— Quantos funcionários cuidam dela? — perguntou enquanto Tyler abria a porta da entrada.
— Tenho duas pessoas na casa.
— Dispense-as por algumas horas.
Ele hesitou por um momento.
— Elas ficam de plantão.
— Mande-as tomar um café fora.
— Elas vão estranhar. Sempre tomam café aqui.
A falta de resposta fez Tyler entender que aquilo não estava aberto para discussão. Com um gesto, indicou a porta para Daniella. Ela lembrava o caminho, mas deu uma boa olhada pela casa antes de entrar no quarto da irmã dele. Enquanto isso, Tyler foi liberar as funcionárias. “Mande-as tomar um café fora”, Daniella lhe dissera. “Maldita seja”, murmurou entre dentes.
Já na cozinha, ele tomou algum tempo para insinuar que precisava que elas se ausentassem por uma ou duas horas. As duas trocaram olhares e um sorrisinho cúmplice, tendo visto pela janela a chegada dos dois.
ApĂłs saĂrem, Tyler fechou a porta com um suspiro, e seguiu para o encontro da chefe e de sua irmĂŁ. Espiou Daniella arrumando o cabelo de Lauren no quarto, afastando os fios do rosto com cuidado.
— Ela continua linda — Daniella disse, lembrando-se de como se sentira insegura ao ver que Neo tinha escolhido a irmã de Tyler para passar a noite da formatura. — Estamos a sós?
— Sim — ele se aproximou — sabe, esse acidente sempre me incomodou. — O chão de madeira rangeu sob seus pés.
— O que aconteceu?
— Nada deveria ter dado errado, mas o sistema do carro do meu pai falhou numa zona de voo de baixo tráfego. — Ele caminhou até a janela, evitando olhar para a cama. — Minha mãe, a mãe de Neo, meu pai… e a Lauren. Todos juntos.
Daniella esperou em silĂŞncio.
— Quando os paramédicos chegaram, só encontraram uma pessoa respirando. — A voz falhou. — Ela estava nos braços da mãe de Neo. Mesmo morrendo, a mãe dele ainda protegia a minha irmã.
— Tyler…
— Eu devo muito ao Neo. — Ele finalmente se virou para Daniella. — Depois de tudo que aconteceu, ela é tudo que me restou.
— Sinto muito que vocês tenham passado por isso.
— Foi difĂcil, mas a gente se apoiou. — ele murmurou, observando Daniella admirando o rosto de sua irmĂŁ. — A polĂcia nunca explicou direito o que aconteceu.
Ela ficou em silêncio por um longo momento, como se processasse as informações. Quando falou, sua voz havia mudado de tom.
— Posso desligar as câmeras? — O olhar de Daniella não vasculhou o quarto procurando dispositivos. Não perguntou onde estavam, quantas eram. Simplesmente esperou.
Desde que entrara no quarto, nĂŁo havia dado as costas para a porta nem uma vez. Tyler reconheceu aquela cautela instintiva; havia aprendido a mesma coisa.
— Por quê? — questionou. — Essas gravações são a única forma de eu monitorá-la quando não estou aqui.
— Não era você que estava preocupado com minha presença na sua residência? Além do mais, você está aqui. Não precisa delas ligadas agora.
A mĂŁo dela permaneceu no cabelo de Lauren; Tyler piscou os olhos, e entĂŁo assentiu. Daniella tocou o prĂłprio pulso, um gesto tĂŁo sutil quanto um reflexo.
— Mitra.
Um brilho azulado chamou a atenção de Tyler, mas antes que pudesse processar o que via, uma voz artificial preencheu o ambiente.
— Estou aqui.
— Minha nossa — ele murmurou. Recuou e bateu as costas no armário. Uma IA funcional. Aquilo valia uma fortuna, e nem no mercado negro era fácil encontrar algo assim. — Você sabe que isso é…
— Proibido? Sim.
— Perigoso. — Ele olhou para a irmã, depois para Daniella. — Você está louca? Aqui? Na minha casa? Com a Lauren?
— Desligue as câmeras e apague os registros de gravação desde que entramos na casa. — Daniella falou, ignorando Tyler.
— Não! — Colocou-se entre Daniella e a cama. — Você não vai usar essa coisa perto da minha irmã. Nem pensar.
— Eu preciso que você confie em mim.
— Confiar em você? — A voz subiu, carregada de incredulidade. — Você trouxe uma IA para a minha casa! Você tem ideia do que está fazendo? — Passou uma mão pelos cabelos, inquieto. — Desde a erradicação, nem pessoas como Dr. Orion ousam ter uma coisa dessas. Quem diabos é você?
— Alguém que pode ajudar sua irmã.
— Quero uma resposta de verdade. — Sua voz saiu mais baixa, cortada. — Pessoas normais não carregam IAs no pulso. Você acha que sabe o que está fazendo, mas isso…
— Eu sei os riscos.
— Você sabe? Então talvez saiba que o protocolo me obriga a denunciar você.
— Vai me denunciar por tentar ajudar sua irmã?
Daniella permaneceu imóvel. O olhar seguia os passos inquietos de um lado ao outro do quarto, a respiração acelerada dele, o aperto e desaperto dos punhos, medindo a extensão do seu pânico.
— Eu vou te tirar daqui agora mesmo. — Ele agarrou o braço dela.
— Tyler, escuta.
— Não! Acabou. Você foi longe demais..
— Você quer condená-la para sempre nessa cama?
Tyler olhou para sua irmã na cama, lembrando-se como fora cheia de vida e sonhos ainda por realizar. Seu coração apertou. A cabeça baixou quando deixou o pulso de Daniella livre. Sentia-se incapaz desde que seus pais partiram. Ele queria poder fazer mais pela irmã, ser o irmão mais velho que seus pais confiaram que seria. A culpa o esmagava. Tentou controlar sua respiração. Sua segurança era a única coisa que poderia oferecer no momento.
— Você tem dez segundos para me explicar por que eu não deveria te expulsar daqui agora mesmo. Porque se alguém descobrir que eu permiti isso…
— Você vai passar o resto da vida se perguntando se perdeu a única chance de saber o que realmente aconteceu com ela.
Tyler balançou a cabeça, recuando um passo.
— Não. Não vou arriscar ela por uma maldita máquina proibida. — Apontou para a porta. — Saia. Agora.
— Todos os outros métodos falharam.
— E se eu apodrecer na cadeia? — A voz subiu. — Quem vai cuidar dela? Quem vai pagar os equipamentos? Quem vai…
— Tyler.
— Não! Não vou deixar você usar minha irmã como cobaia para essa… essa coisa.
Daniella observou o quarto, depois Lauren, depois ele.
— Quantos médicos você já procurou?
— Isso não importa.
— Quantos tratamentos experimentais? Quantos especialistas?
Tyler cerrou os punhos, os olhos marejando.
— Dezenas. Todos disseram a mesma coisa.
— E todos falharam.
— Mas eram legĂtimos. Seguros. NĂŁo iam me custar a vida dela e a minha liberdade.
O silêncio se estendeu. Tyler olhou para Lauren, para a respiração constante, para os anos de esperança que não levaram a lugar nenhum.
— Se algo der errado…
— Vou assumir total responsabilidade.
— Como? Você vai ressuscitar minha irmã se ela morrer?
— Ela já não está morrendo um pouco a cada dia, sem ao menos viver?
Tyler engoliu em seco. A pergunta acertou onde doĂa.
— Dez minutos — ela completou. — É tudo que preciso.
— Dez minutos? — Tyler riu com escárnio. — Isso é tudo o que você precisa para me convencer a cometer um crime internacional?
Daniella nĂŁo respondeu.
— Eu deveria te expulsar agora mesmo. — Ele olhou para a irmã. — Mas se houver uma chance, qualquer chance de que isso possa ajudá-la… — A tensão permaneceu no ar por mais alguns segundos. — Dez minutos — disse por fim, entre os dentes. — E se eu não gostar do que vir…
— Entendido.
— E se alguém aparecer, se alguma coisa der errado, eu corto a energia e conto para todo mundo que você invadiu a casa.
— Justo.
— Como você pode ajudá-la?
— Analisando a situação dela. — Daniella tirou uma pulseira com detalhes translúcidos da bolsa. — Esta pulseira vai apenas coletar dados vitais. Nada invasivo.
Ficou em silĂŞncio por um longo momento, a mandĂbula travada e o olhar perdido entre Lauren e a pulseira. A respiração da irmĂŁ continuava no mesmo ritmo suave de sempre.
— Ela só tem a mim. Se alguém descobrir…
— Não vão descobrir. Mitra, prossiga.
— Entendido. Desligando câmeras. — a IA respondeu.
Tyler segurou a mão de Lauren enquanto a luz vermelha das câmeras se apagavam.
— Dados de gravação apagados. Avaliando sinais vitais. — A pulseira no pulso de Lauren piscou e os equipamentos médicos ao redor responderam imediatamente.
Observou o rosto da irmã, procurando qualquer sinal de desconforto. Nada. As projeções holográficas dos equipamentos de monitoramento vacilaram quando Mitra acessou o sistema.
— Histórico médico acessado. Preparando relatório — a IA anunciou.
— Ainda posso parar isso — Tyler murmurou, mais para si mesmo. — Ainda posso te expulsar daqui.
— Pode — Daniella confirmou. — Mas não vai.
— Como você sabe?
— Porque você precisa saber a verdade mais do que precisa se sentir seguro.
A imagem saiu do pulso de Lauren, formando um painel holográfico à frente deles. Tyler recuou involuntariamente. Se ela tinha acesso a esse tipo de tecnologia… no que ele havia se metido?
— Em que tipo de mundo você vive para carregar uma coisa dessas no pulso? — a pergunta escapou sem filtro.
Daniella o estudou.
— No tipo de mundo onde pessoas como Lauren ficam em coma por acidentes.
— Substância XD-4566 detectada no sistema da paciente — Mitra informou, dados médicos se reorganizando no holograma. — Indução ao coma através de bloqueio das áreas de memória e consciência.
— XD-, o quê? — Tyler se aproximou das projeções, o rosto franzido.
— Dano reversĂvel. — Mitra continuou. — Terapia intensiva necessária com a substância complementar em ambiente virtual da consciĂŞncia.
Tyler piscou várias vezes, como se tentasse absorver o que ouvira.
— Os médicos me disseram que era apenas sedação padrão para casos de trauma craniano. Nunca mencionaram um código, nem um tratamento desses.
Daniella o analisou por um momento.
— O que você consegue descobrir sobre o acidente, Mitra?
— Verificando registros policiais…
Uma das tabelas repletas de informações projetadas ampliou-se, destacando-se das outras.
— Detetive Heitor Maraz, caso arquivado — pronunciou o nome enquanto dados apareciam. — Investigação oficial: falha no dispositivo de navegação.
— Arquivado? — A voz de Tyler endureceu. — Como assim arquivado? —
Ele passou a mão pela cabeça, e Daniella registrou mentalmente o tique.
— Porra, Maraz…
A lembrança veio com gosto amargo: o detetive havia parecido apressado e evasivo da última vez que se viram.
— Maraz disse que me ligaria quando tivesse algo concreto. Nunca mais ligou.
— Detalhes tĂ©cnicos do veĂculo indicam substituição do sistema duas semanas antes do acidente.
Daniella manteve os olhos fixos nas projeções.
— Investigações não somem por incompetência — disse em tom neutro.
— Você está insinuando que…
— Quinze minutos antes da colisão — Mitra interrompeu —, rota alterada pelo centro de controle.
Tyler empalideceu.
A memória se encaixou de repente: a ligação do pai naquela manhã. “Vou buscar a Lauren mais cedo hoje.”
— Quinze minutos… — repetiu, processando. — Alguém mudou a rota do meu pai?
— Justificativa oficial: manutenção de emergência na rota original — dados se reorganizaram no holograma. — Verificando registros de manutenção… Nenhuma manutenção realizada na data.
— Isso não faz sentido. — Tyler murmurou, como se as peças de um quebra-cabeças tivessem começado a se mover sozinhas. — Por que diabos mudaram a rota?
— O sistema de navegação foi substituĂdo duas semanas antes do acidente. Peça nova, sem histĂłrico de defeitos.
Os dedos de Daniella correram pela interface, procurando conexões.
— Meu pai nunca mencionou problema nenhum — Tyler murmurou, observando as informações se reorganizarem.
— Quem autorizou a substituição? — questionou Daniella.
— AutoFly, distrito 7 — Mitra respondeu. — Autorização para substituição… — A voz hesitou. — Arquivo corrompido.
— Isso é normal?
— Não. — Ela tocou o pulso. — Mitra, status do sistema?
— Continuando varredura…
As imagens holográficas congelaram por um instante.
— Detectada anomalia no processo de transmissão. — A voz virtual soou mais lenta que o normal, as imagens distorceram, seu brilho transparente oscilando.
O rosto de Daniella endureceu.
— Isso aconteceu porque ela está conectada no sistema da Lauren?
— Não. Mitra nunca teve problemas de transmissão. Especifique a anomalia.
— Presença não autori… — Mitra travou, sua matriz piscando em vermelho. — Recalculando rota de acesso. Tempo estimado: 47 minutos.
— Saia, Mitra! Cancele a invasão.
— Detecto múltiplos pontos de acesso não mapeados. Protocolos de segurança comprometidos. Recomendo… — O holograma piscou mais uma vez e desapareceu, deixando apenas o brilho residual de dados corrompidos no ar.
Daniella permaneceu imóvel por alguns segundos, olhando para o espaço onde as informações estavam. Tocou o pulso duas vezes, tentando reativar.
— Mitra? — perguntou, a voz mais tensa. — Mitra, responda.
SilĂŞncio.
— Imagino que nĂŁo deverĂamos esperar por isso. — Tyler questionou, cruzando os braços. — Essa maldita nĂŁo está pregando uma peça na gente?
— Não. — O olhar dela estreitou. — Mitra não é como as outras IAs. Algo está realmente acontecendo.
Uma explicação técnica, uma desculpa. Era isso que ele esperava. Em vez disso, ela admitiu diretamente: algo havia dado errado com a IA perfeita.
— Quem você acha que fez isso com sua irmã? — perguntou ela, com o instinto de sobrevivência desperto em alguém que entendia o que é estar sendo caçada.
— Eu não sei.
Recadinho da Autora:
Olá amigos,
Desculpem a demora. Este capĂtulo foi um pouco complicado de arrumar, principalmente porque veio cheio de informações importantes, nĂŁo Ă©?
O que acharam da Mitra? Digam-me: vocĂŞs sĂŁo contra IA, como o Tyler, ou a favor, como a Dani?
Quem quer uma Mitra e quem quer acabar com ela?
Podem falar sem medo.