Acordo novamente sobressaltado. Olho em volta. Não estou na minha cama, não estou em casa – estou em um lugar muito mais familiar. Pensei que estivesse sonhando com aquilo, mas não: estou mesmo nesse maldito trem.
Pelo menos, não sou eu quem o está comandando. Estou no vagão, como um passageiro, apesar do uniforme bege me denunciar para todo mundo. Busco no bolso da frente o bloquinho de maquinista e o leio com atenção, procurando ver a escala de hoje. “Quem estará no comando desse trem?”
“Caronte”.
Sei quem é. Um senhorzinho italiano, que já está prestes a se aposentar. Gente boa. Já tirou bastante dinheiro da Companhia, com todos os processos que abriu e ganhou. Hoje, dizem, tem uma chacarazinha no interior da Toscana, e é pra lá que ele vai, assim que sair a aposentadoria. Caronte já podia estar em casa, cuidando dos netos e do pomar, mas não quer deixar que a Companhia fique com nenhum centavo seu. E ele está certo.
Caronte não dá os avisos, não faz os tempos de paradas corretamente, não está nem aí se alguém ficou de fora do trem ou se aquele cadeirante precisava de mais tempo para se acomodar dentro do vagão; Caronte não quer saber de nada. Caronte não se importa com suas responsabilidades. Caronte já ligou o “foda-se” faz tempo. Caronte consegue ser mais insensível que eu. E não o culpo; se eu estivesse a poucos meses da aposentadoria e a Lei me protegesse de ser mandado embora, eu juro, eu ia passar a viagem toda xingando e insultando os passageiros pelos alto-falantes. Caronte é meu ídolo.
E, talvez, Caronte tenha passado direto por uma ou duas estações, sem abrir portas nem parar o trem. Não é incomum, principalmente à noite. Isso dá um B.O. danado, mas… o que podem fazer com ele? O máximo que deve estar acontecendo é alguém, no rádio do C.C.O., gritando desesperadamente e xingando de todos os nomes, enquanto Caronte dorme placidamente sobre a mesa de controle do trem.
Não, não… Se isso estivesse acontecendo, o trem não estaria nessa velocidade. Muito provavelmente, o trem já estaria parado. Há um mecanismo de segurança chamado “homem morto”: em alguns trens, é uma alavanca que você tem que girar, mas, no nosso trem, é um pedal que você precisa pisar. Se você tirar o pé por cinco segundos, ele apita. Se você não pisar, ele para o trem em emergência. Se você estiver com o pé sobre ele, precisa tirar o pé e pisar de novo, de vez em quando; se não fizer, ele apita. Você anda o dia inteiro assim, pisando e despisando. O trem é algo muito bem-feito, muito difícil de ser burlado. Se um maquinista morrer de repente, a viagem não prossegue sem ele, como se fosse um trem-fantasma. Isso é só nos filmes.
Sempre que algum maquinista mais antigão, como Caronte, cochila no comando de um trem, o pedal do “homem morto” dispara seu alarme e o acorda. Mas tem gente que já está tão acostumada que, mesmo dormindo, pisa de novo no pedal. Mais cinco minutos de soneca.
Caronte… Outro nome esquisito — pelo menos, para os nossos padrões alemães. Mesmo com diversos italianos trabalhando nessa linha, que vai da Alemanha à Itália, só há ele em toda a ferrovia com esse nome. Não foi nem necessário colocar uma inicial para distingui-lo, como “J. Hoffmann” – o Jota Hoffmann, o Jurgen, é chamado assim para diferenciá-lo do Dê Hoffmann, o Dieter Hoffmann, que já não está mais entre nós, mas era Supervisor de linhas quando o Jurgen entrou para a Companhia. Nomes, sobrenomes. Abreviações. Nossa vida gira em torno disso. Meu futuro é ser como Caronte: um sujeito que não liga mais, que não dá a mínima para o seu serviço, que está pouco se lixando para os comentários e a reputação da empresa e que só quer se aposentar logo e ir para o meio do mato. Caronte é meu ídolo – é mais que isso: espero que seja meu futuro. Um dia, se tudo der certo, serei como ele.
Dessa vez, no entanto, Caronte deve ter feito seu papel decentemente: olho para trás e vejo que o moleque bêbado, que roncava, já não está mais lá. Nem a tal moça das roupas de pobre, a quem eu havia importunado com o meu sorriso. Houve uma parada, ambos desceram, eu é que não estava acordado para perceber. Noto também que há novas pessoas dentro desse vagão. A noite segue soturna e sombria lá fora, passando pela minha janela embaçada a quase 90km por hora. Há um passageiro vestido de palhaço. Ele está com cara de cansado, tristonho, mas ainda é capaz de fazer algumas gracinhas para a criança, que agora, entretida, parou de choramingar como uma doente. Consigo ouvir a conversa entre ele e a jovem mãe:
— Qual é o seu nome, criança? Conta aqui pro Pirulito!... — ele diz, fazendo caretas, mas com a voz baixa e cansada. A criança não sabe falar, é claro, mas sorri e bate palmas, enquanto a mãe, olhando orgulhosa para a cria em seu colo, diz entre sorrisos:
— Fala pra ele, Robert! Fala o seu nome pro palhaço!...
— Oooooh, Robert! “Ro-bert” “Ro-bert”, que nome bonito você tem, Robert!... e que mamãezinha bonita também, né, Robert! — diz o palhaço, fazendo macaquices, os olhos focados nos grandes peitos da moça. Ela fica envergonhada, mas sorri.
— É, é o nome do vovô, que morreu na serraria, né, Robert? Homenagem a ele…
“Isso, dona. Dá bola pro Pirulito, mas não deixe que esse moleque volte a chorar”, eu penso.
O palhaço a olha com um pouco de desprezo e repreensão: não se fala de mortos na frente das crianças. Mas logo desce os olhos aos fartos seios da moça, mal cobertos pela blusa de cor-de-cerejeira. E, pelo visto, decide que vale a pena o esforço de ser gentil com o bebê:
— Robert, você já viu o palhaço fazer maluquices? Já viu o palhaço fazer mágica? Já viu o palhaço baixar as calças? O-oh!
— Nunca viu, né, Robert? — A mãe responde pelo menino, enquanto cruza as pernas e ajeita o bebê no colo. — A gente nunca foi num circo, acredita? Eu adoro circo, adoro me divertir!...
“Sim, moça, mas se tudo der certo, hoje você vai para um motel, vai ver o palhaço baixar as suas calças, vai ver o Pirulito… Dorme logo, criança, que mamãe também quer se divertir…”
O Pirulito olha em volta; já não está com cara de cansado. Encosta os lábios nos ouvidos da mulher e, por trás dos cabelos ondulados e negros, sussurra algo que a faz rir – alguma piada ou sacanagem, quem sabe. Ele percebe que eu o encaro, mas apenas sorrio e viro o rosto. A mulher é uma morena clara, de sobrancelhas e lábios grossos, tem umas pernas lindas e os peitões, cheios de leite, parecem querer pular pelo decote. Pirulito vai se divertir hoje à noite.
Hoje à noite. Já é noite. A noite não termina nunca. É estranho…
Eu quero chegar até o palhaço e perguntar em qual estação ele entrou no trem. Assim, saberei mais-ou-menos onde devemos estar. Mas sei que ele não quer que eu chegue perto, como um “empata-foda” sem noção. A mulher já está na dele; deve estar na seca desde que nasceu o rebento, deve estar necessitada, ávida por uma transa das boas. Não sei se ela é casada – pelo jeito, não é, mas também, se for, dane-se o marido corno: o importante é ser feliz com o pirulito do Pirulito.