— O senhor está bem? — uma voz me pergunta, ao ver que, finalmente, estou retomando a consciência.
É ele. O moleque arruaceiro que ajudou a me espancar aquele dia. Cabelos encrespados, rosto de criança, um certo medo estampado nos olhos. Mas eu sei muito bem do que ele é capaz. Me encolho no canto do banco da plataforma, encostando na janela:
— Se afaste de mim, moleque. — eu respondo, retomando a jaqueta de couro e segurando-a com força. Parece que já fiz isso há pouco. Não sei de quem é aquela jaqueta, mas lembro que estava comigo, desde que saí do trem.
— Calma, tio, eu só quero saber se o senhor está bem. Ninguém quer te fazer mal.
Será que é a mesma pessoa? Ele ainda tem a mesma aparência, embora, na minha memória, a briga tenha ocorrido há muito tempo… Seria ele um irmão mais novo daquele delinquente?
— Fica longe… — insisto, ainda acuado. Me ajeito no banco e o encaro: sim, é ele mesmo, é o bandidinho que me espancou aquele dia. Agora ele está sozinho. Que ótima oportunidade de vingança!
— Tudo bem, então… — ele diz, por fim.
Tento controlar a minha raiva, mas não consigo. Olho para o céu escuro e para as luzes amareladas da plataforma, e, só então, percebo que, com as portas fechadas, o trem parece estar inoperante. Não há claridade vindo das janelas. Como será que estão as pessoas lá dentro?
O garoto loiro ainda está do meu lado; me olha de vez em quando, talvez para ter certeza de que eu estou bem, mas não tenta mais puxar papo comigo.
Fecho os punhos. Ainda não sei bem o que estou fazendo; o ódio começa a ferver em todas as veias do meu corpo. Ainda sinto a dor dos chutes no estômago, dos pisões no peito e dos pontapés no rosto. Passo a mão na testa; vejo sangue escorrer.
— Hey, não me olhe desse jeito não, tio. Não fui eu quem fez isso com você. Quando você caiu no chão, já estava com esse corte.
Tudo está acontecendo de uma forma que me lembra algo, como um déjà vu. Olho para aquela jaqueta no meu colo – ela tem um escudo costurado sobre o peito com a marca: “Stronger”. Isso me dá coragem pra encarar aquele moleque e dizer:
— Você não se lembra de mim, pirralho? Não lembra do que você e seus amiguinhos fizeram comigo?
O garoto me olha de maneira atenta. Há medo em seus olhos; ele, certamente, está me reconhecendo. Nega com a cabeça e engole em seco. Eu continuo:
— Você e seus dois amigos me prepararam uma emboscada outro dia. Me bateram com um taco e me deixaram desacordado. Vai dizer que não se lembra disso?
— Nã-não! Eu juro! Eu nunca vi o senhor na minha vida!
— Qual o seu nome, moleque?
— Ciz… Ci-Cícero, senhor.
O garoto loiro faz menção de se levantar, mas eu coloco a mão na sua perna e o obrigo a permanecer sentado:
— Calma lá, garoto, não vá tão rápido. — digo, ainda encarando seu rosto pálido. Viro-me de frente para ele e pergunto, tentando manter a calma.
— Onde você mora, garoto?
— Moro com a minha tia, perto da estação Roma. Eu só estou querendo ir pra casa agora.
— E cadê seus outros amigos? Aquele folgadinho encrenqueiro e o ruivinho do taco de baseball?
— O senhor deve estar falando do Hex e do Prax, não é? Do Heitor e do Prático…
Hex. Heitor. Sim, era esse o nome.
— Isso mesmo, onde eles estão?
— Não sei, não senhor… era pra eles estarem aqui comigo, mas acho que os perdi em algum vagão…
— E o que vocês estão fazendo pulando de um trem pro outro?
— Ah, não sei, não senhor!... Eles vão, eu vou atrás. Eles estão sempre querendo se livrar de mim, e acho que, dessa vez, conseguiram. Fiquei sozinho. Mas, olha, eu nunca faço nada, não, são sempre eles que arrumam confusão. Eu só ando com eles pra não ter que voltar pra casa sozinho.
Sempre as mesmas desculpinhas. Sempre o mesmo “não fui eu”, “eu não sabia”, “eu só faço porque me obrigam”. Sempre o medo e a covardia de assumir os erros, sempre o cagaço de pular fora quando a situação aperta.
— Mas vocês sabem o que fizeram, não é? Você se lembra do que fez comigo.
— Não, senhor, eu juro! Nós nos metemos em brigas com o pessoal de outras comunidades, nos metemos em encrencas e quebra-quebra, mas nunca atacamos nenhum adulto desconhecido assim, não… Por favor, acredite em mim, o senhor deve estar me confundindo com alguém. Deve ter sido o Hex…
Ele tem um medo real nos olhos, apesar de não me encarar diretamente. Deve estar se sentindo desamparado por não ter a proteção dos dois comparsas. Assim, sozinho, ele não parece nada intimidador; é mais uma criança sem rumo.
— Agora que não pode se esconder atrás dos outros, fica difícil manter a arrogância e a coragem, não é? Foi você, sim. Eu não esqueceria desse cabelo de palha.
— Não estou me escondendo… — ele diz, olhos marejados de medo, olhando para o chão.
— Claro que está. Você sempre esteve. Como um cachorrinho atrás do dono. Sempre esperando que alguém falasse por você, tomasse a frente, dissesse o que fazer.
Cícero aperta as mãos entre os joelhos, inquieto. O silêncio pesa entre nós dois. Agora, ele sabe que eu me lembro dele e não pode mais negar. Ele engole mais uma vez a saliva, como se engolisse o choro. Não olha pra mim; mantém os olhos fixos em algum lugar do chão enquanto aperta os joelhos em um movimento quase espasmódico. Olhando-o assim, não consigo entender o que esse garoto, essa criança, fazia naquele bando. Será que era só reconhecimento? Só segurança? O que passava na cabeça desse fedelho para andar com aqueles marginais?
— Por que você não mora com os seus pais?
— Meu pai morreu quando eu era menino. Minha mãe… ela me pôs pra fora de casa quando comecei a andar com o Prax. Olha, se o senhor quiser, eu embarco em outro vagão diferente do senhor… só me deixe chegar até a estação Roma, por favor!...
— Seu pai morreu e é assim que você honra a memória dele? Agredindo os mais velhos? Depredando patrimônio público? O que você tem na cabeça, moleque? Merda? — eu me exalto.
— É… tem razão… — diz o garoto, para minha surpresa.
Cruzo os braços, irritado; dou uma risada nervosa de incredulidade. Esse garoto tem noção do que está dizendo?
— Tem razão? Tem razão? Você acha que basta dizer “tem razão” e fica tudo bem? Acha que isso apaga o que vocês fizeram? Moleque, vocês-me-espancaram! — digo, encostando o dedo no seu rosto espinhento a cada nova palavra.
— Eu só... eu só queria seguir viagem.
A resposta me desconcerta por um instante. Não há desafio na voz dele, nem arrogância. Só cansaço. Mas ainda estou nervoso, e continuo:
— Ah, claro. Seguir viagem, como se nada tivesse acontecido… — solto um riso seco. — Você não quer confusão, não é? Mas no dia que me deixaram jogado no chão, rindo da minha cara, você não pensou duas vezes antes de seguir junto com eles.
— Eu nunca bati em você. — Dessa vez, o tremor na voz dele é quase palpável, como se escorresse pelos lábios como uma baba. De medo ou de culpa? Eu não sei. Mas alguma coisa começa a se formar dentro de mim, algo que me impede de explodir ainda mais.
— E isso muda alguma coisa? Você ficou ali, olhando. Isso te faz melhor do que eles?
Eu o encaro bem de perto. Ele não olha para mim. Parece estar escolhendo as palavras para não me ofender. Mas eu sei que ele está quase explodindo por dentro, e, juro, se ele se atrever a me desafiar, será a desculpa perfeita para arrebentar cada dente podre daquela boca. Provoco mais um pouco:
— Você nem quis bater. Nem teve coragem pra isso. Só ficou olhando. Então me diga: por quê?
A pergunta faz Cícero levantar a cabeça. Seus olhos, antes vacilantes, agora parecem perturbados. Depois de um silêncio tenso, ele responde:
— Porque eu sabia que já tinha passado por isso antes.
Não era a resposta que eu esperava. Testa franzida, sorrio e pergunto:
— O que quer dizer?
— Quando era criança, sempre ficava por último. Sempre sobrava nas brincadeiras, ninguém queria me escolher. Achavam que eu não servia pra nada. Quando meu pai foi embora… quando ele desapareceu da minha vida, ficou ainda pior. Não sobrava ninguém. Só as sombras.
Sinto algo dentro de mim mudar. Sinto meu estômago se contrair. Aquele fedelho dizia algo que eu sentia quando perdi meu pai. Eu, mais do que ninguém, sentia o que era ter esse peso nas costas. Minha voz sai menos dura dessa vez:
— Você não gosta do que eles fazem, gosta?
Ele não responde. Apenas aperta os punhos como se quisesse encolher ainda mais no banco. Seus dedos tremem levemente, mas ele apenas balança a cabeça em um “não” fraco. Eu sei: ele não quer estar aqui. Não quer esta conversa. Como eu não queria estar lá, no meu passado, quando era um moleque pequeno demais para me defender. Pela primeira vez, ele me olha nos olhos, como se estivesse esperando alguma reação. Como se estivesse esperando... compreensão, talvez?
— Eu só não queria ficar sozinho. — ele conclui.
Silêncio. Eu seguro o ar por um instante, sentindo o peso do que ele acabou de dizer. “Não queria ficar sozinho”. Minha garganta trava; há muito tempo eu já disse essa mesma frase para mim mesmo, tentando justificar coisas que eu fiz ou deixei de fazer. Talvez seja isso o que dói mais. Esse garoto não é apenas um agressor. Ele é alguém que, em algum momento, também sobrou na vida.
Coloco as mãos na cabeça e solto o ar dos pulmões, numa bufada longa. O frio aperta. Coloco, enfim, aquela jaqueta de couro marrom. Levanto-me e vou andando, rumo à beirada da plataforma. Ao chegar na linha amarela, o pivete me diz, um pouco mais alto:
— Ei, seu moço…
Me viro para ele, ainda com o olhar severo.
— Sinto muito. Me desculpa?
A quinze minutos atrás, eu teria esbofeteado aquele rosto até estourar cada espinha. Agora, entretanto, minha única resposta é:
— Quem sabe um dia, se você realmente se tornar outra pessoa.
Nesse instante, ouço novamente aquele ruído familiar:
“Pi-pi-pi-pi-pi!”
Olho para as portas do trem, que, agora, estão se abrindo novamente. O trem está me esperando. Dentro do vagão, alguns gatos-pingados estão cochilando. limpo minhas mãos sujas de sangue no meu uniforme e percebo que, agora, o sangue seco dá à minha roupa uma coloração amadeirada, misturando-se ao marrom da jaqueta de couro. O que aconteceu, afinal?
Dou uma última olhada para a plataforma, e, sem muita surpresa, percebo que o garoto não está mais ali. Talvez ele ainda estivesse procurando os amigos que o protegeriam, em algum vagão. Talvez ele já não precisasse disso. Assim pensando, entro novamente no trem, com novas dúvidas e novas teorias.