— Vamos, sente-se aqui. Não há de ser nada. Venha, você tem um corte e está sangrando. Vamos limpar isso. Depois você respira, e se acalma.
Ele me coloca sentado ao seu lado. Tira um lenço do bolso do paletó e enxuga um fio de sangue que desce pela minha testa. O velhote é elegante e anda na estica: um terno cor de cerâmica, vistoso, que contrasta com o vermelho das suas bochechas. Um italianão sorridente e blasè. Eu aproveito pra chegar bem perto dele e digo, baixinho:
— Meu senhor…
— Virgílio — ele me corrige, com um sorriso.
— Sim, sim, Virgílio… O senhor tem um celular aí?
— Não uso essas coisas, meu filho! — ele me responde, ainda com o sorriso no rosto rosado.
“Meu Deus, o que está acontecendo? Ninguém tem celular nessa viagem?”
— Virgílio, escuta aqui — eu digo, olhando bem nos seus olhos — Eu acho que estamos todos em perigo. Esse trem pode estar sendo sequestrado.
— Hummm… e por que você acha isso, meu jovem? — uma ruga, subitamente, vem franzir sua testa.
— Não olhe agora, mas… temos um rapaz no fundo desse vagão, de barba e touca. Não sei não. Ele me parece muito estranho.
— E por ser estranho, você já deduz que ele esteja querendo sequestrar o trem? Sei… — Virgílio vem me colocar no meu devido lugar. De repente, parece mesmo que eu sou um grandessíssimo idiota.
— Bem, não é assim… Tem também o palhaço no outro canto — eu quase sussurro. — Ele está com o rosto pintado para que não possamos reconhecê-lo.
— Sim, claro. Mas, filho, deixa eu te dizer uma coisa… todos os palhaços fazem isso, não acha?
— Não! Virgílio, preste atenção! A gente precisa parar esse trem! Não percebe que o trem não está fazendo paradas? Não percebe que todos aqui são muito estranhos?
Paro pra pensar. Novamente, o pânico me toma, mas não posso sequer demonstrar. “Todos nesse trem são estranhos… inclusive um senhor elegante de terno cor de cerâmica!”. Ele me olha com aquele sorriso no canto dos lábios. Ainda está com o lenço sujo do meu sangue. Ele não tem o menor estereótipo de quem alguma vez na vida precisou pegar um trem: é estiloso, elegante, um lorde. Dá pra ver que sua roupa é fina e caríssima. Não que eu entenda de moda, é claro.
A questão é: se este trem está sofrendo um ataque, este senhor pode muito bem ser parte da quadrilha. Eu acabo de dar com a língua nos dentes?
Tudo isso passa pela minha mente em uma fração de segundo, tempo suficiente para que ele, percebendo meu desespero, me responda, sorrindo:
— Acredite em mim, meu filho: aquele palhaço está muito ocupado para pensar em sequestrar um trem.
Olha de soslaio. Pirulito já está em altos amassos com a jovem mulher, um braço passando por cima dos ombros dela, enquanto a outra mão se esconde no meio das coxas bem torneadas. A moça ajeitou o bebê em um embrulho e o colocou no banco da frente. De onde eu estou, não consigo ver direito, mas percebo que a mão da jovem desce na direção do abdômen do palhaço, e sei muito bem onde deve estar repousando. Um pensamento passa pela minha cabeça antes que eu possa bloquear:
— Imundos!...
— Ora, deixe que eles aproveitem. Não fique se incomodando com tudo. Encoste a cabeça em algum banco, deite-se. Repouse… eu posso te acordar quando sua parada chegar, que tal?
Não confio nesse senhor. É melhor não lhe dizer onde tenho que descer. Há algo no seu linguajar que me remete aos maquinistas antigões, como Caronte. Sua voz, entretanto, é estranhamente reconfortante quando ele diz:
— Você está nervoso. Está cansado. Você está saindo agora de uma longa jornada… Me diga: você é maquinista há muito tempo?
— Há uns… trinta anos, eu acho — me sinto um pouco confuso, mas acho que posso conversar com este senhor. Quem sabe, eu não descubra algo sobre o rapto do trem? Ou, pelo menos, ele vá com a minha cara e me permita descer na próxima estação, e me salvar?
— É realmente fascinante, não é mesmo? Dominar uma máquina dessas deve ser para poucos.
— Na verdade, há um treinamento, e qualquer imbecil consegue fazer o que eu faço depois de aprender os procedimentos.
— Não diga isso, rapaz! — Virgílio me dá um tapinha com as costas das mãos, de maneira até um pouco afetada. — Sua profissão é muito importante. Você é o responsável pela vida de milhares de pessoas, todos os dias!
— Como eu disse, apenas algumas semanas de treinamento e até um chimpanzé pode operar essa geringonça.
— Oh, eu gostaria! Gostaria muito mesmo de… como vocês dizem? “Dirigir” um trem? “Pilotar”?
— O senhor pode usar o termo “comandar” um trem. Na verdade, não somos nós, maquinistas, quem decidimos o caminho. Nós não “dirigimos” de fato. Quem faz isso é o pessoal do C.C.O.
— Que interessante!... Mas o que é C.C.O.?
— Centro de Controle Operacional. É lá que os reguladores de linha decidem quais travessões vão para um lado ou para o outro. Então, quando a gente passa por um travessão, eles podem nos dar dois caminhos: a reta, quando a gente permanece no mesmo par de trilhos, ou a travessia, quando a gente muda de trilho. É claro, cada trilho vai pra um lado diferente, então, na prática, é o C.C.O. quem nos “dirige”.
— Mas… não entendo… se são eles quem controlam o destino de um trem… o que vocês fazem dentro da cabine?
É uma pergunta bastante perspicaz. Virgílio consegue deduzir as coisas muito mais rapidamente do que qualquer outra pessoa.
— Nós aceleramos e freamos, abrimos e fechamos portas, cuidamos dos botões, de chaves… monitoramos as câmeras e prestamos atenção no que acontece aqui, nos vagões.
— Aah, isso também é importante. Acelerar demais pode fazer os tais reguladores de linha perderem o controle, não é mesmo? Você pode acabar chegando muito próximo do trem à frente, pode até colidir…
— Bem, na verdade, não. Não podemos. Há um sistema de segurança que freia o trem e diminui a sua velocidade, sempre que necessário, não importando o que a gente faça.
Coloco a mão no ombro de Virgílio. Posso sentir a qualidade do tecido das suas vestes. Sorrio e digo:
— Fique tranquilo, meu chapa. É muito difícil bater um trem.
— Compreendo… Bem, me desculpe dizer, Noesis… mas, se eu entendi bem… você não tem controle nenhum sobre os trens que você supostamente… “comanda”, não é mesmo? Essa é uma bela lição de vida! — Virgílio me responde com uma sonora gargalhada, que faz até mesmo os outros passageiros pararem para observar. Ele não me é estranho, e certamente conhece sobre trens para saber essas coisas, em vez de estar me fazendo essas perguntas.
Mas, então, percebo que ele não está falando exatamente sobre trens.
Meu sorriso se dilui numa expressão de incompreensão – o que é curioso, porque eu acho que, pela primeira vez na noite, eu consigo compreender algo além da minha visão. Eu olho para os rostos de todos os passageiros desse vagão, incluindo o barbudo de touca e jaqueta cáqui, incluindo a moçoila com o pirulito duro do palhaço nas mãos, incluindo o sorriso leve e bonachão de Virgílio. Olho por trás dele e vejo, na janela, o reflexo de um borrão. Apenas não consigo ver o meu próprio rosto.
— Não, Virgílio — eu respondo, enfim. — Nós não temos muito controle sobre o trem. É como as nossas vidas.