Por alguns dias não frequentou o fórum, não viu vídeos, nada. Estava jogando um jogo de tiro que foi pausado por uma chamada que abriu sozinha. Era de Sorath.
– O que está acontecendo? Foi-lhe dito que não era permitido voltar atrás.
– Não estou voltando atrás. Só dei uma pausa.
– Você acha que a morte dá pausas? O relógio dela é implacável e nunca para. Só vai parar quando o universo deixar de existir e isso está muito longe.
Um calafrio percorreu sua coluna. Queria retrucar algo, mas sua mente se esvaziara.
– Você acha que a sua morte está longe? Deveria ser um direito de todos decidir quando vamos partir… mas, já que não é, deixamos aberta para alguns essa possibilidade. Todas as religiões falam de sacrifícios. Por que não poderíamos ter os nossos?
Tinha alguém se aproximando atrás de Sorath, que estava sentado em um longo corredor. Uma silhueta feminina. Era uma mulher negra muito alta e magra, mais alta do que ele. Parecia até a Naomi Campbell no auge. Ela colocou as mãos nos ombros de Sorath. Seria alguma camgirl que ele contratara para serviços presenciais?
Ela estava feliz, pela forma como sorriu. Seria Durga?
– Esta é minha irmã de iniciação, a Rainha de Copas. É ela quem recruta as nossas camgirls. Eu soube que você ficou comovida com a situação de uma delas, a nossa querida Alice.
Alice… Rainha de Copas… Aquilo era alguma piada de mau gosto?
– Ela nos deixou anteontem.
Acabava de receber um soco no peito.
– Estourou os miolos – disse a Rainha. – Eu teria preferido de outro jeito, mas ela quis assim. Pelo menos eu estava ao lado dela.
– Mas ela gostou muito de você, Lara – prosseguiu Sorath. – Depois confira a sua conta, os bitcoins que você havia pago para ela estão de volta.
– É o ciclo. Algumas coisas apodrecem para outras nascerem, florescerem. É esse o meu reino.
Pobre garota. Ainda assim, simpatizara com Lara e lhe deixara uma herança.
Não tinha razões para sentir culpa, pelo contrário: até roçara o rosto de Alice com um sopro de Eros; não, na verdade cogitara isso. A tela a bloqueara, mas não tinha culpa. Não tinha culpa de algo que merecia, pois estava com boas intenções.
Mais alguém apareceu no corredor: um mordomo, que vinha trazendo um cálice de vidro para a Rainha. Ela tomou o que havia ali.
Não havia volta. Mas pensou em fechar aquela janela, ou, se não fosse possível, dar a ordem para seus assistentes do Goetrix destruírem o computador, apagarem todo seu conteúdo. Depois poderia até jogá-lo em um ponto de descarte de eletrônicos.
Mesmo assim, se comprasse um novo e continuasse naquele ramo, não a localizariam de qualquer forma? Poderiam encontrá-la também fisicamente, já que tinham seu endereço virtual e o físico. Precisaria mudar de cidade, talvez de país, mas estavam no mundo todo...
Não tinha mais volta. Era mergulhar e nadar entre os tubarões ou então se afogar, que era o que as camgirls escolhiam fazer.
– O que você bebeu? Por acaso foi o sangue dela? – Lara ousou perguntar.
– Não, nada disso. – Sorath que respondeu. – Era uma substância muito mais nobre.
A Rainha jogou o cálice no chão. Este se espatifou em pedaços.
Lara tirou a atenção da mulher por segundos, o bastante para ela desaparecer. Assim como o mordomo. Mas o que eram, hologramas? Truques de realidade virtual? Inteligências artificiais? No chão do corredor não havia mais vidro algum.
– A Rainha agora está bebendo confortavelmente em sua casa… – emendou Sorath.
– Então pelo menos ela existe.
– Existir ou não é uma questão de ponto de vista. E se só você existir?
– Nunca fui simpatizante do solipsismo.
– Mas tudo poderia ser uma Matrix, ou Maya, como dizem os hindus. O que a minha irmã bebeu foi uma espécie de soma, a substância do despertar. Nós começamos juntos em tudo isso, eu e ela, e embarcamos em funções diferentes.
– Você está querendo me confundir.
– Confundir para esclarecer.
– Chega de charadas, Sorath.
– O meu é quase um método socrático, mas está bem, vamos em frente. Os sacrifícios são como fornecedores…
– De quê?
– De uma composição bioquímica específica produzida pelo cérebro pouco antes de morrer. Atenção: eu não disse que é produzida quando ele está morrendo, nem quando ele está em coma ou em parada cardíaca. Eu disse pouco antes de morrer.
– Segundos antes?
– Quando o cérebro entende que está prestes a morrer, mesmo que o corpo ainda esteja muito saudável e tudo funcione. Sabe quando pessoas à beira da morte dizem que viram a vida inteira passar diante de seus olhos?
– Seria a fonte das experiências de quase morte?
– Estou falando de quando alguns moribundos se tornam incrivelmente profundos... Refletem em poucos instantes sobre o sentido da existência de uma forma que não seriam capazes de fazer em vida. Tornam-se filosóficos, às vezes até caridosos. Teoriza-se que o cérebro simplesmente percebe que a vida está prestes a se encerrar. Você tenta desesperadamente fazer um balanço para se preparar para o que vem a seguir, se houver um depois…
– Achei que você tivesse certeza de que há alguma coisa.
– Eu posso até ter, mas isso importa para você? Você que precisa obter a sua certeza e essa substância pode lhe permitir esse acesso profundo. É um objetivo muito ambicioso o de enclausurar a morte em um crisol para transmutá-la em algo, quiçá… mas infelizmente muitos não estão prontos para dar esse passo. Talvez você esteja.
– Como vocês conseguem essa substância? Enfiam uma seringa na cabeça da pessoa no ponto exato…
– Chegará o preciso momento em que teremos que realizar a depuração deste mundo. – Sorath disse isso e ficou offline, encerrando a conversa sem maiores explicações.