fera! Você vai ganhar um também!
— É bom mesmo! — disse ela, levantando-se toda satisfeita. — Venha, Cris, vamos dançar!
— Agora não, Ana. Vou ver como Daniel está. Leve os meninos com você.
— Tá certo. Venham, seus palermas!
Toda feliz e agitada, Ana agarrou Pedro e Carlos pelos pulsos e os arrastou para a área de dança, mesmo com os protestos de Pedro.
Cris pediu licença a Orlev e se retirou.
Ela contornou a fogueira, onde as pessoas dançavam, e seguiu pelo corredor entre duas barracas.
Assim que se afastou da luz do fogo, a escuridão a envolveu. Mas logo seus olhos se acostumaram à pouca luz que a lua minguante fornecia.
Escalou uma das dunas atrás do acampamento e viu a silhueta de um homem recortada contra o fundo escuro do céu.
Ele estava encostado em um afloramento rochoso e vigiava ciosamente outra figura mais além, sentada no topo da duna e que olhava fixamente para o local no horizonte, onde era possível ver uma luz azulada se derramando sobre as dunas distantes.
Era ali que Poseidia, a capital atlante, estava.
O cigano olhou para Cris e ela acenou com a cabeça. Entendendo o sinal dela, o homem curvou-se e se retirou, agradecido por poder ir à festa e não ficar vigiando aquele gadjé maluco.
Cris se aproximou e Daniel ergueu os olhos para ela.
— Posso me sentar? — perguntou Cris.
— Claro — respondeu ele chegando mais para o lado e dando-lhe um lugar no tapete que levara para se sentar.
Ele se recusou a participar da festa e já há algumas horas estava ali, sentado a mirar o horizonte.
Orlev havia permitido, mas designou um de seus homens para vigiá-lo.
Cris se sentou, olhando em volta.
— Não corremos o risco de sermos atacados por algum daqueles animais do deserto? — perguntou ela, preocupada.
Daniel deu de ombros.
— Não. Orlev disse que os atlantes colocaram marcadores químicos que limitam os animais ao deserto profundo.
— Para um povo que diz respeitar religiosamente a natureza, eles manipulam bastante o meio ambiente quando os interessa, não é? — observou a garota.
— O planeta é deles, então podem fazer o que quiserem — respondeu-lhe Daniel, com azedume.
— Mas se por acaso um destes bichos aparecesse, você daria um jeito nele — disse ela com certeza, tentando deixar a conversa mais animada.
Daniel nem respondeu. Continuou abraçando os joelhos e olhando para a frente.
Ficaram quietos por mais alguns instantes. Cris puxou conversa novamente:
— Desculpe por ter batido em você hoje.
Ele levou um tempo para responder:
— É a segunda vez que você faz isso — disse Daniel friamente.
— Na primeira vez você mereceu! — rebateu ela. — Não devia ter feito aquilo com Ana! Mas, hoje, foi uma explosão, um descontrole… Fiquei tão aliviada de te ver vivo que não me segurei.
— Podia ter me abraçado e beijado então — disse ele com um leve toque de ironia.
— Mas eu também estava furiosa! Onde se viu fazer o que fez! Pensando bem, você mereceu o tapa desta vez também!
— Pode ser — disse ele —, mas pode ter certeza de que não haverá uma terceira vez.
O silêncio desta vez durou mais. Foi Cris quem o quebrou novamente.
— Olhe para mim — pediu ela.
Mas Daniel continuava com o olhar fixo na luminosidade distante de Poseidia.
Ela segurou o queixo dele e virou-lhe o rosto em sua direção.
— Olhe para mim — pediu ela novamente. — Não há nada lá para você.
— Há sim. Mirna.
Ela segurou o rosto do rapaz entre suas mãos.
— Eu desisti de tentar entender esta sua obsessão por Mirna, o porquê de você acreditar que precisa dela, então volto a te dizer: não há nada lá para você! Tudo o que você precisa está aqui, na sua frente.
Daniel a encarou com firmeza.
— Está mesmo? Mirna é como uma irmã para mim, e por mais que a ame e precise dela, poderei um dia me acostumar com sua ausência, mas e você? Você é a mulher que amo e a sua ausência me será mais dolorida, pois estará sempre do meu lado, mas sempre ausente emocionalmente! Terei que conviver com a ideia de que algum dia você terá outra pessoa em seu coração, em seus pensamentos! Então me diga, Cris, o que há para mim aqui, na minha frente?
Ela o encarou, aturdida com a carga emocional que ele colocou em suas palavras. Acariciou-lhe o rosto e disse:
— Há uma mulher que o ama e quer ficar com você.
Ele a olhou, confuso, temeroso talvez de não ter entendido o significado de suas palavras.
— Quer… ficar?
— Sim! — respondeu ela. — Por Darian, antes que pergunte, mas também por mim. Eu quero me casar com você, Daniel Agarenom! Eu o amo e sempre vou amar!
E, dizendo isso, depositou um beijo suave nos lábios dele.
Daniel a puxou para si e a beijou longamente. Um beijo para preencher toda a ausência, findar toda a distância.
O corpo dela encontrou seu devido lugar junto ao dele, corações batendo em uníssono. Um entendimento completo, sem necessidade de palavras.
Mas, lá no fundo da alma dele, um pequeno nicho de incompletude permanecia.
Já era alta madrugada quando ele a trouxe, adormecida em seus braços.
Entrou silenciosamente na tenda que lhes fora destinada. Os amigos dormiam profundamente, cansados das emoções do dia.
Ele a deitou suavemente em um dos catres e puxou a coberta sobre seu corpo.
Ficou ali parado, olhando para os traços de seu rosto, que a luz da lua que entrava pela porta, já no seu ocaso, desenhava em prata.
Ela se remexeu, mas não acordou. Daniel se reclinou e depositou-lhe um beijo suave na testa.
— Me perdoe — sussurrou.
Saiu pela porta e se esgueirou pela sombra da barraca, sumindo na escuridão atrás dela.
Ele não viu o homem que estava oculto mais adiante, mesclado entre as sombras.
Assim que o rapaz desapareceu, ele se mexeu e se dirigiu à barraca central do acampamento.
Sem cerimônia, deslocou o tecido da porta e entrou na semiobscuridade.
Lá dentro, sentado em algumas almofadas, um homem fumava um cachimbo.
— O gadjé se foi, como você disse que faria — disse o recém-chegado.
Orlev soltou uma baforada de fumaça, que lentamente se elevou em direção ao teto.
— Não. Como nosso amigo Kantor disse que ele faria.
O cigano ficou mirando a fumaça que se desenrolava em espirais.
— A roda do destino está novamente em movimento.
Continua em:
Atlantis, A Profecia
Livro 2: Poseidia