— Mas, então, por que é que você quis ser maquinista, afinal de contas? — ele me questiona, e, dessa vez, eu posso jurar que ele está sinceramente curioso.
— Aaaah, Virgílio!... O trem sempre esteve na minha vida, meu caro!... Meu pai adorava trens. Ele colecionava figurinhas que vinham nos sacos de doces, ele montava composições usando latinhas de sardinha e de cerveja… sabe, há 50 anos, ninguém tinha acesso a brinquedos tecnológicos…
Preciso ganhar a confiança de Virgílio. Ele já demonstrou que não é confiável. Ele está me escondendo alguma coisa. Continuo:
— Certa vez, ele estava atravessando a ponte férrea. Normalmente, só passam trens de carga por ali. Quando você avista um trem despontando no horizonte, basta correr um pouco, e, não importa em que trecho da ponte você esteja, sempre consegue sair da ponte antes que o trem se aproxime. Os trens de carga são sempre muito, muito lentos.
Dou um sorriso, mas é falso. Não fico feliz ao recordar essas coisas. Olho para o chão e aquela latinha ainda me prende a atenção. Ela balança como um berço, dançando ao som das rodas nos trilhos, bailando junto ao rebolado do trem: “Tatá-tatá…” Prossigo:
— Mas, daquela vez, vinha um trem cargueiro desgovernado. Meu pai tentou correr o quanto pôde, mas pouco antes de chegar ao fim da ponte…
Travo novamente, o nó na garganta, a voz embargada:
— O trem o jogou longe… O trem o destroçou e o espalhou para todos os lados, como um… como um…
— Sei, como um monte de palha. — observa Virgílio — Continue.
— Como um… monte de… palha. — eu repito. Enxugo a lágrima que já começa a escorrer — O trem, o maldito trem, acabou com a vida do meu pai, acabou com o meu futuro, com a minha vida. Eu era inocente e frágil.
— Sim, e, no entanto, você chegou até aqui, não foi? Como isso pôde ser possível?
— Eu cresci e me revoltei. Meu ódio pelos trens começou aí. Na adolescência, fui trabalhar em uma madeireira. Nós tínhamos que levar caminhões e mais caminhões de madeira até uma subestação de passagem. Lá, sempre havia um vagão parado, pronto para ser carregado com os troncos de madeira e levá-los para o porto. O trabalho ali era mais leve, mas nunca gostei dessa tarefa; sempre preferi ficar com o serviço braçal de corte das árvores, apenas para poder ficar o mais longe possível daquele monstro de ferro.
— Eu imagino que aquilo te moldou. Nós sempre precisamos encarar nossos monstros.