A questão era ficar cada vez mais próxima da morte.
Pesquisar sobre frases póstumas e pronunciá-las no dia a dia, nos chats de Internet. Inserir seu rosto em fotos de cadáveres ou em fotos antigas de pessoas já falecidas, de até um século antes.
Às vezes sonhava com aqueles fantasmas, com mulheres da era vitoriana, mas que tinham seu rosto e sorriam em sua direção. Algumas eram como se fossem manequins, mas dava para ver por sua pele que respiravam. Eram réplicas suas mudas e só de rosto, diferentes da primeira com a qual sonhara.
Também sonhava com espelhos, mas que não refletiam a sua imagem. Um deles refletiu a do seu Eriberto, só que ou apenas a cabeça, com o corpo embaixo sendo uma névoa, ou então o rosto torto, com uma boca que se dissolvia.
Passou a frequentar um site que hospedava filmagens do IML e de algumas funerárias. Precisava observar tudo ali com atenção.
Um preparador de cadáveres conversava com os corpos dos que haviam sofrido as mortes mais violentas, que chegavam mais rígidos do que outros. O bizarro era que papeando, proferindo palavras de gentileza, almejando que estivessem bem apesar do sofrimento, aqueles cadáveres relaxavam, ficavam menos duros e difíceis de mexer. Seria um indício de um espírito preso à carne?
Viu barrigas serem abertas como se fossem bolsas rosadas, camadas de pele e músculos puxadas para trás, presas feito cortinas orgânicas.
Um outro preparador puxou a pele de um rosto para cima e para trás como se fosse uma mera máscara engordurada. As listras vermelhas e brancas de músculos sobrepostos assumiram uma tonalidade arroxeada em volta de um buraco anômalo logo acima da face. Ficou com aquela imagem na cabeça por algumas noites, porém novas exigências chegaram em seu e-mail. Ver não bastava, precisava sentir o cheiro da morte. Frequentar cemitérios. Mas não para virar uma neogótica. Muito mais lhe era imposto.
Sonhou de novo com o vizinho falecido. Seu cadáver estava em uma das macas do IML. Só que movia a boca para falar. Apenas a boca, nada dos olhos. Seu olhar continuava a ser o de um morto. Eram como reflexos involuntários. Não conseguia entender o que dizia. Decidiu que iria desenterrá-lo.
Não comparecera ao seu sepultamento, mas sabia, devido a um anúncio colocado no elevador do prédio, onde estava inumado. Aguardou pela noite e dirigiu-se até lá com uma pá e um saco.
Havia cacos de vidro em parte dos muros do cemitério, mas em outros trechos tinham sido removidos.
Escalou e saltou o muro. A sensação era de ser uma criminosa, uma marginal da morte, mas não tinha o direito de recuar. Tinha o dever de prosseguir. Seus passos eram a única quebra na noite calada. Vez ou outra olhava para trás. Esperava não se deparar com algum coveiro ou então com um macumbeiro, a presença destes denunciada por velas e oferendas como galinhas assadas com farofa ou sapos em recipientes cheios d’água sobre ou perto de alguns túmulos. Se visse um fantasma, apesar do susto ficaria realizada, pois seria uma manifestação de algo além da vida. Apesar que sempre poderia ser uma alucinação, como já acontecera em sua própria casa. Precisaria de ao menos algum tempo para conversar com o espectro.
Chegou ao túmulo do senhor Eriberto. Apresentava sua foto na pedra, mas estava coberto de terra.
Fincou ali a pá e escavou até ficar com os braços doloridos. Ofegante, parou para descansar.
Aprofundou a respiração e em cinco minutos voltou ao trabalho. Enfiou as mãos na terra. Também ficaram doloridas; havia sangue nas unhas, mas, ainda assim, puxou o que acreditava ser o corpo.
O rosto estava irreconhecível. Ainda havia pele, mas era mais uma caveira. O cheiro, indescritível, quase a levou a desmaiar, mas conseguiu enfiar o cadáver no saco que trouxera. Seus órgãos deviam estar vazando gases.
Em seus estudos, lera que o odor de carne podre era causado pela putrescina e pela cadaverina, aminas biogênicas produzidas pela decomposição dos aminoácidos presentes no corpo, que poderiam ser os nomes de duas entidades monstruosas, duas górgonas que não petrificavam, mas iam dissolvendo os tecidos do corpo.
Os ácidos orgânicos também contribuíam para o fedor, incluindo o cheiro rançoso do ácido butírico, afora os odores fecais dos fenóis e indóis e a pungência da amônia, que resultava da quebra de proteínas e ácidos nucleicos.
Devolveu toda a terra para não despertar suspeitas e se afastou da cena do crime.
Escalou um túmulo mais alto, próximo de um trecho de muro, para, com esforço, galgá-lo junto com o saco e a pá.
Não era de rezar, mas desceu rezando para não ser vista. Jogou o saco no porta-malas do carro e voltou para casa.
Não poderia manter o cadáver em seu apartamento por muito tempo ou os vizinhos começariam a reclamar do cheiro. Poderiam até suspeitar que fosse uma versão feminina de Jeffrey Dahmer. Portanto, se apressou em tirar as fotos do corpo para postá-las em um blog na Deep Web.
Na noite seguinte, voltou ao cemitério para fazer o caminho reverso, pois apesar de seus intentos, devia algum respeito ao sr. Eriberto.
Ao término do trabalho, após a última pá de terra, os gases do cadáver pareciam ter entrado dentro dela, como se estivessem em sua garganta e, por isso, vomitou.
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