Não era o diabo, mas quase. O porteiro anunciara Cassandra, sua ex-namorada mais recente e a mais chata e pegajosa de todas. Só não podia dizer que era feia, e talvez por isso, e só por isso, ainda a aturasse.
Era ela forçando a fechadura. Deixou que insistisse, sendo talvez sádica nisso. O movimento cessou e a campainha tocou.
Abriu a porta.
Vê-la diante de si fez com que se lembrasse de que era seu oposto, toda solar com seus vestidos coloridos. Sua pele um ébano reluzente.
– Por que você mudou a fechadura? E ainda disse pro porteiro que não era pra eu subir direto!
– Já era pra você ter entendido que devia passar longe daqui.
– Aposto que você tá vendo merda no computador!
Foi batendo o salto alto com tudo no chão de taco, o que a tornava ainda mais irritante, e invadiu seu escritório.
– Eu tava trabalhando! – Lara, irritada, a seguiu.
– Pra político ladrão.
– Se a gente tá vivo, tá roubando, nem que seja de alguém do outro lado do mundo que nem sabe que tá sendo prejudicado.
Com toda leviandade e cara de pau do mundo, se sentou na cadeira na frente do computador e foi mexendo.
Não adiantava nada tentar fuçar nas suas pesquisas mais profundas. Era a única pessoa que sabia mergulhar em sua máquina.
– A senha do e-mail você não mudou.
– Você anda fuçando no meu e-mail? – Sabia que Cassandra ia jogar uma pedrinha naquela superfície, então fingiu surpresa.
– Eu vou fuçar agora.
– Sai daí.
Cassandra ignorou o tom de ameaça. Estava explorando o e-mail da ex-namorada, que bufou e cruzou os braços.
– Vai embora e me deixa em paz.
– Não, não tem nada aqui, mas sei que você esconde um monte de porcaria e eu não vou deixar você se destruir e afundar na depressão, de jeito nenhum! Você é brilhante, Lara! Larga desse lixo e volta a estudar. Eu te ajudo esse ano e dessa vez você passa! – Tinha que tocar naquela ferida. Sabia mesmo ser desagradável.
– Tem muita coisa na vida que eu tenho dúvidas e queria não ter, mas uma dúvida eu não tenho: não quero mais que você venha aqui encher o meu saco.
– Olha, se não dá pra estudar, se tem muita coisa nessa sua cabecinha agora, a hora é de relaxar então. A gente pode curtir um pouco, viajar juntas…
– Não quero saber de praia não.
– Quem falou de praia? A gente pode ir pra um retiro. – Era uma hippie fora de época.
– Fazer o quê em um retiro? Eu já vivo em um.
– É diferente, é outro lugar, outro ambiente, no meio da natureza.
– Se você me conhecesse de verdade, saberia que eu sou um rato da cidade.
Cassandra se levantou da cadeira em frente ao computador e foi em direção à cozinha. Lara voltou a segui-la.
– Ei! O que você tá indo fazer aí?
– Ver os restos da comida de rato.
A geladeira estava vazia.
– Não tem porra nenhuma aqui. Vou pedir comida pra gente.
Lara empurrou Cassandra e bateu a porta da geladeira.
– Me deixa em paz!
– Paz é tudo o que não tem nesse lugar. Mas tá bom, tá certo! Eu já tô indo embora.
Finalmente! Lara ficou aliviada.
– Mas eu volto amanhã, com comida pra você.
– Não vou estar aqui.
– Sei…
Cassandra a deixou e Lara trancou a porta. Inclusive a fechadura de cima. Foi olhar pela janela da sala, não por desconfiar que algum corpo pudesse cair, mas para vê-la deixando o prédio e assegurar-se de que não estava mais em seu espaço vital.
Voltou para o escritório e, antes de se sentar de frente para o computador, olhou pela janela de lá também.
Ratos estavam revirando o lixo. Imaginou-os passando por cima de um cadáver.
Agora Lara também iria revirar seu lixo.
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