Já tentara o vestibular de medicina só porque queria ser médica legista. Realizar autópsias para desvendar, através do atento exame dos órgãos internos e tecidos, os fatores que haviam levado determinado indivíduo à morte. Coletar amostras de fluidos corporais, fragmentos orgânicos e outros materiais que pudessem ser usados como evidências em investigações criminais ou processos legais. Seria decisiva no esclarecimento de muitos mistérios. Gostaria de determinar, portanto, as causas de mortes violentas e de colaborar com a justiça, mas não dera para aquilo porque não conseguira passar no vestibular, um meio injusto e estúpido de seleção. Gente com vocação legítima para a medicina podia ser barrada em razão de matérias que nada tinham a ver com o talento médico. Eram premiados os generalistas de extraordinária memória e muitos dos que se tornavam doutores só haviam tido melhores oportunidades financeiras para se dedicarem com exclusividade aos estudos. Era o mais elitista dos cursos. Com a demanda que tinha, bem que poderia oferecer mais vagas.
Pensar no vestibular incrementava sua ansiedade. Condenava-se pelas respostas que havia errado por uma faísca de distração e porque não apresentara a resistência física e emocional que contavam naquele contexto. Mas, se não tinha essa resistência, poderia ser médica? Tentava se convencer de que o resultado teria sido diferente se tivesse podido lidar com um assunto condizente com sua meta. Não teria se desconcentrado. Teria permanecido focada.
Gostaria de conseguir ler, ao olhar fundo e com atenção nos olhos de um moribundo, seus últimos pensamentos. Mas isso estava além dos poderes e conhecimentos dos médicos, que só conseguiam descobrir o que os levara à maca do hospital ou do necrotério.
Era triste que a telepatia não existisse, ou não fosse controlável nem acessível. Tinha que se contentar com o que as pessoas diziam… e as pessoas costumavam mentir ou omitir.
Foi parar em um site de acidentes aéreos. Chamava-se Desastro e apresentava, ao fundo, o desenho de um avião colidindo com a carta do Tarô da Torre, uma estrela cadente que se partia em pedaços.
Além de vídeos e reportagens, reunia os conteúdos de diversas caixas-pretas. Era muito lixo aéreo. Mas havia lixos e lixos. Tanto inutilidades quanto achados magníficos que poderiam ser injustamente descartados.
As caixas-pretas coletavam todos os dados de uma aeronave para que, na ocorrência de um acidente, pudessem ser recuperados. As últimas palavras dos passageiros ficavam registradas naquelas caixas. Ouvi-las era quase como dissecá-los.
Na maioria dos casos, gritavam e choravam como crianças, chamando pela mãe, por um ente querido ou por uma divindade. Às vezes expunham todos os seus erros. Todas as coisas que queriam fazer, mas que sempre tinham adiado. Tentavam ligar para os parentes para dar um último adeus, pedir desculpas ou perdoar. Por vezes tentavam inútil e desesperadamente se salvar e evitar a situação até o último segundo, ainda que o piloto tivesse dito “tenham um bom fim”. Havia ocasiões em que vomitavam todos os seus pensamentos em uma torrente de pânico exaltado. Passou parte da noite baixando aquelas confissões derradeiras.
Não sabia como reagiria se algo do tipo lhe acontecesse. Talvez fecharia os olhos e aguardaria as cortinas baixarem para sempre. Ao menos para ela. Ou se levantariam revelando o que existia atrás?
Cassandra teria deletado todos aqueles arquivos e a teria arrastado para ficarem trocando carícias na cama, para que alçassem voo rumo aos reinos do prazer.
Sexo era vida. Era Eros. Não que não gostasse de sexo, mas sua pulsão preferida era Thanatos e nem era assim tão raro encontrar na Deep Web pessoas como ela, atraídas por pensamentos de morte. Sites, podcasts e fóruns abrigavam milhares de usuários com os quais poderia se irmanar. Todavia, ao menos até o momento, limitava-se a ler e ouvir, sem o menor interesse em interagir.
“De repente, as pessoas somem”, assim tinha início um dos depoimentos escritos em um fórum chamado Voragem, cujo desenho de fundo era um buraco negro. “Quando eu era adolescente, às vezes pensava que alguém não existe enquanto eu não vejo essa pessoa. Talvez não estivesse tão errado assim. Pelo menos com relação à morte. Uma hora a pessoa tá ali, conversando com você. De repente, não tem mais como ouvir a voz dela. Nem ela a sua. Existe uma barreira invisível e intransponível, atrás da qual talvez não exista nada. Só um abismo interminável, e isso é muito frustrante. A ignorância é pura frustração.”
Outro dizia: “Lembro da minha avó. Viva. Fazendo arroz-doce pra mim. Poucos dias depois, depois de uma briga imbecil com a empregada, ela vai pro hospital e não volta. Não adiantou nada rezar. Tudo bem que ela tinha noventa e dois anos! Como diz um amigo meu: tava fazendo hora extra nesse mundo. Mas e se não existir outro mundo? Não ter certeza de nada, nem se existe, nem se não existe, pra mim é o pior. Às vezes prefiro acreditar que não existe. Vai que o Inferno é de verdade! Mas tem horas que penso que seria muito vazio e sem sentido se tudo acabasse do nada, no nada. O universo funcionando por conta própria, sem nenhum significado, sem direcionamento, não é uma coisa que me convence. Seria mais fácil simplesmente não existir nada.Muito mais fácil!”
Não sabia se concordava com aquele ponto de vista ou com parte dele. Uma verdade era que a apavorava a perspectiva de ser um boneco oco, enfiado em uma gaveta de necrotério, e depois em uma de cemitério ou em um caixão.
O dia raiou e Lara nem quis ir para a cama, para ficar estirada feito um cadáver. Continuou no computador, para na sequência vir outra noite insone. Precisava parar um pouco. Não para dormir, mas porque tinha que trabalhar, abrir cortinas menores e menos importantes, porém necessárias à sobrevivência. Apesar que sobreviver não era lá grande coisa. No caso, a próxima tarefa fora designada por um ricaço desconfiado de que seu filho estava comprando drogas pela Internet. Estava com trezentas DPs na faculdade que o pai bancava.
O menino até era um bom hacker iniciante, mas deixava várias pegadas. Lara conseguiu rastreá-lo com facilidade e descobrir sua identidade em um fórum de venda de cogumelos mágicos. Identificava-se com o nome de xamãzito. Estava interessado na espiritualidade das drogas, pelo que parecia. Em abrir as portas da consciência.
Naquele espaço se falava muito dos livros de Carlos Castañeda. Uma das primeiras vezes em que ouvira falar de um uso espiritual das drogas fora quando lera o artigo de Aldous Huxley a respeito das Portas da Percepção. Havia sido conduzida a este ao descobrir que fora de onde viera o nome do conjunto The Doors, um dos seus favoritos durante a adolescência. Mas, apesar das leituras e de ter se informado sobre o uso feito pelos índios da mescalina, de substâncias ligadas aos cogumelos, ao peiote, à famosa ayahuasca, mencionada pelo Sting em entrevistas, nunca tinha experimentado nada.
Seu dedo coçou. Havia chegado o momento? Chegara ali para denunciar alguém, mas também se inscreveu no fórum como participante, como consumidora.
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