Acordo sentado em um banco. Tenho uma jaqueta de couro escuro sobre os meus ombros. Me assusto, tiro rapidamente aquilo que está sobre mim. De quem é essa jaqueta?
O Pirulito está ao meu lado, com olhar preocupado:
— Nós o cobrimos com essa jaqueta, porque o senhor estava tremendo muito, como se estivesse congelando… Parecia até um pouco febril. Se sente melhor?
— Fique longe de mim… — eu digo, acuado no canto do banco.
— Desculpa, cara, só estava querendo ajudar…
— Se afaste de mim, seu tarado! — eu respondo, rosnando como um cão amedrontado.
— Ele só está tentando ajudar, homem! — me responde outra voz, no banco da frente — Você caiu ali no chão depois de ter tentado quebrar o trem todo, e a gente só colocou você sentado nesse banco. Você já tinha gritado que estava passando mal e já tinha reclamado que ninguém te ajudou, e agora que o menino se prontificou a isso, vai brigar com ele?
— Esse cara deve ser doido. E ainda é funcionário da empresa — outra mulher diz, olhando para mim com nojo.
— Eles sempre querem arranjar confusão com todo mundo, sempre ficam com olhares indiscretos para as moças. Deviam ter deixado ele tremer até morrer. — diz outra mulher.
Em pouco tempo, os burburinhos se acalmam e o silêncio volta a reinar.
Sinto o suor escorrer pelo meu rosto. Passo a manga do uniforme para enxugá-lo, mas me assusto: a manga volta vermelha. É sangue.
— Você já estava sangrando quando caiu — diz Pirulito, percebendo o olhar de incompreensão que lhe dirijo. — Nós não fizemos mal a você.
— É verdade, você se machucou da primeira vez que se jogou no chão fingindo um ataque cardíaco — complementa o homem à nossa frente, um senhor forte, careca de bigode. Ele parece me olhar como se estivesse prevendo que eu procuro confusão. E ele estará disposto a me fazer encontrar.
Mas meu olhar de incompreensão não é pelo sangue, nem pela pornografia explícita que presenciei há pouco, nem mesmo pela ideia de que ele estivesse sequestrando o trem; o problema é que Pirulito tem exatamente o mesmo rosto do meu pai, quando morreu. Aperto com força o couro marrom da jaqueta, que está nas minhas mãos. É uma peça de roupa bastante envelhecida, que parece ter marcas de pequenos furos feitos com fogo nas mangas. Seu couro é pouco macio e quebradiço, mas parece ter sido bonita um dia. Hoje, o couro é judiado e cheio de buracos queimados.
— Pai… Oh, meu Deus! Pai?!
— Eh, calma aí, velhinho… Qualé? Eu tenho idade pra ser seu filho, não seu pai! — ele me responde, e, dessa vez, é ele quem está arredio.
— Desculpa… Você parece muito com o meu pai.
— Acho que você está delirando, velhinho… — ele diz, sorridente, movendo os ombros e fazendo aquele colarinho enorme subir e descer sobre a sua boca. Depois, percebe que eu não estou rindo, que a situação não é para rir. Ele sabe, sabe que eu desconfio dele. Seu sorriso começa a murchar. Eu invisto:
— E então, Pirulito? Qual é o plano? Sequestrar o trem e pedir resgate? Sumir com todos nós? Não tente mentir, eu já entendi qual é a sua.
— O plano? Sumir com o trem, é claro! — ele solta uma gargalhada, antes de falar, zombeteiramente, com voz anasalada de palhaço — Eu sou um palhaço mágico!
Estreito os olhos e o encaro. Meu pai. Meu próprio pai.
— Você acha que é engraçado, não é? Ficar brincando com todo mundo, como se fosse só mais uma noite qualquer.
— E não é isso que os palhaços fazem? Brincar? — ele ainda insiste em fazer galhofa, mas já percebeu que não está agradando. Talvez seja apenas condicionamento de palhaço: tirar sarro e fazer piada de tudo, não levar nada a sério.
Pirulito dá um longo suspiro, e, com um lenço, enxuga a testa já suada:
— Mas, fique calmo, meu amigo. Agora que tirei a maquiagem, eu não sou nem o Pirulito, nem o seu pai, nem ninguém em especial. Eu sou apenas o Iago. Muito prazer! — Ele me estende a mão para um cumprimento, mas me recuso a tocá-la. Sei bem onde essa mão andou passeando. Minhas mãos permanecem enroladas no couro da jaqueta.
Iago não é o nome do meu pai. Esse nome, Iago, não diz nada para mim. Pra dizer a verdade, eu até prefiro “Pirulito”.
Eu ainda estou procurando o que dizer, mas ele é mais rápido. Recolhe a mão e me pergunta, ainda com aquele irritante tom zombeteiro:
— Então era por isso que você estava me encarando agora há pouco? Você achava que eu estava… sequestrando o trem? Há, há, há, há!
Ele se levanta e começa a falar um pouco mais alto, como se estivesse em um show de circo:
— Heeeey, vocêêê! Estou sequestrando o trem, vou querer duas graviolas para resgate! Há, há, há! — ele sai pulando desastradamente, balançando os braços e levantando os ombros. — Sou o Palhaço Pirulito! Roubo o trem por causa do apito! Piuííí!...
As pessoas estão com aparência cansada, mas, ainda assim, sorriem e se divertem com o palhaço. Ele já não tem a pintura, mas tem carisma. É capaz de todos esses idiotas que estão no trem serem ludibriados e roubados com toda a satisfação do mundo. Não é assim com os políticos?
Mas ele se senta, novamente, ao meu lado, após mais umas brincadeiras, agradecendo as palmas.
— Aaaah, mas, então… Além de paquerar as moças no trem, ser palhaço de profissão e sequestrar trens nas horas vagas, eu ainda sou o sósia do seu pai, não é? Não acha que você está me atribuindo funções demais, não? Acho que vou pedir um aumento de salário pra dar conta de tudo isso…
— Ah, sei lá. Você é parecido demais com ele. Mas não me importo. Deixa pra lá, se quiser assaltar o trem, se quiser trepar com todas as mulheres desse vagão… Vá em frente. Estou cheio.
— Eu não conheci o meu pai. Será que o seu pai não pulou a cerca? — ele me diz, antes de perceber a gafe. — com todo o respeito, tá… Mas talvez seja daí que eu puxei esse meu talento pra namorar as garotas…
Insensível. Desprezível. Ele é tudo o que meu pai jamais poderia ser. Me lembro dele sentado junto ao alpendre de telhado de tranças de junco, enrolando o seu cigarrinho de palha, me contando histórias, me fazendo trenzinhos de latinhas. Acho que é por isso que, já adulto, decidi fazer um alpendre igual na minha casa; eu havia imaginado usar o local para plantar ervas medicinais, mas nunca o usei de fato para isso. O alpendre da minha casa era mais uma lembrança dos meus momentos de infância.