Não sei por que é que eu julgo tanto as pessoas. Elas não me dizem nada, não representam nada na minha vida, não gosto de gente. Não tenho ninguém a quem me apegar, não tenho uma peituda de coxa grossa pra me trair no trem. A única pessoa que me deu valor foi meu pai, que Deus e o trem levaram quando eu ainda era criança. Olho para o que deveria ser o meu reflexo na janela: ainda um borrão. Não ligo.
Há outro passageiro novo. Um homem de barba espessa, sentado no fundo do vagão. Será que ele já estava lá e eu ainda não o tinha visto? Será que ele entrou na última estação, enquanto eu cochilava? Eu me levanto e vou em direção a ele. Ele veste uma jaqueta cáqui desbotada, fechada até o pescoço, usa uma touca e parece mal-encarado. Tem uma grande caixa de papelão aos seus pés, fechada com fita amarela. Me olha com intimidação ao ver que eu me aproximo, mas faço um movimento de paz com as mãos:
— Tudo bem, tudo bem. Eu só quero uma informação…
Espero que ele diga alguma coisa, mas ele apenas me encara de cima abaixo e se encolhe um pouco no canto do banco. Então, pergunto:
— O senhor embarcou na última parada? Não havia visto o senhor neste vagão…
— E por que você quer saber? — vem a resposta, ríspida. — Eu não lhe devo satisfações!
— Não, calma… tem razão, não me deve nenhuma explicação mesmo, mas… é que eu dormi e agora não sei onde estamos… qual foi a última estação? A que o senhor entrou?
— E quem disse que eu entrei na última estação? O que você quer saber de mim?
Ele parece acuado. Tento de novo:
— Desculpe, não quero incomodar o senhor. Mas achei estranho que o Car… que o condutor desse trem não esteja informando sobre as paradas, e achei que o senhor, talvez, tenha prestado atenção a…
— Não há nada de estranho com o trem não — ele me interrompe, ainda mais ríspido, enquanto aperta a jaqueta sobre si como se tentasse esconder alguma coisa — e pare de se meter e ficar curiando. Cuida da sua vida!
— Ok, ok. Desculpe. — dou dois passos para trás e vou me sentar em outro banco. O homem me acompanha com o olhar, algo entre o medo e o ódio. Devolvo o mesmo olhar. Medo e ódio.
Não viro as costas. Vou me afastando de fasto. “Não anda de fasto, que a mãe morre”, dizia minha vó Matilde. Eu nunca soube o que diabos quer dizer “fasto”, mas sei que andar de ré é isso: andar de fasto. Sento-me ao lado de uma mulher, que deve ter uns trinta e poucos anos. Ela me olha com estranheza, vai um pouco para o lado e me dá mais espaço para sentar.
— Com licença — eu sorrio, me sento e viro para o outro lado, como a demonstrar a ela que não vou lhe fazer mal nem puxar assunto. Ela dá um suspiro de enfado, ajeita os óculos no rosto e se vira para a janela.
“Como se fosse possível ver qualquer porcaria de lá de fora”, eu penso. Mas estou encucado. Desde que aqueles moleques quebraram o meu celular, eu tenho perdido um pouco a noção do tempo; apanho novamente, no bolso, a escala de hoje, e vejo que Caronte iniciou o seu turno às seis e meia da tarde, e deverá sair às quatro da manhã, com o primeiro trem do novo dia. Ele irá pernoitar comigo lá na estação Roma. Eu, ele e Giulietta. Ele, um senhorzinho risonho. Ela, uma gorda peituda. Será que eu serei o Pirulito?
Há algo estranho. Eu percebo. O trem segue em alta velocidade e, por enquanto, nenhum sinal de parada. Há dois novos passageiros: um, mal encarado, que parece esconder alguma coisa; o outro, um cafajeste que se esconde por trás de uma pintura.
“É isso. Estão sequestrando o trem!”
O pensamento vem à minha cabeça como um soco, mas permaneço calmo e demonstro enfado; o homem da jaqueta cáqui ainda me encara, com certo nervosismo. Viro-me para a moça e pergunto:
— A senhora poderia me dizer as horas?
Ela faz menção de não responder, mas, por fim, vira-se para mim e diz:
— Não, não posso. Estou sem relógio.
— A senhora não teria um celular? — tento novamente.
— Meu celular está sem bateria.
Não sei se é verdade. Ela não me mostra o celular. Talvez esteja pensando que eu irei roubá-la, ou, talvez que eu seja mesmo um outro Pirulito, com o único propósito de jogar uma cantada e levá-la para um motel. O palhaço, a propósito, já está sentado bem grudado na jovem mãe, as palmas das suas mãos acariciando o rostinho do bebê enquanto as costas das mãos acariciam os peitos da moça que lhe sorri. De vez em quando, ele me lança um olhar inquisidor, como se não estivesse gostando de receber a minha atenção.
“Meu Deus! Estão sequestrando o trem! O que eu vou fazer?”
Meu coração acelera. Eu não quero encarar nenhum dos dois, mas, ao mesmo tempo, preciso prestar atenção a tudo. Não posso entrar em pânico. Não posso falhar.
Deve haver alguém nesse trem que possa me emprestar um celular. Há um senhor sentado logo adiante; está olhando para o nada, o olhar perdido em alguma parede cor pastel. Eu sento ao seu lado:
— Meu senhor, eu preciso que o senhor me ajude. Acho que estamos presos dentro desse trem. O senhor me empresta o seu celular, por favor?
O velhinho parece nem me ver. Permanece absorto olhando para a parede. Depois de alguns instantes, ele desperta:
— O quê?! Celular? Que celular? — ele fala um pouco mais alto do que eu gostaria.
— Hã… sim. Se o senhor puder me emprestar o celular, eu…
— Celular? O que é um celular, meu jovem? — ele me olha com incompreensão. É um velho senil e desorientado. Mas já conseguiu estragar os meus planos: o palhaço já percebeu que eu, agora, tenho uma desconfiança.
Minha vida, de repente, corre perigo. Esse trem precisa parar, com urgência.
Eu sou um maquinista. Eu tenho acesso aos painéis de controle. Mas isso nem mesmo é necessário: basta que eu quebre o vidro do botão-soco.
Quebrar o vidro. Apertar o botão. O trem para. Caronte vai ficar furioso comigo, mas é o que temos pra hoje. Levanto e vou em direção ao botão.
O barbudo da jaqueta cáqui se levanta. Ele está ao lado do botão-soco, em frente à sua caixa, que ainda está no chão. É claro, ele não vai me deixar chegar perto daquilo… Será que há alguma coisa naquela caixa?
Uma bomba, talvez?
Um sentimento de desespero se apossa do meu corpo. Eu não quero ter que ir até lá – não enquanto aquele sujeito estiver ali – mas sei que minha obrigação é verificar. Eu preciso pensar em mais alguma coisa. E rápido.
— Alguém… ALGUÉM… Eu não estou passando bem!... — eu começo a gritar, no meio do corredor, mão no peito simulando um infarto — Por favor, pelo amor de Deus, alguém pare este trem!
Nunca fui um bom ator. Tento me jogar no chão, mas tudo o que eu consigo é bater a cabeça em uma barra de apoio de ferro e abrir um corte na cabeça. Agora, sim, eu realmente preciso de um médico.
A mulher que está com o celular descarregado me olha com certa preocupação, mas seu olhar me diz que ela não pode fazer nada, pois está sem celular. Talvez ela estivesse falando a verdade, eu penso. Mas o senhorzinho bonachão com quem já conversei anteriormente, o tal Virgílio, vem ao meu auxílio.