Sua mente era um emaranhado de resíduos cerebrais turbulentos, fragmentados e estilhaçados que trinavam e retiniam, expandindo-se e contraindo-se em um frenesi palpitante.
Penetrou em escuridões nunca exploradas, seguindo por becos sem luz que a levavam a terrenos arruinados e infestados de vidros quebrados, peças enferrujadas e cabos apodrecidos.
Tudo foi ficando escuro, até qualquer visão desaparecer. Ficou sem ar.
Recuperou o fôlego junto com a visão do mundo, mas era tudo vermelho e preto.
Sorte que por apenas alguns segundos. Para seu alívio, sua visão voltou ao normal. O vermelho e o preto foram transferidos para as letras na tela do computador:
"Muito bem! Pode encerrar o ritual."
Logo abaixo havia um botão com a inscrição: "Retire seu prêmio."
Apertou-o. Novas letras apareceram, em néon cintilante, fazendo-a arregalar os olhos pela enorme quantidade de bitcoins que lhe era disponibilizada.
Além disso, havia inúmeras opções com que gastá-los. Armas, substâncias psicodélicas… além de camgirls online, com visuais de cosplays que Lara já realizara. Havia uma tão parecida com Cassandra que até ficou na dúvida, mas não podia ser ela. Aquele tipo de coisa não era algo que se encaixava no perfil da sua ex. Só eram bem parecidas de rosto e corpo, a garota com uma roupa de mulher-gato. Era a mais cara com a qual poderia falar.
Depois de muito tempo, o impulso de Eros voltava a roçar sua pele. Aliás, era mais do que isso, pois seu coração acelerou; e descobriu, nas letrinhas embaixo, por que aquela menina era uma das mais caras: aquele era o preço para caso ela se matasse; e como ela havia outras, todas pagas para se suicidarem. Eram garotas mergulhadas na depressão.
Voltava a pergunta: de que valia o dinheiro depois da morte?
Lara clicou com angústia e persistência na sósia de Cassandra, cujo nome era Alice. Mas no botão para que se limitassem a conversar enquanto a camgirl se despiria. Não no da eutanásia.
A câmera abriu e Lara não falou nada. Aguardou que a outra, sentada em uma cadeira preta, dissesse algo.
– Quer que eu faça algo especial pra você, minha gata? Se quiser tentar algo radical, não se esqueça de que você pode tudo. – Um revólver e uma faca estavam pousados na mesa ao lado.
– Por que você faz isso?
A garota parou com a mão em cima do zíper do decote.
– Você não é da polícia, é?
– Não, claro que não.
Alice a encarou por alguns segundos. Seu olhar verdadeiro não era de ressaca, mas de velório, no qual seria uma mera espectadora ainda que fosse o seu próprio.
– É a primeira mulher que eu vejo em muito tempo. – A tensão que pairara por alguns instantes se dissipou como o ar de uma bexiga estourada.
– Tem um tom de alívio nisso ou eu estou ouvindo demais? – No velório que imaginava ao redor de Alice, o corpo no caixão havia perdido o rosto.
– Um pouco demais, talvez.
Novo silêncio. Alice desviou o olhar. Lara engoliu a saliva que estava se acumulando em sua boca.
– O que eles te pedem pra fazer?
Havia zíperes também nas mangas da roupa. Alice abriu um deles e exibiu marcas de cortes. Lara entendeu a função da faca.
– Isso e várias outras coisas. – Voltou a fechar o zíper.
– Eu entendo que você queira ganhar a vida. Mas ganhar a morte?
– Eu já estou cansada, Lara. – Um choque percorreu sua espinha. Pronunciara seu nome do mesmo jeito que Cassandra fazia, porém a intimidade que se desenrolava entre elas estava adquirindo uma profundidade maior do que qualquer momento vivenciado com a ex. – Eu quero desistir. Se alguém me ajudar nisso e eu ainda puder dar prazer pra essa pessoa…
– E o dinheiro… vai pra quem?
– Eu já deixei tudo escrito pra quem eu quero que vá.
– Mas então você tem família, gente de quem gosta? – O velório imaginário ficou cheio de rostos pálidos e vazios, mais parecidos com os de manequins.
– Tem gente de quem eu desgosto menos. – Deu um sorriso. – Mas eu vivendo ou não, a maior parte do que eu faturo vai pro Compasso, pra ele continuar a girar. – Então os bitcoins gastos, em sua maior parcela, voltavam para a seita. Constituíam, com toda a certeza, o grosso das quantias entregues a outros membros.
Aquilo fazia sentido, mas experimentou um senso de culpa que talvez não deveria estar experimentando.
– Nada mais justo. – Alice a arrancou de suas divagações culpadas. – Eles me deram a oportunidade.
Não havia mais velório. Apenas um caixão flutuando sobre um buraco, um abismo.
– Você já falou com o Sorath?
– Claro, é um dos meus clientes mais assíduos. Ele me incentiva a buscar o descanso.
– Pra mim ele diz coisas diferentes.
– Porque você deve ter outra finalidade. Você deve ser que nem a ponta do compasso que traça. Já eu sou uma ponta de apoio.
Lara abaixou a cabeça. O caixão afundava no abismo, constituído de um líquido escuro. Tornou-se um vórtice de alcatrão.
Perdida naquela correnteza disforme, não conseguia mais olhar para a garota. Seu peito e sua barriga gelaram.
– Eu ainda posso tirar a roupa pra você.
Não conseguiria continuar. Fechou a chamada e, com o estômago embrulhado, correu para o banheiro.