Olho para este palhaço Iago, que me diz desaforos como se tudo na vida fosse motivo para dar risadas. Como a vida de um ser humano pode ser assim, tão fútil?
— Mas, me diga, hã… Noêsis, não é? — é a segunda pessoa que deduz o meu nome, ao se atentar para o meu uniforme, mas o pronuncia de forma errada. Com o “ê” fechado. Como o meu pai fazia, quando estava bêbado e queria me irritar.
— Noésis. Com o “é” aberto.
— Ah, desculpa, é que nunca havia ouvido esse nome antes. Mas então, seu pai costumava te levar para o circo?
— Não. Nunca fui ao circo.
— Ah, então deve ser por isso que você é tão sério! Sabe, amigo, a alegria da vida é achar graça em coisas simples, em pequenas desgraças. Veja o palhaço, por exemplo: ele toma chutes na bunda, cai do cavalo, tropeça e toma torta na cara… e ri. A vida não pode ser só ressentimento, senão a gente fica louco.
Louco. É isso. Estou ficando louco. Me pergunto se esse idiota está mesmo na minha frente, falando essas besteiras. Olho em volta e me pergunto se alguém não sequestrou a minha sanidade.
Então me lembro de algumas coisas do meu pai. Este palhaço, ao tirar a máscara, me fez ver o velho Humbert tal como ele era: um pai viciado em álcool que se divertia em queimar meus braços com as pontas dos cigarros de palha. Um cara que só lembrava de brincar comigo depois que estava satisfeito, após o sexo forçado com a minha mãe enquanto eu era colocado pra fora de casa, pra brincar na varanda.
Uma gota de lágrima escorre pelo meu rosto, enquanto ouço o tilintar agudo de metal. A saboneteira da porta acaba de cair no chão, e a chave de abertura manual está balançando conforme o trem chacoalha sobre os trilhos.
— Meu pai costumava bater na minha mãe. Ele costumava chegar bêbado em casa, quebrar os meus brinquedos e rasgar os meus gibis.
Iago parece não ter sequer notado o barulho da saboneteira no assoalho, e me olha com compaixão. Tenta se desculpar:
— Oh, me desculpe. Não queria ser o responsável por te trazer más lembranças. Eu sou um palhaço, entende? Sempre tento trazer coisas boas para as pessoas, mas nem sempre consigo.
Olho para a jaqueta nas minhas mãos. Não sei de quem é essa roupa. O seu couro é áspero como as mãos do meu pai. O seu marrom é escuro como as toras de madeira que eu carregava na juventude.
— Pois é — respondo. — Meu pai também tentava, mas nunca conseguia.
Ele me olha, como se estivesse pensando em algo bonito para dizer. Tenta uma palavra de conforto:
— Olha, meu amigo… Tem coisa que a gente carrega por anos, achando que ainda pesa. Mas, no fundo, já devia ter largado faz tempo.
— É fácil dizer isso. Você não sabe como foi a minha vida depois que ele se foi. — eu retruco.
— Não sei se é fácil… Mas sei que tem uma coisa que a gente esquece de perguntar: por quê?
— Por que o quê? — ele está começando a me irritar novamente. O que ele está pensando: que sabe mais da minha vida do que eu mesmo?
— Por que você ainda guarda essa porcaria toda? Por que ainda repete na sua cabeça o que ele fazia, o que ele dizia? Se ele era tão ruim assim, por que você ainda o deixa existir dentro de você?
A pergunta me deixa sem reação: pra falar a verdade, eu nunca havia parado pra pensar dessa forma.
— Oras, porque… porque… Ele era o meu pai, seu imbecil. Ele me fez ser quem eu sou.
— Ah, é? E quem é você? — uma nova pergunta para a qual eu não tenho resposta. — Amigo, veja bem: como eu disse, eu sou um palhaço. Meu trabalho é cair, tropeçar, tomar chute na bunda e fazer todo mundo rir disso. Se a vida não pode ser nada além de ressentimento, então eu já perdi antes mesmo de começar. Mas você… Bem, você precisa decidir quais quedas vale a pena levar, e quais chutes vale a pena vingar.
Ele se resigna, bate as mãos sobre os joelhos e diz:
— Olha, eu estou cansado. Eu tive um dia cheio, fazendo brincadeiras com um monte de gente chata, rindo e gozando da cara de todo mundo, e, por fim, gozei de novo, na mão daquela mocinha simpática. Se não fosse por ela ter me dado esse presentinho, eu talvez estivesse tão irritado que já teria brigado feio com você. Então, me desculpe… Não quero ser seu pai nem seu psicólogo. Me deixe sequestrar esse trem em paz, ok?
Ele solta uma nova gargalhada de satisfação. Ele está levando um trem embora – um trem muito antigo, do qual já deveria ter me livrado. Mas eu ainda não estou satisfeito:
— Acho que esta conversa está como este trem: nunca vai chegar a lugar nenhum.
— Esta conversa acabou. Agora vou dormir um pouco — ele responde. — Essa conversa chegou onde tinha que chegar, e o trem também chegará.
— O que você quer…
O trem freia bruscamente, as luzes de emergência começam a piscar e as portas se abrem para uma estação vazia.
Eu paro minha frase no meio. Não posso perder a oportunidade. Deixo Pirulito, o meu pai, o telhado de palha, tudo pra trás. Levanto atabalhoadamente e vou tropeçando até sair do trem. Estou livre!
Olho a plataforma. Não sei dizer que plataforma é essa; provavelmente, alguma plataforma muito distante. Não me lembro dessa plataforma comprida e escura; tento puxar na memória a época de treinamento. Durante o treinamento, nós temos que visitar e conhecer cada uma das plataformas da Companhia, e tenho certeza de que nunca vi esta, em momento algum da minha vida de maquinista. Pode ser que esta plataforma seja nova. Quem sabe, uma plataforma construída em algum lugar longínquo, depois que eu entrei na Companhia, há mais de trinta anos.
Não, a plataforma é antiga e mal conservada. Imagino que seja de alguma cidade bem distante; talvez esse trem tenha chegado no interior, em alguma estação abandonada. Mas como isso seria possível, se não haveria mais rede de energia por ali?
Não há placas nem indicações, não há nomes de destino ou partida. Não há pessoas nem funcionários por perto. É uma estação abandonada – e parece estar abandonada há anos; décadas, talvez. Há bancos de madeira descascada, há postes com luzes queimadas, o piso de concreto rachado e a tinta amarela da borda da plataforma, completamente gasta. Olho para o céu: negro, sem lua, sem estrelas. Sem nenhum resquício de crepúsculo ou aurora.
Começo a andar em direção à frente do trem. Quero chegar à cabine, ver quem é o maquinista, tentar entender o que está acontecendo. O trem parou; havia mecanismos de segurança. Nenhum passageiro saiu correndo de dentro dos demais vagões – aliás, não houve sequer desembarque: se este trem estivesse desgovernado, certamente todos estariam correndo para fora do trem, em pânico. O que está acontecendo?
As portas se fecham e a escuridão toma um espaço que antes era preenchido pela iluminação que vinha de dentro dos vagões. Sinto um calafrio percorrer meu corpo, e começo a correr: preciso chegar à ponta desse trem, antes que ele comece a andar novamente. Preciso descobrir de uma vez por todas qual o mistério dessa viagem. Preciso chegar a Roma, enfim. Mas, quanto mais eu corro, mais longe pareço estar do fim da plataforma.
Começo a arfar. Começo a perder o fôlego. Começo a tropeçar nas próprias pernas. Paro esbaforido, e coloco as mãos nos joelhos, ofegante. Olho para a frente: o trem se estende até onde minha vista alcança, apesar de, com a noite tão escura, minha vista alcançar muito pouco. Olho para trás. Será que vale a pena correr até o outro lado do trem? Poderia até ser, mas sei que minha idade e minhas pernas não me permitem mais pensar nessa possibilidade.
— Onde estou, meu Deus?
Volto a andar, fazendo o caminho de volta, a passos lentos. Há uma pequena luminosidade vinda de um ou outro poste. É estranho… Com as portas fechadas, não há sequer um reflexo luminoso escapando das janelas; é como se o trem estivesse totalmente inoperante, desligado. E, mais estranho, o trem não faz nenhuma menção de partir — seja para frente, para prosseguir viagem, seja para trás, para retornar. É quando, ao longe, consigo observar alguém sentado em um dos bancos da estação. Apresso o passo, tenho que chegar até ele.
Ao chegar perto, meus olhos pousam na jaqueta de couro, esfarrapada e judiada, cravejada de pequenos furos e jogada de qualquer jeito sobre o banco. Ao lado dela, um rapazote. Cabelos louro-pálidos, aspecto franzino, tênis de marca. Blusão de moletom cor de creme, com um enorme “CiZ” pichado em vermelho com tinta spray. Um ar de bobalhão que eu conheço muito bem dos meus pesadelos. De repente, eu perco de vez os sentidos.