Talvez estivesse mais louca do que quando ingerira os cogumelos, mas resolveu que seguiria o Sr. Eriberto pelos sete dias seguintes.
Não estava em posse de um Death Note, não iria matar ninguém. Apenas constataria se aquilo era uma mentira, se tinha alguma precisão, ainda que mínima, ou se era algo assustadoramente exato. Temia que a última resposta fosse a correta, mas como um aplicativo poderia saber tudo sobre uma pessoa apenas pelo que ela carregava no computador ou celular?
O Necroregro também calculava o tempo para o fim do mundo: quanto faltava para um apocalipse nuclear, para a queda de um meteoro, para a próxima tempestade solar que calaria o mundo, para uma pandemia mais letal do que a COVID-19; contava os bilhões e bilhões de anos para o fim do Sol... Nesse caso, era um tempo longuíssimo que parecia interminável, só que não era. O relógio estava lá e tic-tac, tic-tac, era uma realidade inelutável. Era ciência. Era física.
O Sr. Eriberto era um professor aposentado de física. Descobrira isso entrando nos arquivos do seu celular. Ia todo santo dia fazer caminhada na praça às cinco horas da manhã. Depois voltava para casa e dificilmente saía. Era viúvo e não havia como entrar em sua casa, a menos que fizesse alguma coisa...
Hackeou o celular do Sr. Eriberto. Uma tarefa fácil se tratando de alguém que abria qualquer link que recebia em e-mails ou nos grupos do zap. Nenhum aplicativo iria mais funcionar, exceto chamadas de emergência.
Então, no terceiro dia de caminhada de madrugada – Lara estava quase se acostumando a acordar naquele horário, em vez de ir dormir perto deste –, passou na frente dele e deixou cair um celular velho e quebrado que era uma peça de descarte.
– Mas que droga! Não acredito que quebrou! – A tela já estava rachada antes. – Que merda, puta que pariu!
– O que foi, menina? Fica calma. – Era um velhinho muito gentil. Sabia que ele pararia para falar com ela.
– Ah, desculpa, seu Eriberto! É que tô cheia de serviço hoje e esse celular me quebra justo agora! Vou perder um tempão arrumando ele.
– Você conserta celular?
– Conserto, conserto sim. Por quê?
– Mas trabalha nisso? – Tirou o seu do bolso, porém retraiu a mão.
– Trabalho, é uma das coisas que eu faço, seu Eriberto. Mas arrumar o meu próprio não dá lucro.
– Então tudo bem! Quero que você arrume o meu, que ficou maluco do dia pra noite! Só não cobra muito caro, sabe como é, eu sou aposentado!
– Deixa eu ver aqui.
Entregou-lhe o telefone. Lara, com vontade de dar pulos de alegria, se esforçou para adotar uma postura fleumática.
O celular estava como havia visto no computador, todo travado, abrindo e fechando telas até aparecer a mensagem apenas chamadas de emergência.
Voltou para casa e não demorou muito para arrumar o estrago que ela própria causara. O Sr. Eriberto, muito grato, passou a convidá-la a frequentar sua casa. Jantavam juntos, falava-lhe da família e não parecia haver nele a menor malícia. Seria uma oportunidade que a vida lhe oferecia para se dar conta de que nem todos os seres humanos eram perversos?
Talvez ela fosse a perversa. Já assistira a um vídeo sobre um serial killer em que o desgraçado ia à casa da mãe da vítima para consolá-la. Lara até se sentia um pouco assim na casa do Sr. Eriberto, mas não era uma assassina. Muito pelo contrário, estava lá para impedir que alguma coisa ruim acontecesse com ele. Mas tinha esse poder? Todos, algum dia, precisavam morrer. Estava era ficando louca mesmo.
Em mais uma noite insone, entre pensamentos sobre largar ou não do pé do velhinho, dar ou não uma trégua na vida de stalker, descobriu outra daquelas páginas que, à primeira vista, não pareciam ter o menor sentido. Era um site de domínio oculto que lhe perguntava se tinha ao menos trinta anos já na tela de acesso. Solicitava uma senha, em código binário, que fosse uma citação referente à morte. As últimas palavras de alguém, o dia e a hora precisas do falecimento de uma celebridade, a data de uma grande catástrofe...
Estava com o site dos acidentes aéreos fresco na cabeça, pois tinha dado uma olhada nele algumas horas antes. Inseriu a data do acidente da TAM que havia deixado cento e noventa e nove mortos porque o avião não tinha conseguido pousar, atingindo um prédio da companhia localizado do lado de fora da pista: 17 de julho de 2007.
Chamas despontaram na tela. O site abriu. Ou não: apareceram botões associados a objetos rituais como círculo mágico, altar e varinha, que, se clicados, conduziam a outros, em uma sequência enigmática que a levou a fóruns dedicados a temas ocultistas.
Tudo o que se referia a magia negra sempre lhe parecera baboseira de maluco, mas a curiosidade a impulsionou a ir adiante.
Algumas páginas continham links que levavam a viajante virtual de volta ao ponto de partida. Um verdadeiro labirinto. Mas que tinha seu fio de Ariadne: descobriu em um dos fóruns que se clicasse no círculo mágico, mantivesse o botão pressionado e digitasse o dia do acidente da TAM, retornaria à pesquisa mais recente.
Os fóruns discutiam rituais que envolviam sacrifícios de animais, evocações diabólicas e necromancia. E não eram lugares silenciosos. O som de fundo incluía músicas sombrias, distorcidas e deprimentes, acompanhadas por barulho de chuva, passos, cricrilar de insetos, crocitar de pássaros e uivos, que pioravam à medida que os temas ficavam mais pesados, com práticas que incluíam automutilação e beber sangue. O que não toleraria seria alguma prática envolvendo pedofilia, que trataria de denunciar. Pelo menos não parecia haver nada do gênero por ali.
Os fóruns afirmavam que os rituais indicados forneciam provas do sobrenatural, de algo a mais para além da vida terrena. Sentiu-se tentada, mas ao mesmo tempo parecia-lhe algo absurdo, até ridículo.
Clicou em um compasso e acessou um fórum que apresentava a imagem de um velho que, com um outro compasso, traçava o contorno do mundo. Já tinha visto aquela ilustração em algum lugar, era de um artista famoso, mas não conseguia se lembrar qual. O título do fórum era O Compasso de Urizen.
Destrinchava uma série de temas gnósticos. Como que Deus fosse na verdade uma fonte impessoal muito distante. O que batia com o que ela pensava, se Deus existia. Mas o criador do universo, da matéria, seria na realidade uma entidade maligna que se fazia passar por deus. Alguns defendiam que fosse um grande idiota, uma entidade cega e adormecida, que sonhava com o mundo. Outros que fosse um demiurgo consciente e perverso. O Diabo como senhor do mundo. O mal existia porque a matéria era má, caótica como os buracos negros, e não haveria escapatória para isso a não ser buscando a ordem. Por esse motivo, os rituais faziam sentido, como uma sistematização da realidade para se chegar à realidade do espírito. Não havia nada de errado em evocar demônios porque a finalidade não era pactuar com eles, e sim submetê-los. Reinar sobre a matéria para depois transcender a morte. A vida depois da morte, a vida consciente, não o sono dos idiotas ou pesadelos sem fim, seria exclusiva dos que alcançassem alguma forma de consciência da transcendência ainda na Terra.
Conectou-se ao chat. Poderia fazer alguma pergunta a um daqueles doidos online. No mínimo se divertiria.
Só que um pedido de chamada de vídeo apareceu para ela. Vinha de um usuário chamado Sorath, o Sol Negro… A imagem de um sol sombrio o ilustrava.
Hesitou. Deveria aceitar? O site pediu autorização para se conectar com os seus dados, inclusive com o aplicativo Necroregro.
Assustou-se com aquilo, ainda mais porque não vinha uma vibe positiva daquele sol negro.
Fechou a janela, saiu do site e largou o computador.
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.