Os sons das rodas de aço trepidando sobre os trilhos são uma música de fundo perfeita para o mundo que corre através da janela. “Tatá-tatá… tatá-tatá…” Lá fora, o breu noturno cobre tudo; já passei tantas e tantas vezes por esse caminho que nem preciso mais ver o que há do outro lado desse vidro. Minha imagem refletida na janelinha do trem é distorcida e eu já não me reconheço nela. Vejo, em vez disso, um vulto disforme e sem rosto – talvez seja este o meu verdadeiro eu.
Sempre fui maquinista. Sempre comandei trem. Sempre acordei cedo, para ir trabalhar de trem às cinco da manhã com o dia ainda escuro. Sempre levei pessoas de um lado a outro, trens cheios, trens vazios. No final da noite, sempre voltei para casa de trem. Esta sempre foi a minha vida.
O trem não rejeita ninguém. Leva a todos sem distinção. Pessoas boas, pessoas ruins. Meninos que vão para a igreja e meninas arruaceiras. Moças de família e ladrões. Mendigos e prostitutas. Sem distinção. Com o tempo, vai-se acostumando com o tumulto, com o falatório, com os ambulantes e pedintes e com os pequenos vandalismos; vai-se criando casca, fingindo que não dói mais. De odiar a todos, vai-se ignorando-os, até chegar ao ponto de acostumar-se com eles. Afinal, estamos todos no mesmo trem.
Sim, odeio os passageiros. Os odeio de um ódio inexplicável, enraizado, entranhado. Os odeio como odeia ao peão o touro que se vê montado, os odeio como, ao matuto, odeia o jumento carregado. Sei que cada um tem sua história, que há pessoas boas e ruins, que há a garota que vai visitar a avó e o velhinho que vai comprar remédio; sei de tudo isso. Mas os odeio. Odeio principalmente os moleques que fazem barulho e quebram o trem. Que mexem com os outros passageiros procurando brigas e que dizem grosserias às meninas. Certa vez, saindo do serviço, dei com uns desses arruaceiros, rebeldes da moda, quebrando os vidros do trem com um taco de baseball. Me enfureci, fui pra cima, eles estavam em três, e me lembro de estar, de repente, deitado no chão, aqueles frangotes rindo-se de mim, da minha incapacidade de impedi-los. Me lembro de tentar me mover e não conseguir, de me sentir completamente impotente, imóvel, diante de vândalos bêbados e fétidos... Até hoje não sei se isso foi um sonho. Sonho muito com trens, até por não ter muito mais com que sonhar.
Agora estou aqui, sentado na janelinha ao lado da porta. Já não lembro se estou indo trabalhar ou se estou voltando pra casa; na verdade, isso importa pouco. Me sinto sonolento, em um estado de torpor eterno, que não cessa, que não me deixa almejar mais nada. Mas parece que dessa vez é diferente; a viagem é diferente de alguma forma.
De canto de olho, vejo um jovem rapaz encostar no banco ao lado da porta e começar a mexer em algo no celular, completamente despreocupado. De repente, o som de uma música alta explode dos pequenos alto-falantes do telefone. Sem fones de ouvido. Sem pudor. “É a minha música, azar o de vocês se não gostarem”, ele parece insinuar — como se “aquilo” que ele estava ouvindo pudesse ser chamado de “música”...
“Tatá-tatá…”
À minha frente, a uns dois ou três bancos de distância, há uma moça. Bonita. Pele desidratada de sol. Roupas puídas e fora de moda. Não que eu entenda de moda, é claro; mas aquelas roupas poderiam ter sido usadas pela minha vó Gertrud. Na moça, no entanto, ficam bem. Talvez seja pela beleza judiada da pessoa que a veste: há pessoas que só ficam bem em roupas pobres.
Eu sorrio e olho para mim mesmo, para o meu uniforme da Companhia de Trens da Alemanha. Ele é bege, desbotado e grosseiro — lembra os antigos uniformes da República Democrática Alemã[1]. Há algumas manchas de fuligem e de sangue seco - maquinistas costumam se machucar com frequência, sempre que precisam entrar embaixo de uma composição para fechar alguma torneira de ar ou alguma válvula, desligar algum relê ou chave de força. Nossas mãos estão sempre sujas de fuligem e graxa. Nossos uniformes, também.
A moça percebeu que eu a estava olhando. Ela fecha a cara e vira-se para o outro lado.
“Pronto. agora vai fazer uma reclamação de mim na Companhia. Vai dizer que eu a estava molestando”, eu penso. Moças pobres sempre fazem isso com a gente. Quando eu briguei com aqueles arruaceiros, não me lembro de ter visto ninguém vir me dar os parabéns - pelo contrário: a conversa no dia seguinte, entre os passageiros dentro dos vagões, era algo assim:
— Você ficou sabendo da briga que teve na estação Wolfsburg ontem à noite?
— Oh, sim, está todo mundo falando! Um maquinista quis bater em três garotos que estavam voltando da escola!
— São todos uns brutos. Sem instrução. Sem educação nenhuma. Os meninos só estavam falando um pouco alto e brincando uns com os outros, pra descontrair, depois de um dia cheio… Não estavam incomodando ninguém. Bem, pelo menos, foi o que ouvi dizer…
— Esse pessoal da Companhia de Trens pensa que está nos fazendo um favor… Mas somos nós que pagamos o salário deles! Eu rezo para que a Companhia coloque trens automáticos! Oh, seria tão bom se livrar dessa raça!...
Ninguém se lembrou de dizer que, sim, eles estavam incomodando as pessoas. Falavam alto e falavam palavrões. Falavam obscenidades para as moças. Faziam gestos pornográficos para elas, quando lhe viravam o rosto. Tentaram quebrar uma janela com o taco de baseball. Mas a culpa foi minha, por ter pedido para que saíssem e por tentar chamar os seguranças.
Já estou vendo tudo. Essa moça, amanhã, vai dizer que eu a molestei. “Ele olhou para mim, depois sorriu e olhou para baixo, para a sua genitália”, ela vai dizer. “Acho que ele estava até se tocando”. Imediatamente, o sorriso se esvai do meu rosto. Tento olhar para a noite lá fora, mas não dá pra ver quase nada. Nem o meu reflexo - mas já não quero ver meu rosto. Sou um tipo muito comum; nariz normal, olho castanho, cinquenta anos. Cabelos e barba bem aparados, porque a Companhia não permite que a gente esteja desalinhado. Meu quepe de maquinista está no bolso da calça. Eu queria ter trocado de roupa antes de sair do expediente. Normalmente, a gente vai até os vestiários da estação e troca de roupa, assim que o expediente termina. Isso é bom porque não suja mais o uniforme (não mais do que já o sujamos durante o dia) e porque nos deixa “à paisana”, durante a viagem de volta pra casa. Agora eu não sou mais um maquinista; nesse momento, sou apenas uma boa alma querendo voltar para casa.
“Tatá-tatá…”
“Schhhhhlap!”
Enquanto o trem chacoalha suavemente sobre os trilhos, um som diferente me chama atenção. No banco ao lado da porta, o funk se mistura ao barulhinho de uma latinha sendo aberta se mistura ao cheiro suave de cerveja. O rapazote, de uns dezoito anos no máximo, está virando sua cabeça para trás e deixando que o líquido escorra livremente pela sua garganta. Ele baba um pouco e deixa cair cerveja no banco ao lado – isso vai ficar fedendo até amanhã de manhã, se o trem não for recolhido para limpeza. Ele usa um boné virado e enxuga a boca com a manga da jaqueta, enquanto deixa que a lata, já vazia, caia e role pelo chão do vagão. Enquanto a barulheira permanece saindo daquele aparelho em suas mãos, a sua cabeça permanece para trás, deitada sobre o outro banco, seu rosto voltado para o teto, os olhos fechados. Vai começar a roncar.
A lata dança lentamente, de um lado para o outro, seguindo os movimentos do trem. “Tatá-tatá”. Aperto os lábios, o incômodo crescendo dentro de mim. Um passageiro me lança um olhar quase inquisidor: dá pra ler no seu rosto que ele acha que, se eu estou com esse maldito uniforme bege da Companhia, então a minha obrigação é tomar uma atitude.
“Pra quê?”, eu penso. “Mesmo que eu reclame, ele vai me ignorar. Já vi isso acontecer mil vezes.”
Com um suspiro resignado, desvio os olhos e me concentro novamente na janela escura. Do lado de fora, apenas o negro absoluto. Do lado de dentro, a mesma escuridão. É sempre assim: uma lata rolando, um aviso não atendido, um passageiro indiferente. Abaixo a cabeça e fecho os olhos, tentando ignorar o som da lata que agora se choca contra o pé de outro passageiro, provocando outro olhar irritado e murmúrios abafados. “Tudo previsível, tudo sempre igual”.