O aroma do café recém preparado por Jasmin pairava no ar quando o relógio de Neo vibrou. Dr. Orion havia conseguido convencer a filha a acompanhá-lo à Londres. O cheiro dos grãos torrados misturava-se com as notas adocicadas dos croissants de chocolate recém-saÃdos do forno, criando aquela atmosfera acolhedora que havia se tornado parte de sua rotina matinal.
— Você anda muito ocupado, não é? — Jasmin indagou, vendo que ele não se lembrava mais do convite de algumas semanas atrás.
Um resmungo quase inaudÃvel escapou de Neo, sem dar atenção à pergunta. O barulho da máquina de café preencheu o ambiente enquanto Jasmin trabalhava com a precisão de sempre. Seus dedos ágeis dançavam sobre os controles cromados com uma familiaridade de anos de prática.
Era assim todas as manhãs: ela preparava o café dele exatamente como ele gostava —forte, com uma pitada de canela e sem açúcar. Um ritual que já durava alguns anos, desde que ele começou a trabalhar no Orion Star.
— Na próxima semana eu vou entrar de férias, outra pessoa vai preparar o seu café no meu lugar — ela continuou — Ganhei uma viagem da minha mãe. A empresa dela deu de presente pelos ótimos serviços prestados. É a primeira vez que eu vou sair da ilha para conhecer outro paÃs.
— Que bom! — ele desviou os olhos do relógio por dois breves segundos pausando-os no café. — Fico feliz por vocês.
O sorriso de Jasmin tremeu enquanto o observava pegar os copos e praticamente correr para a porta.
— Até amanhã — ela disse, esperando um aceno, um obrigado, alguma coisa. Qualquer coisa. Os olhos cor de mel dela buscaram os castanhos dele, como faziam toda manhã. Dessa vez, não havia trocado nem um olhar com a barista.
As mãos dela trabalhavam mecanicamente na próxima bebida, mas seus pensamentos vagaram para todas as outras manhãs em que eles conversavam, mesmo que brevemente, sobre o tempo, sobre o trabalho, sobre nada em particular. Ele tinha o costume de ser sucinto e direto. Hoje, porém, era como se ela fosse completamente invisÃvel.
Neo empurrou a porta de vidro, ainda distraÃdo com a mensagem que via em seu relógio. A urgência da notificação começava a acelerar seus passos. O sino da porta tilintou com sua saÃda apressada, e Jasmin permitiu que um suspiro escapasse, perdendo-se entre o murmúrio das conversas dos outros clientes e o chiado do vapor.
O ar fresco da manhã o cumprimentou. O sol já começava a aquecer as ruas do distrito financeiro, refletindo-se nas fachadas espelhadas dos arranha-céus que se erguiam como sentinelas de vidro e aço. Na calçada, ele ainda consultava o relógio. Tinha quinze minutos para chegar ao escritório antes da reunião com Lamar e Marissa. Atravessava as ruas apressado, os sapatos batendo contra o pavimento em um ritmo frenético, enquanto ele desviava de transeuntes com a destreza de quem conhecia bem aquele caminho.
Havia muito para atualizar Lamar sobre o projeto desde a ida dele para Pequim. Já tinha dado ao coordenador a boa notÃcia de que estaria a caminho para Londres com a filha do chefe o mais rápido possÃvel. Sabia que Lamar ficaria feliz em saber que aquela pirralha que sempre impedia de correr pelos corredores estava de volta, como uma mulher incrivelmente odiada por todos. Riu involuntariamente só de pensar na reação do amigo.
O relógio começou a vibrar insistentemente e o riso morreu em seus lábios. Os copos de café ameaçavam derramar. Depois de quase correr mais uma quadra, finalmente atendeu a ligação.
— Eu não sei o que está acontecendo com a aviação nessa ilha hoje — a voz aflita de Gregori dispensou qualquer cumprimento matinal. Neo podia ouvir o nervosismo em cada palavra, o tipo de tensão que fazia a voz do assistente executivo subir algumas oitavas. — O piloto e o mecânico alegam falha no sistema e se recusam a decolar nessas condições. — continuou, era fácil imaginar Gregori passando as mãos pelos cabelos grisalhos, um tique nervoso que conhecia bem. — Tentei alugar um jato e não tem nenhum disponÃvel. Nenhum! Em quinze anos, nunca vi algo assim.
— E os contatos da aviação executiva? Os freelancers que o departamento financeiro sempre usa?
— Já liguei para todos. Dois em manutenção, um com problema de licença, o último voando para o Japão. — a voz de Gregori ficou mais tensa. — Passei a madrugada ligando para três paÃses diferentes. Nada disponÃvel. — A voz rouca de cansaço quebrou ligeiramente. — Até tentei aquela empresa de voos executivos urbanos, mas eles não fazem voos internacionais.
Os passos diminuÃram enquanto processava a informação. Gregori não exagerava. Se ele havia passado a noite acordado, a situação era realmente crÃtica.
O centro financeiro de Isla del Canareos fervilhava com sua usual energia. Executivos apressados, drones de entrega zunindo entre os prédios, veÃculos autônomos deslizando silenciosamente pelas ruas e céu.
Três quarteirões de distância do café, Neo parou em frente ao edifÃcio do Orion Star. Sua fachada de vidro escurecido refletia as nuvens que passavam preguiçosamente pelo céu daquela manhã.
— Me dá dois minutos.
Neo colocou Gregori em espera. Tentou ligar para alguns contatos pessoais da aviação. Dois não atenderam. Um terceiro disse que todos os jatos estavam reservados para uma conferência internacional. Neo suspirou e voltou para Gregori.
— Que tal um voo suborbital? — sugeriu, tentando soar casual enquanto observava seu próprio reflexo distorcido na fachada do prédio.
Neo conseguiu imaginar o rosto de Gregori empalidecer no silêncio que durou apenas um segundo.
— Está louco!? — Gregori soltou uma risada nervosa, quase histérica. — Se eu colocar a filha do chefe em um voo comercial, minha cabeça rola, garoto.
A lembrança da última reunião voltou à mente, quando Dr. Orion mencionara casualmente a importância dessa viagem. Alguma coisa nos olhos do chefe sugeria uma expectativa que ia além dos negócios usuais. Como se essa viagem fosse pessoalmente significativa para ele, e Gregori deveria saber disso.
A cena se desenrolava em sua imaginação: ela descendo de um voo comercial, com a postura rÃgida igual à do pai, cercada de passageiros comuns, bagagem na esteira como qualquer pessoa. Para alguém acostumada com jatos particulares desde criança, seria uma humilhação pública.
— Gregori, escuta... — tentou pensar em algum argumento convincente, mas sabia que estava pedindo para o assistente executivo apostar a carreira dele. — Que horas ela precisa estar lá?
— Você não entende... ela... ela vai... — o som que Gregori emitiu em seguida era difÃcil de descrever. Era algo próximo a um violino desafinado, se violinos pudessem chorar.
Neo passou as mãos pelos cabelos, sentindo uma gota de suor escorrer por sua têmpora.
— Você está exagerando. Marca o voo comercial, eu resolvo com ela.
— Você acha que ela vai aceitar abrir mão do conforto de um jato supersônico e se misturar com a plebe em um voo suborbital?
— É bem mais rápido que o jato. Ela não vai ficar tanto tempo assim com nós reles mortais. Ela vai sobreviver, e ainda vai gostar da experiência da gravidade zero.
— Alex, você quer me ver desempregado, é isso?
— A vista da curvatura da Terra compensa qualquer desconforto. Tenho certeza que ela vai adorar. Eu assumo a responsabilidade. — Neo falou com uma confiança que não sentia. — Não precisa incomodar o Dr. Orion com isso.
— Você perdeu o juÃzo. Não chamam ela de "O Câncer do Star" à toa. Você cansou da vida?
— Relaxa, Gregori, é só um voo. Não é o fim do mundo.
Mas enquanto desligava, Neo sentiu o peso da situação. Ficou parado por alguns segundos, olhando para o relógio. Havia assumido a responsabilidade sem saber direito no que estava se metendo.
Ela não fazia ideia de quem ele era. Para ela, seria apenas mais um funcionário do pai tentando gerenciar sua agenda. E agora sua primeira impressão dele seria falhar em algo tão básico quanto organizar uma viagem. Respirou fundo e entrou no elevador. Teria que convencer alguém que um dia significou tudo para ele, e que agora o via como um completo estranho, a aceitar uma mudança de planos que pelos padrões dela devia parecer um insulto. Pelo menos teria algumas horas para descobrir como explicar por que ela teria que viajar como uma pessoa comum.
Recadinho da Autora:
Olá amigos,
Eu sei que os dois últimos capÃtulos terminaram na tensão e que esse capÃtulo quebrou um pouco isso, mas eu precisava mostrar o panorama do nosso querido nerd e onde ele está, porque nos próximos tudo vai começar a se conectar. Então, esse capÃtulo era para ser mais light mesmo.
Digam para mim: será que o Neo vai convencer a nossa princesa a andar junto da ralé ou será que teremos um problema aqui?