Acordo assustado e minha cabeça bate com força no vidro do trem; talvez até tivesse soltado um grito no meio do pesadelo. Ainda estava ali, no mesmo lugar, no ambiente em tons pastéis do vagão de passageiros. Poucas pessoas se dignaram a me lançar um olhar. Tudo corria miseravelmente normal dentro daquele vagão.
É um pesadelo recorrente. Por quanto tempo eu havia adormecido? Será que já havia passado da minha estação? Às vezes isso acontecia. Eu costumava chegar até a estação final, em Roma – e não haveria mais trens para me trazer de volta até que a manhã começasse a despontar. Eu ficava na salinha do escalante[1], tomava um café que a Giulietta sempre fazia para passar a noite, e ficava proseando com o maquinista que estivesse de plantão.
Não dá pra ver nada do lado de fora – apenas luzes desfocadas passando ao longe. Vou precisar aguardar a próxima parada pra saber onde estava.
Levanto-me e vou me sentar ao lado de um senhor, que está lendo um livro:
— Boa noite, meu senhor, me desculpe… Para qual estação estamos indo?
— Roma. — O senhor me responde, com um sorriso. — Este trem tem como destino a estação Roma.
Pelo jeito de falar, percebo que este senhor também deve ser maquinista. Esse é o texto padrão de todo início de viagem. Mas ele pode estar apenas nos remedando, fazendo galhofa do nosso trabalho.
— Não foi isso o que eu quis dizer… — respondo, com seriedade nos olhos. Não é hora pra ficar brincando, estamos todos cansados e queremos, todos, chegar logo em casa. — Qual será a próxima parada?
— Ah, meu filho! Isso, só Deus sabe!... — ele dá uma boa risada. — Bem, eu me chamo Virgílio, e você deve ser o… Noesis, é isso? — ele aponta para o meu uniforme, onde, sobre o bolso que fica no peito, há uma tarja bordada.
“Noesis”.
— Si… sim. Maquinista Noesis. — eu respondo, amaldiçoando pela enésima vez o meu bisavô, que teve o mau gosto de presentear o meu avô com um nome tão ridículo, e à minha mãe, que teve a infeliz ideia de homenagear o pai estragando a vida do filho. Noesis Neto. Eu podia ser conhecido simplesmente como Neto – era assim em todos os lugares fora da ferrovia, mas, na Companhia, já havia um funcionário com o nome-de-guerra “Neto”. Era o Supervisor Neto, o meu Supervisor. Todo funcionário, ao entrar na ferrovia, recebe um nome de guerra; um nome que tem que ser único, pelo qual ele será conhecido. “K. Schmidt”, “Salvattore”, “H. Meyer”, etc. E, quando alguém tem um nome incomum, fica sendo esse mesmo. “Noesis” é um nome incomum. Bem incomum. Sempre que alguém me vê na rua ou me chama em algum lugar, eu já sei: se me chamarem de “Neto”, deve ser amigo ou parente. Se me chamarem de “Noesis”... ah, aí eu tenho certeza de que esta pessoa me conhece da Companhia de trem.
Não que eu tenha amigos ou parentes, é claro.
O homem idoso continua me olhando e sorrindo. Seu terno cor de cerâmica combina bem com seu rosto, rosado e de bochechas vermelhas. Não é um rosto muito familiar, mas seu sorriso me lembra alguém. Nem todos os sorrisos são iguais, e eu, que quase não vejo sorrisos vindos em minha direção, acho que acabei decorando cada um deles. O dono desse sorriso ainda espera que eu lhe diga alguma coisa, mas não estou muito disposto a conversar. Agradeço educadamente – por nada, já que o velho não me deu nenhuma informação relevante – e escolho outro lugar para me sentar.
“Tatá-tatá… Tatá-tatá…”
Meu corpo é sacolejado em uma curva; o barulho estridente dos trilhos me dá um calafrio na espinha. Instinto. Eu não me importo com o tempo da viagem, afinal, já não estou em horário de serviço e a Companhia considera este tempo de locomoção como “descanso”. Cada solavanco do vagão e cada ruído dos trilhos, entretanto, me lembram de algo que eu queria esquecer: o trem nunca para. Ou melhor, eu é que nunca paro de estar dentro de um trem.
No fundo do vagão, uma criança pequena começa a chorar. Primeiro um gemido contido, que logo se transforma em um choro agudo, insistente, que ecoa como um apito de emergência. A mãe, sentada ao lado, parece alheia, tentando distraí-lo com um brinquedinho barato. É uma arminha de plástico cinza-claro, que só faz um barulho irritante – clic-clic-clic. O som parece atravessar todo o vagão. Eu quase posso vê-lo martelar os crânios das pessoas, zunindo e incomodando. Ainda não decidi qual som é pior: o choro daquele pivete chato ou o brinquedo comprado em um ambulante. Acho que, de todos, o pior som ainda é o da fricção dos freios nas rodas. O cheiro de lona queimada infestando o ambiente como um inseticida.
“Era isso que faltava…” Cruzo os braços, afundo no banco e olho para o teto do vagão. Cada canto desse espaço tem algum tipo de marca de decadência: manchas de sujeira nos assentos, a pintura descascada nos cantos, o vidro da janela com leves arranhões de antigas tentativas de vandalismo. “Sempre o mesmo, sempre igual. E sempre essas pessoas.” Não, não é da criança que eu sinto raiva, mas da repetição da cena.
— Mais uma gota no oceano de incômodos que é estar vivo. — sussurro, para mim mesmo. Não sei de onde eu tirei essa frase.
O homem no banco à frente se vira, lançando-me um olhar de julgamento. Não o encaro. Não vale o esforço. Tento me concentrar em outra coisa e olho para o painel de controle ao lado, através da porta de acrílico, com os botões brilhando em um tom de verde desbotado. Conheço cada detalhe daquilo, já abri e fechei painéis como aquele milhares de vezes. Em algum momento, todos os botões começam a parecer o mesmo — não verdes, não vermelhos, apenas apagados, sem significado. Assim como eu.
Enquanto olho para o painel, o choro da criança finalmente diminui. Há alguns minutos de paz. Fecho os olhos, seguro o queixo com uma das mãos e respiro fundo. Esse trem nunca rejeita ninguém. Mas deveria.
O riscar faiscante da roda no trilho. O agudo irritante do freio de lona. O ronco pesado de um garotão bêbado. O choro de uma criança. O clic-clic de um brinquedo de plástico. O funk-batidão de um celular vagabundo. O balançar de uma lata rolando pra lá e pra cá no chão do corredor. São sons demais para um descanso
Tatá-tatá… Tatá-tatá…
Os trilhos me embalam como uma canção de ninar. Agora eu sei que vou dormir e só vou acordar quando chegar na estação terminal, a estação Roma. A Giulietta vai me acordar e me dar uma bronca – “Você cochilou no trem de novo, Noesis?” – mas vai me dar o cafezinho que eu tanto preciso.