Enquanto eu conto a minha vida a Virgílio — aquilo tudo era verdade, e era uma vidinha tão miserável e sem-graça que eu nem precisaria esconder nada; não havia nada de relevante – eu vou percebendo, de canto de olhos, as ações do palhaço e do barbudo.
— Pois é. O meu jeito de encarar foi me tornar adulto e domar esse monstro. Ser maquinista, pra mim, é a oportunidade de ser o peão de um touro indômito. Hoje, é o trem que me obedece.
Não era uma verdade completa; o meu principal motivo para ser maquinista é o salário e os horários flexíveis. Eu moro sozinho, não tenho filhos nem esposa. Nem uma mulher peituda que, de vez em quando, queira brincar com meu pirulito. Não tenho nem mesmo um cachorro. O salário me permite gastar com o que eu gosto: revistas de super-heróis, assinaturas de TV e streaming, para ver as minhas séries, equipamentos de jogos, controles em forma de volantes e óculos de realidade virtual. Também compro muitos e-books para carregar meu e-book reader, porque, na Companhia, você nunca sabe onde vai ter que dar plantão. Às vezes, você precisa ficar a noite inteira dentro de um trem vazio, no meio do nada, na escuridão total, aguardando um chamado com C.C.O.; nessas horas, sem poder mexer no celular, os livros são a única distração possível. Gosto de livros de terror e de mistério, e dos policiais da Agatha Christie — exceto aquele do Expresso do Oriente. Como se escreve um livro daquele tamanho e não se fala uma vez sequer nos maquinistas? Se não fossem eles, aquela história não teria existido.
Bem… dizer que “gosto” de ler talvez seja um grande exagero. Os colegas da companhia acham que eu sou um cara inteligente, só porque estou sempre lendo alguma coisa e, vez ou outra, solto uma palavra mais esquisita, como “indômito”. Para aquele bando de semianalfabetos, juntar meia dúzia de letrinhas já é sinal de inteligência. “Você é inteligente, Noesis, devia tentar um serviço melhor dentro da Companhia”, me diziam.
Ah! E também gasto muito do meu dinheiro com equipamentos de marchetaria e marcenaria, porque gosto de fazer trabalhos em madeira.
Moro numa casa pequena. A Companhia de trens possui, em algumas estações mais afastadas, algumas casinhas dentro da propriedade, que foram construídas há muito tempo, numa época em que vinha gente de todos os cantos do país para trabalhar nos trens. São como se fossem vilinhas, onde só moram funcionários da Companhia e seus parentes (pelo menos, os parentes que se conformam e se acostumam a ouvir, dia e noite, o barulho de um trem passando a menos de cinco metros da sua janela). A maioria das famílias que moram ali são de casais sem filhos, ambos funcionários da Companhia. Muitos são simplesmente sozinhos, como eu. Não tenho medo que me roubem as coisas que compro, porque, convenhamos, ninguém imaginaria que pudesse haver nada de valor numa vilinha de funcionários de trem. São casas de um ou dois quartos, encanamento de ferro e fiação de cobre rígido da década de 50. Paredes de tijolos “de verdade”, forro de estuque e telhado de cerâmica.
No meu quintal, há um barracão pequeno de madeira, onde montei minha pequena marcenaria, e um alpendre de junco e telhado de sapé, trançado com caules e folhas secas, amarrado com cipó da figueira que há ao lado. Sim, antigamente, as casas possuíam árvores frutíferas nos quintais - mas nem nisso eu dei sorte, porque odeio figos.
Um dia, eu sei, eu vou me aposentar e ter que sair de lá. Falta pouco. Quando isso finalmente acontecer, eu terei um bom dinheiro guardado e poderei comprar uma chacarazinha no interior, e viver com o dinheiro que está aplicado. Mais alguns anos.
Percebo que me perdi em devaneios. O tal Virgílio me observa falar e falar, e parece que não está acompanhando minha narrativa. Por fim, ele sorri e diz, como quem quer mudar de assunto para algo que faça sentido:
— Em qual estação você disse que precisa descer, mesmo?
— Eu não disse — murmuro — Eu tinha que descer em…
De repente, olho para o fundo do trem e congelo. Ao lado do botão-soco, agora, vejo… NINGUÉM! Onde foi parar o homem de touca e barba?
Procuro pelo vagão todo; o Pirulito ainda está ali, junto à moça. Tem a maquiagem borrada – um pouco da tinta branca ficou grudada nas bochechas da mulher ao seu lado. No rosto, um sorriso bobo. A mulher também tem os cabelos ligeiramente desalinhados, e olha para a criança com um olhar de satisfação. Ninguém se importa com a vida de ambos.
— Onde está o sujeito de barba? — inquiro, enfim, olhando fixamente para Virgílio.
— Oh, não sei!... — ele olha surpreso para trás. — Deve ter descido na última estação, talvez?
— Qual foi a última estação, Virgílio? — o olho nos olhos; esse velhote afetado está querendo me ludibriar. — Já faz tempo que não paramos em nenhuma estação.
— Hum… você está equivocado, meu amigo. O trem fez paradas enquanto você me contava sobre a sua vida, sobre a sua casinha de maquinista, sobre o alpendre que fez com o junco das figueiras, ou sei lá o quê, porque não entendi bem esta parte… Você não percebeu?
Ele parece acuado. Me olha de um jeito estranho, como se eu fosse um maluco. O ar bonachão está dando espaço para uma expressão soturna, amedrontada.
— Bem… eu, sinceramente, não o vi. Mas, se você quiser, a gente pode procurá-lo. Quem sabe ele não está deitado em algum banco, de modo que fique oculto do nosso ângulo de visão? Talvez, seja por isso que não o estamos vendo.
Sinto que ele, habilmente, me fez desviar do assunto. Há coisas importantes acontecendo. Não é hora para papos amistosos sobre trens, figos ou Agatha Christie:
— Virgílio, preste atenção — não sei se deveria usar este tom com um provável cúmplice do sequestro, mas estou agindo por impulso — Este trem está sendo sequestrado. Não parece óbvio?
— Pra falar a verdade, não estou vendo nenhum fato óbvio. — ele diz, ainda mais sério. — Eu imagino que, se fosse para sequestrar um trem, eles tentariam fazer isso em pleno horário de pico, não? Há mais gente para roubar, há mais impacto nos noticiários…
— Não, não… Veja bem: se o trem estivesse lotado, eles precisariam de muito mais pessoas para conter a população. Este trem deve estar praticamente vazio, deve ter umas oito ou dez pessoas por vagão. Um ou dois integrantes da quadrilha já dariam conta. Não há risco de motim nem de desespero generalizado. E duvido que eles estejam interessados nos bens que os passageiros estão levando. Não é um roubo, é um sequestro.
— Sei… sei… — ele ainda me ouve com apreensão. — E o que você imagina que eles pretendem fazer com o trem? Vão levá-lo para onde?
— Provavelmente, vão pedir um bom dinheiro de resgate para a Companhia. Ou eles podem estar fazendo um ato de terrorismo. Não houve atentados a trens na Europa, recentemente?
Virgílio levanta a sobrancelha. Percebo que ele não acredita em nada do que estou dizendo, e apenas está me dando corda para que eu continue a falar. Talvez ele não seja um dos sequestradores, mas certamente não irá me ajudar em nada. Ele diz, por fim:
— Se eles estiverem pedindo dinheiro do resgate, então seremos soltos em breve. Se a intenção deles é matar a todos, enfiar o trem num… poste… — ele gesticula com as mãos; não faz a menor ideia da grande bobagem que está dizendo — então creio que não há nada a fazer, não é? Mas, insisto, se a intenção deles fosse esta, eles teriam sequestrado um trem lotado. Quem sabe, colidindo com o trem da frente, o que causaria um terror ainda maior e… Ah, lembrei, você disse que isso não é possível, não é mesmo? Então, Noesis, relaxe, descanse. Não está acontecendo. É só a sua imaginação.
Me lança um novo sorriso, que tenta ser bonachão como os primeiros, mas falha miseravelmente. Ele está no banco da janela, e tenho certeza de que pensou mais de uma vez em se levantar e ir sentar em outro lugar — algum lugar distante de um louco. Só então me dou conta: “Se barbudo não está mais ali, posso chegar com facilidade ao botão soco”.