Tinha uma rival, talvez? Ou lhe convinha se curvar e entender que era uma aprendiz de aprendizes? Menos mal que tinha um backup de seu programa e dos dados de seu computador, e que assim conseguiu restaurar tudo. O melhor era que o Compasso de Urizen realmente tinha voltado a ficar acessível. E quem a observava de canto, como um homem de rosto sorridente de leão e segurando um cajado com cabeça de cobra, seu antivírus na Dark Web, era Vine, o 45o espírito da Goécia.
Descobriu que aquele fórum estava longe de ser algo nacional. O que acessava antes era limitado a usuários no Brasil, como se fosse uma filial. Já o que se abria agora, em seu novo grau de aprendiz, era uma multinacional, uma ordem iniciática sem fronteiras, uma espécie de maçonaria dos recantos mais obscuros da Internet.
Os maiores e piores hackers, os peritos em ocultismo e magia negra, as mentes mais sórdidas da Web, frequentavam aqueles tópicos. Tinham em comum a obsessão, quase veneração, pela morte e pelas sombras.
Sorath estava online e a chamou no chat para que realizassem uma chamada de vídeo.
– Você sabe que agora não pode mais voltar atrás, não é? – Sua voz estava diferente. Claro que a primeira voz que havia utilizado era artificial. Talvez sequer fosse brasileiro, e empregasse alguma IA como tradutor. Ou se era, era o líder da divisão que cuidava daquela área do mundo. O Sol Negro para o “País do Sol”. – Você deu o passo decisivo quando retornou aqui. Não sairá mais, nunca mais. Nem viva, nem morta.
Intuiu que havia algo de mais profundo naquela frase e por isso demorou alguns segundos para responder:
– Se eu morrer, não vou poder continuar aqui – contestou, mas de uma forma que soou torta em sua própria percepção.
– Você pode estar errada. Quem lhe disse que a vida não continua no ciberespaço?
– Vocês por acaso conseguem transferir dados cerebrais para computadores?
– Algumas pessoas têm medo da morte, muito mais do que outras. São literalmente aterrorizadas por ela. Não conseguem dormir à noite sem saber o que as espera depois. Precisam exorcizar esse monstro de alguma forma. Esse é o tipo de gente que quer entrar para este grupo, mas não é quem consegue entrar de verdade. Aqui entram aqueles que, quando crianças, gastavam um longo tempo passeando nos cemitérios, quem fala com os mortos, quem observa com o telescópio pirâmides invisíveis. E há outros mais… Há aqueles que são como você.
– Você não respondeu a minha pergunta.
– São pessoas – levantou uma mão – talvez focadas demais no fato de que todo este mundo está destinado a perecer, e nós muito antes dele. Neste fórum, como você já sabe, são divulgados rituais poderosos que podem nos ajudar a controlar a morte, a suprimir o lento avanço da entropia. E há muito mais…
– Muito mais o quê? – Não podia negar a si mesma que aquilo tudo era tremendamente instigante. Sempre havia mais e mais.
– Quer saber mais? Faça mais.
Sorath desligou a chamada e ficou offline.
– É mesmo um filho da puta.
Se a havia escutado, melhor ainda.
Continuou a explorar o site.
Havia fotos de rituais realizados por pessoas em trajes cerimoniais, com capuzes negros pontiagudos que encobriam seus rostos, formando cones e pirâmides. Talvez devesse adquirir roupas do tipo, embora não tivesse nenhuma cerimônia em mente.
Um homem tinha a cabeça coberta por um capuz em que estava desenhado um triângulo, no centro do qual havia um sol negro com um olho, visível apenas por estar em alto-relevo e se observado com atenção. Seria Sorath?
As cerimônias eram filmadas em locais como ruínas e cemitérios. As imagens oscilavam entre o sublime e o grotesco e capturavam momentos de uma beleza perturbadora e doentia.
Ora estavam em silêncio, ora entoavam cânticos em uma língua ancestral enquanto traçavam no chão, utilizando cinzas e ossos humanos, círculos e triângulos mágicos, hexagramas e pentagramas.
Havia horas em que as sombras projetadas pelas velas negras pareciam ganhar vida própria, dançando, contorcendo-se e fundindo-se em formas vagamente humanoides. Nada humanas as criaturas que sacrificavam sobre seus altares, aberrações tentaculares que nunca vira antes: reconheceu uma espécie de moreia negra dotada de uma lanterna natural, mas que estava apagada; além de um peixe-ogro de dentes tão grandes que, mesmo morto, impediam o fechamento de sua boca. Quando vivo, alimentava-se dos restos mortais de animais que precipitavam das áreas mais altas. Outro era um peixe desconhecido cuja cauda lembrava uma mão humana.
Como tinham conseguido pescar aqueles seres de águas abissais?
Um vídeo chamou sua atenção porque a figura com o chapéu do sol negro se repetia nele. Caminhava por um cemitério abandonado e suas mãos pálidas e de dedos esqueléticos acariciavam lápides antigas ao mesmo tempo que sussurrava para os mortos palavras incompreensíveis.
A câmera estava instável, tremendo como se o próprio cinegrafista estivesse à beira da insanidade, incapaz de suportar a atmosfera do local.
Conseguiu, por fim, escutar algumas das palavras que saíam da boca do sujeito:
– Buscamos o entendimento final, o abraço inexorável do fim. A morte não é algo a ser temido, mas sim compreendido e reverenciado.
Um frio crescente tomava conta de seus membros. Era uma sensação de que algo poderosamente arcano despertava. A escuridão que envolvia cada canto da Deep Web pulsava com uma energia malevolente. Os próprios bytes e pixels eram tocados pelo misticismo das trevas.
Sorath, já estava convencida de que era ele, olhou para a tela, seus olhos comparáveis a fogos-fátuos, embora seu rosto não fosse visível; Lara tomou um susto e teve a vista ofuscada.
Ao recuperá-la, o vídeo havia se encerrado. A impressão era de que ele a vira. Que estava filmando naquele exato instante para ela, apesar de o vídeo ser, aparentemente, uma gravação.
Na morte, o tempo era relativo e desimportante. E ele era de fato um sol, ainda que negro, e por isso fora ofuscada.
Precisava se aproximar daquele brilho, do brilho de um diamante escuro cujos reflexos a prendiam em um remoinho de horror e fascinação, onde a linha entre a vida e a morte, o real e o virtual, se tornava cada vez mais tênue. Precisava se acostumar a ele.