Era um mundo deteriorado, repleto de carcaças de computadores obsoletos que acendiam e desligavam, feito fogos-fátuos cibernéticos. Nisso se diferenciavam de algumas placas-mães isoladas, corroídas e queimadas, que não emitiam a mais mínima claridade. Mas esse era o mesmo problema que afligia certas telas estilhaçadas, as quais, no entanto, de pedaço em pedaço, em seus fragmentos, refletiam um rosto: o seu, de olheiras fundas, cabelos pretos escorridos e semblante abatido, com uma palidez de papel que denunciava sua dieta ferropriva e as noites insones transcorridas em frente à máquina. Vez ou outra se lembrava de pegar um copo de refrigerante sem gás e um pacote de salgadinhos, onde enfiava a mão devagar, depois de dez minutos com os olhos vidrados no monitor.
Como por um milagre, havia adormecido. Mas acabava de acordar de um sonho bizarro, com uma dor de cabeça de rachar.
Olhou para o celular e ainda eram seis da manhã. Queria dormir mais. Tentou, mas não conseguiu. Tinha muito a fazer. Ficara acordada até as quatro da madrugada trabalhando e julgava ainda não ter terminado tudo o que precisava realizar. Já não se lembrava direito do sonho, mas tinha a impressão que se relacionava à sua rotina de todos os dias.
Havia na Deep Web alguns sites muito diferentes de todos os outros, que pareciam não abrigar nenhum conteúdo criminoso ou sujo. Eram apenas estranhos. Sites onde, sempre que entrava, surgia uma tela de carregamento que jamais se encerrava, aparentemente. Mas bastava aguardar e seguir os passos corretos para, em algum momento, o carregamento se concluir. Assim, como prêmio para o hacker paciente, vinham à tona segredos obscuros de governos e figuras públicas.
Não eram raros os espaços na Internet que, aos olhos dos leigos, pareciam despidos de sentido. Escondiam, contudo, mensagens enigmáticas que precisavam ser decodificadas para se obter acesso a domínios cada vez mais ocultos. Eram como o fio de Ariadne no labirinto da Deep Web, conduzindo no caminho para a Dark Web.
No mito, apesar de ser considerado uma criatura terrível, o Minotauro era executado com relativa facilidade por Teseu, uma vez que o herói, graças à ajuda da princesa de Creta, não tinha mais como se perder e se desorientar nos intrincados corredores onde a aberração atacava de surpresa. No seu caso, o monstro era um candidato a governador que se dizia conservador, mas apenas seu aspecto externo e seu discurso eram humanos. Seu íntimo era bestial, como revelava sua participação em uma orgia sadomasoquista com duas travestis – o que não a surpreendia.
Era uma pena que o rosto do sujeitinho estivesse tão embaçado no melhor vídeo que tinha encontrado! Queria achar algo com uma qualidade melhor para garantir que a missão seria bem-sucedida. Além do dinheiro, era uma questão de satisfação pessoal. Não era boazinha, nem de longe uma boa samaritana: só detestava gente hipócrita.
Tomou uma naratriptana e continuou vasculhando e submergindo em um lago dentro daquele labirinto que escondia corredores submersos. Contudo, não encontrou mais nada de interessante.
Devia ter outros podres, mas o jeito era se contentar e tentar melhorar a nitidez da imagem empregando seus dotes digitais.
Às oito horas, o celular tocou. Na tela, nenhuma surpresa: o nome Escroto apareceu. Bufou e atendeu.
– E aí, conseguiu?
– O rosto tá borrado, mas parece que é ele mesmo.
– Borrado ou não, vai servir. O que importa muitas vezes, menina, é aquilo que as pessoas acham que é, não aquilo que de fato é.
Como a grande maioria, Escroto se contentava com pouco. Mas ela conseguia aturar alguém que, entre uma cantada sebosa e outra, pelo menos levava adiante um ou outro projeto para melhorar a vida das pessoas na prática e não ficava só pregando o que não fazia. Fazia pouco, menos do que deveria. Fazia merda. Mas alguma coisa fazia e não se apresentava como um paladino.
– Espera só um pouco.
Continuou mexendo na imagem. Até que quase pulou da cadeira porque, de tanto mexer, acabou por conseguir deixá-la mais límpida.
Um beijão. Parecia que o sujeito ia comer a boca da travesti, que, se dependesse de Lara, seria uma lâmia de dentes afiados que rasgaria a cara do filho da puta. O desgraçado estava acabado. E ela também tinha acabado, agora era só enviar.
Salvou o arquivo Suruba e o anexou a uma mensagem sem texto. Estava prestes a enviá-lo, porém levou um susto por causa de um grito que veio da janela. Uma sombra despencou.
Levantou-se e olhou para além do vidro. Abriu-o, mas lá embaixo não havia corpo nenhum. Só a lixeira aberta no beco.
– Acabou aí ou não, menina? – A voz no celular insistiu.
Talvez fosse a continuidade, em plena vigília, do sonho que tivera. Já ouvira falar de casos de sonhos que se prolongavam na vida desperta, como alucinações nítidas, quando o sono era de má qualidade e a rotina insana.
Para completar, as pesquisas que fazia não eram de ajuda para seu bem-estar psíquico. Não queria se afastar delas, mas precisaria arcar com as consequências disso.
– Menina, cadê você? Tá tudo bem?
Fechou a janela, voltou à escrivaninha e enviou o arquivo.
– Tá feito.
– Ah, beleza! Isso aí! Essa é a minha garota. Depois a gente poderia…
Desligou o celular. O Escroto voltou a ligar, mas ela não atendeu. Limitou-se a enviar a seguinte mensagem:
"O sinal aqui tá uma merda. Depois me manda o comprovante do Pix."
Já havia lhe dito que lhe daria seu voto. Não tinha mais nada para lhe dar. Até porque ele não faria seu tipo nem se nascesse de novo.
O pior era que não era o único da espécie. O mundo estava cheio de escrotos. E de escrotas também.
Havia tido sua época de odiar os homens. Era adolescente e, da primeira vez que saíra com uma menina, achara o máximo da transgressão. Na escola ficavam cantando para as duas aquela música: a namorada, tem namorada, e sua mãe abandonara todo verniz conservador, seu discurso sobre contenção dos instintos, lançando em seu quarto, enquanto jogava videogame, uma revista G. Não que desgostasse por completo do que vira, mas não estava querendo saber daquilo.
Agora tinha quarenta anos, nem namorada, nem namorado, depois de desilusões com ambos os sexos. Como se não bastasse, um hater anônimo viera lhe perguntar no Instagram se já não tinha idade para parar de fazer cosplays. Respondera mentirosamente que tinha 39. Com certeza o pentelho era um dos seus admiráveis ex-namorados ou algum ex-coleguinha do colégio que não tinha nada melhor para fazer. Aliás, como a maioria dos frequentadores assíduos de redes sociais. Os piores entre eles os incels tarados que ficavam o dia todo com os cinco dedos grudados no pau.
Um comentara que era bonita demais para ficar fazendo cosplay de personagem masculino. Mas o que podia fazer, se desde criança escolhia o Alucard no Castlevania 3?
Voltou ao seu castelo do Drácula: a Deep Web; que podia ser tanto o labirinto do Minotauro – havia quem dissesse que este ficava na Atlântida, que por sua vez seria uma ilha perto de Creta que submergira, vítima de um vulcão – quanto uma fortaleza sombria cheia de vampiros.
Ainda criança, tinha um verdadeiro fascínio por vampiros, pois eram seres que transcendiam a morte. Via a si mesma na Claudia de Entrevista com o Vampiro. Não se conformara e chorara por dias com o fim da menina sugadora de sangue, incinerada pelo sol nascente. Não era justo que um vampiro acabasse daquele jeito. Era injusto que não pudesse crescer. Por esse lado, Peter Pan também tinha um pouco de vampiro, já que trancafiava um bando de crianças em uma ilha onde ninguém morria, a não ser se mortos por um pirata que talvez fosse a própria morte ou a representação da idade adulta, que se julgava livre, porém lhe faltava uma mão. As obrigações e responsabilidades, os impostos e o trabalho rotineiro eram o crocodilo à espreita para devorar, suprimido sob as águas o potencial da mão perdida, transformada em gancho para ceifar o melhor dos resquícios da infância: a criatividade.
Era adulta, mas não queria ser, até porque, quando alguém terminava de crescer, passava a encolher. Envelhecia e depois morria. Era o ciclo natural das coisas, mas que em sua extremidade revelava a verdade que consistia no desespero de não se poder nunca alcançar o máximo desejado: a natureza do vampiro, que para se manter imortal, no entanto, necessitava sempre das vidas alheias. Uma vida isolada de tudo e de todos não valia de nada e não tinha como durar.
Parecia a sua condição no momento. Mas tinha do que sugar.
Frequentava sites que abrigavam centenas de áudios legendados em que estavam registradas as últimas palavras de condenados à morte. Arrepiava-se ao escutar seus arrependimentos, seus delírios, desesperos e suas derradeiras palavras sobre o quanto temiam o Inferno, ou então o nada, o esquecimento, o vazio. Havia um que reunia todas as sentenças de morte da história, incluindo nome, crime, data da sentença, último jantar e últimas palavras. Em alguns casos, havia até vídeos.
Não que se deleitasse com aquilo. Pelo contrário, muitas vezes se sentia ansiosa ou ficava emocionada. Mas eram emoções como aquelas, que não experimentava longe dali, que a faziam sentir viva, com um coração que pulsava, como uma pessoa digna de preservar a própria existência, de seguir adiante.
Sobretudo, o que a fascinava era especular a respeito do que as pessoas pensavam no instante anterior à morte, como refletiam quanto ao fato de que o mundo iria em breve fechar as cortinas e que não sabiam nada sobre o que se descortinaria (se houvesse alguma coisa a ser descortinada).
Era aterrador o confronto com a perspectiva do nada. Havia as experiências à beira da morte, as NDEs. Nem todas revelavam um além reconfortante, e isso as tornava interessantes. Inclusive pessoas não religiosas, algumas cem por cento ateias, as experienciavam e, em diversos casos, a explicação de que fossem alucinações cerebrais não era satisfatória; e muito menos de que fossem drogas ou medicamentos a causá-las, já que o uso das substâncias mais inibia do que facilitava as experiências.
Contudo, não havia provas cabais de algo mais. Eram apenas relatos e, ainda que a consciência humana pudesse existir de forma exterior ao cérebro, o que asseguraria que essa alma fosse capaz de persistir por um longo tempo fora do corpo? Epicuro talvez estivesse certo desde a Antiguidade.
Entre os condenados à morte, havia crentes e descrentes. Os mais fascinantes eram os assassinos seriais, que, de certa maneira, eram vampiros da vida real, pois alimentavam sua psique doentia com a deglutição de vidas alheias.
Deparou-se com o caso de Aileen Wuornos, que ganhara notoriedade como a primeira mulher serial killer dos Estados Unidos, autora de uma série de assassinatos de homens entre 1989 e 1990. Alegava tê-los matado em atos de legítima defesa durante tentativas de estupro ou agressão sexual. Era uma prostituta que atuava nas rodovias da Flórida e insistia ter sido vítima de abusos ao longo de toda sua vida, tendo tirado a vida dos homens em situações de pânico e desespero.
Não era fácil ser prostituta. Por mais que muita gente dissesse por aí: “quem manda dar a bunda para qualquer um?”, não era por acaso que as trabalhadoras do sexo constituíam a maior parte das vítimas dos assassinos seriais. Estavam sempre correndo sérios riscos. Uma puta serial killer até parecia uma retribuição, uma justiça cármica.
Ao contrário de outros condenados, Aileen recusara sua última refeição e, em vez disso, tomara uma xícara de café. Sua última declaração antes do fim fora: “Gostaria apenas de dizer que estou navegando com a rocha e que voltarei, como o Dia da Independência com Jesus, 6 de junho, como no filme Nave-mãe Grande e tudo mais. Eu voltarei, à la Exterminador do Futuro.” Ou exterminadora, no caso. Um filme que seu professor de religião da escola interpretava como uma referência a Jesus Cristo, o menino prometido para salvar a humanidade, porém era cada vez mais difícil acreditar que a humanidade pudesse ser salva, que os mortos pudessem se levantar após o Juízo Final.
Passou para uma outra condenada, que tinha matado a família inteira porque acreditava que fazendo isso livraria o marido e os filhos dos demônios que tomariam conta do mundo. A Terra era um mundo assombrado pelos demônios e ela não se arrependia de nada. Suas palavras derradeiras, as mesmas que tinha dito ao juiz no tribunal, haviam sido: “eu mataria de novo.” E pensar que fora pega graças ao papagaio! A polícia ouvira do bico dele as últimas palavras de suas vítimas esfaqueadas.
Nunca dissera isso a Cassandra por causa do seu querido Fred, mas começava a acreditar, talvez só ela no mundo, que papagaios eram animais lúgubres, de mau agouro. Muito mais do que os urubus, que tinham uma função importantíssima na natureza: livrar o mundo das carcaças. Eram os lixeiros do reino animal, e quem era mais relevante em uma cidade do que os garis? Sem eles, tudo não passaria de uma Cracolândia, infestada de ratos.
Papagaios falavam. Na verdade, macaqueavam a fala humana. Só isso já os tornava criaturas assustadoras. O Zé Carioca, inclusive, só tinha trazido azar e desgraça para o Brasil, reforçando a imagem da malandragem, do jeitinho, que não era exclusividade dos políticos. Era a febre verde-amarela, difundida entre toda a população, transmitida por mosquitos que se escondiam nas asas de papagaios que repetiam obviedades e palavras de ordem vazias.
Talvez por uma tentativa desesperada de escapar do vazio deixando uma espécie de legado, as últimas palavras dos condenados à morte lhe pareciam cada vez mais estimulantes. Não tinham mais razões para falar como papagaios. Não tinham mais nada a perder. Era a sinceridade que sugeria uma profundidade, um abismo, dentro do qual se aninhava, perdida toda a esperança, com seus olhos injetados de sangue, o diabo. E se o diabo existia, Deus tinha que existir também. Se o diabo existia, a responsabilidade pelo mal não era exclusiva do ser humano. Fora longe demais em seu raciocínio? Uma mosca passou zumbindo.
Lembrou-se de uma tal de Bárbara Sanguinária, que nos anos 50, nos EUA, após uma infância difícil e uma série de casamentos fracassados, entrara na prostituição antes de se casar outra vez, com um barman viciado em drogas. Logo o deixara por um colega de negócios dele, que administrava uma cooperativa ilegal de jogos de azar. Sua alma gêmea! Não que acreditasse em almas gêmeas, mas no sentido de afinidade nos valores deturpados: o casal, com alguns cúmplices, assaltara uma viúva sobre a qual havia rumores que guardava uma imensa quantia em seu lar. Bárbara a enganara para que os deixasse entrar em sua residência, pedindo para usar o telefone. E para silenciar os gritos da idosa, golpeara-a com a pistola, resultando em sua morte, crime pelo qual seria condenada.
Havia uma covardia intrínseca em assassinos de crianças e idosos, vítimas em que a defesa era muito mais difícil, criaturas ainda mais frágeis do que moscas, por não serem sequer capazes de voar.
Alex, o protagonista de A Laranja Mecânica, portanto, não era um mero desajustado. Era um grande covarde, mas também um louco que não sabia distinguir entre certo e errado. Um sádico, o que pessoas que faziam o mal acreditando fazer o bem não eram. Eram idealistas. Hitler acreditava estar fazendo o bem, higienizando o mundo. Havia até os que defendiam Stalin, inocentando-o pelo Holodomor. E a última frase de Bárbara fora: “Pessoas boas sempre têm muita certeza de que estão certas.”
Chega de devaneios. Levantou-se, reabriu a janela e a mosca voou para fora.
Apesar de ninguém ter caído, Lara levou um susto como se ela mesma estivesse em queda, precisando se segurar na beirada.
O interfone tocou.
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