A névoa londrina estava mais densa naquela manhã de outono, envolvendo o Hotel Orion Star em um manto cinzento que espelhava perfeitamente o humor de seus ocupantes
A névoa londrina estava mais densa naquela manhã de outono, envolvendo o Hotel Orion Star em um manto cinzento que espelhava perfeitamente o humor de seus ocupantes. Uma semana havia se passado desde que chegaram, e o silêncio entre Daniella e Neo crescia tão denso quanto a bruma que cobria a cidade.
O hotel, uma imponente estrutura de vidro e aço que se erguia às margens do Tamisa, mantinha sua aparência majestosa mesmo sob o céu carregado. No saguão, os pilares de mármore negro com veios dourados sustentavam um teto abobadado onde constelações cuidadosamente pintadas dançavam sob a luz dos lustres de cristal. Era um lembrete constante da temática celestial da rede Orion, embora nos últimos dias o ambiente estivesse mais próximo do inferno do que do paraíso.
Daniella observava a movimentação do lobby através das câmeras de segurança em seu escritório. Estava imersa nas pesquisas sobre Lamar, seu amigo de infância, a pedido de seu pai.
— O sistema de Wuhan já está instalado — Brina, sua assistente, arrastou os dedos pelo holograma do seu relógio em direção ao relógio de Daniella. — Vai te dar acesso a todas as comunicações da rede. Só falta a matriz liberar completamente.
Daniella confirmou com um aceno distraído, os olhos fixos nas imagens das câmeras.
— Ainda bem que o conselho te designou como Diretora de Desenvolvimento Corporativo — a assistente continuou, organizando alguns arquivos holográficos. — Pelo menos agora você tem acesso direto à diretoria sem levantar suspeitas.
— É o cargo perfeito para o que precisamos fazer aqui — Daniella murmurou, mais para si mesma do que para Brina.
— A auditoria está indo bem, então? — Brina baixou a voz, aproximando-se. — Ninguém desconfiou de nada?
— Ninguém além de mim, meu pai e o conselho sabem o que realmente estou fazendo nesta filial. Vamos manter assim.
Os olhos de Daniella se estreitaram, mirando algo na tela holográfica.
— Doutora, mais alguma coisa em que posso ajudar?
— Não, está tudo ótimo — respondeu sem desviar os olhos.
Brina saiu quando percebeu que Daniella não estava disponível. O interesse dela se fixava numa figura que atravessava o saguão. Mesmo através das câmeras, a presença de Alex causava uma perturbação em seu peito. Os dedos contornavam os lábios com leveza, ansiando por uma sensação que mal compreendia.
Observou como ele passava a mão pelos cabelos sob estresse, como seu sorriso enrugava os cantos dos olhos — sinais de alguém que dormia pouco. A familiaridade desses gestos a incomodava mais do que gostaria de admitir.
Ele caminhava em direção aos elevadores quando Tyler apareceu vindo do corredor oposto. Os dois se encontraram no centro do lobby, e imediatamente fizeram um cumprimento elaborado — mãos no ar sincronizados, abaixando em seguida.
O movimento atravessou sua mente como um eco, arrancando palavras de um lugar que ela não sabia que existia. Por trás de uma parede rochosa, o som escapou por uma fissura.
"Segura essa irmão"
As duas crianças se encaravam, rindo, enquanto levantavam as mãos para espalmá-las no ar. No entanto, o gesto não parava aí — uma das mãos varria a outra no ar e, em seguida, ambos se abaixavam para repetir o toque na parte de baixo, completando o círculo do movimento. Neo sempre se abaixava primeiro, como se fosse parte de uma coreografia secreta que só ele e Tyler conheciam.
Neo?
Por que estava pensando em Neo?
Seus olhos voltaram para o holograma. Tyler e Alex já seguiam em direções opostas, a conversa terminada. Não sabia que Tyler fazia aquele cumprimento com outras pessoas além de Neo. Pelo visto, Alex também era próximo o suficiente dele para conhecer o gesto.
Uma dor aguda na cabeça a fez fechar os olhos; uma montanha de bigornas parecia ter acabado de cair no interior de sua mente.
— Mitra! Acho que preciso de um checkup — ela massageou as têmporas.
— Não vejo nada de errado com o seu corpo. Os dados transmitidos estão normais.
— Tenho ouvido vozes de crianças na minha cabeça. No outro dia, quando estava no escritório do meu pai, vi as minhas mãos cheias de sangue. E agora tem um peso enorme me causando enxaqueca. Sinto que tem algo de errado com a minha mente. Você pode verificar meus sinais vitais no meu chip neural?
— Não tem nada de errado com o seu chip. Seus sinais estão normais. Mas posso fazer uma varredura completa se você entrar em imersão.
Daniella pegou o dispositivo de interface cerebral e deitou-se na chaise do seu escritório, e em instantes estava no mundo virtual.
Quando abriu os olhos, estava deitada em um ambiente silencioso. O ar era tão puro que quase doía respirá-lo. O chão cristalino refletia tons azulados, e estruturas flutuantes — mesas, painéis e cilindros — projetavam-se do nada, exibindo informações que se moviam como constelações. Linhas e superfícies brancas emanavam luz própria, criando uma atmosfera quase divina. Tudo ali lembrava um hospital, mas com a estética impecável de um laboratório; cada detalhe fora desenhado para acalmar.
Ao seu lado, Mitra materializou-se em forma humana, vestida com um uniforme perolado de textura líquida, o olhar sereno e analítico.
— O que exatamente você está sentindo? — perguntou, a voz soando mais natural do que o normal.
Acima delas, hologramas representavam conexões neurais, uma projeção digital da mente de Daniella.
— São como memórias. Só que eu não me lembro de nenhuma delas. A última... — ela pensou em como formular — Eu acho que era... do Neo? Ele era um amigo de infância, e... a forma como ele cumprimentava Tyler, como Alex acabou de fazer. Mas não me lembro de muita coisa sobre ele, além do motivo do nosso afastamento e de que era uma pessoa querida. Na verdade, não lembrava desse cumprimento.
Mitra caminhou enquanto Daniella falava, guiando-a afora do ambiente clínico para uma paisagem natural. A trilha de terra dura era ladeada de cenários distintos; praias de areia dourada em um verão quente, calçadas de concreto rachado sob um céu carregado de nuvens cinzentas, desertos rochosos em uma noite estrelada, cheiro de ácido misturado ao frango szechuan. Memórias de Daniella, reconstruídas com dados sensoriais de momentos distintos de sua vida.
— De fato, temos uma anomalia aqui. — Mitra respondeu, parando diante de algo que parecia bizarro demais mesmo naquele ambiente surreal.
Um pedaço da trilha fora obstruído abruptamente por uma montanha escura, cortada por uma única fissura. O ambiente, etéreo e controlado até então, havia sido interrompido por uma descontinuidade instintiva, quase primitiva. A mente de Daniella lutava para esconder o que havia por trás daquela rocha.
Daniella se aproximou. A fenda pulsava. De perto, o calor que saía da rocha vinha de dentro, respirando. Linhas de luz corriam sob a superfície, lembrando veias em movimento. Da rachadura saíam fios de luz que dançavam no ar.
— O que diabos é isso e porque está na minha cabeça?
Um dos fios roçou seu braço, e ela foi abruptamente sugada para dentro da fissura. Fragmentos de um quarto se formaram à sua frente conforme ela desacelerava. Algo macio a apoiou, e a visão clareou.
Passou a mão pelo corpo. Inteira. Observou ao redor. Mitra havia sumido. Parecia estar de volta no mundo real, mas em outro lugar. Um quarto na OPM. Uma jovem de cabelos raspados nas laterais e um piercing no nariz a olhava de pé na frente da porta.
— Então você fez uma aula com a Selene e já pensa que é mestre em sedução? — Daniella riu, debochada — Nunca vi ninguém com a sua autoestima. — As palavras saíram de sua boca sem que ela tivesse a intenção de proferir.
690 soltou um riso curto e deixou o quadril balançar a cada passo até parar diante da cama com uma das mãos na cintura.
— Se eu conseguir seduzir a Rainha de Gelo, ninguém mais me detém. Selene vai ter que me aprovar.
O sorriso de Daniella curvou-se lentamente.
— Pois vamos lá. Mostre-me do que é capaz.
— Antes, pense nos benefícios — 690 murmurou, sentando-se ao lado dela. As mãos roçaram a pele de Daniella. — O garoto da sua infância... Aquele que congelou o seu coração... Tá lembrada? — aproximou-se, o hálito quente roçando o pescoço. — Eu posso te dar o que ele nunca conseguiu.
— É mesmo? — Daniella fechou os olhos, inclinando-se à mulher. — E o que exatamente você acha que pode me dar?
690 deslizou atrás dela, prendendo os cabelos de Daniella no alto. As pontas dos dedos tocaram os ombros, traçando círculos lentos.
— Primeiro, vou te fazer relaxar. Você é tensa demais. Depois... — a voz saiu mais baixa — ...vai ser o seu corpo pedindo pela melhor noite da sua vida.
— E você sabe do que eu gosto? — perguntou Daniella, abrindo um olho com um sorriso preguiçoso.
— Tá funcionando?
— Não.
690 riu, o som mais nervoso do que gostaria.
— Calma, deixa eu tentar de novo... — endireitou a postura, respirando fundo antes de encarar de novo os lábios carnudos virados por cima do ombro à sua frente.
Daniella girou o corpo com a leveza de quem domina o território. Avançou devagar, engatinhando até que o ar entre as duas ficasse rarefeito.
— Você não precisa de esforço. Só olhe nos olhos, mantenha o controle. A inocente, a perigosa... escolha a máscara, mas nunca desvie da presa.
690 deixou o corpo cair na cama com a aproximação; o coração disparava.
— Se ela recuar, — Daniella soltou o cabelo, espalhando aroma de rosas — você recalcula a rota. — Ela se inclinou até que os lábios quase tocassem o ouvido da outra. — E então, ataca.
O corpo de Daniella colou ao dela; o sussurro veio como um arrepio.
— Eu sei que você me quer.
— Vo-você... — 690 fechou os olhos, o peito subindo em descompasso.
Daniella recuou, ajeitando os cabelos de volta.
— E então? Gostou? Treina com a Tassi — disse com um meio sorriso. — Ela não vai perceber de cara.
— Hm... sim... obrigada. — 690 engoliu em seco, tentando disfarçar o rubor. — Essa sua técnica é eficiente mesmo. Fascinante.
— Sempre funciona. Com homens é ainda melhor. São mais fáceis de iludir — respondeu, ajustando a postura.
690 soltou uma risada contida.
— E com mulheres?
Daniella olhou por cima do ombro, o sorriso retornando.
— Testei algumas vezes. Nunca falhou.
— Eu acredito. — 690 murmurou.
O som de alguém batendo na porta as trouxe de volta da conversa leve.
— Meninas, Selene está chamando — era a voz de Liu. Daniella foi puxada por algo invisível e caiu em frente a parede rochosa, como se tivesse sido expulsa do lugar. A respiração ofegante a fez esquecer que ainda estava dentro de uma simulação.
— Que diabos! — ela disse, apoiando as mãos no chão para se levantar. — Mitra, quem era? Aquela mulher...
— Não sei do que está falando.
— Aquela mulher no quarto comigo. Ouvi a voz de Liu também. O que é aquilo? — ela apontou para os fios luminosos.
— Não tenho acesso a esses dados.
— Você não está vendo aquilo ali? — ela apontou mais uma vez
— Não há dados disponíveis para acesso além desse ponto.
Daniella se aproximou e ergueu a mão para tocar na rocha. O ar à volta se contraiu. Quando seus dedos tocaram a pedra, o chão vibrou. A projeção da IA se distorceu.
O timbre habitual de Mitra — sempre preciso, quase humano — foi substituído por uma cadência sem alma:
— Sistema de proteção ativado.
Um clarão atravessou o espaço. A força a lançou para trás — o corpo pesado foi arremessado para longe, o ar arrancado dos pulmões. O impacto ardeu na pele quando ela caiu ao que parecia metros dali.
— Mitra! — o grito saiu trincado. O corpo queimava. — O que está acontecendo?
O espaço inteiro tremeu com um ruído agudo. Daniella tentou apoiar-se, mas o chão cedeu como fluido fugindo das mãos.
— Acesso negado.
— Quem é o responsável? — a pergunta saiu em meio ao ofegar, o rosto iluminado pelo reflexo das linhas douradas que se agitavam no ar.
A figura de Mitra se estabilizou. Os olhos, agora sem expressão, refletiam a luz do ambiente como espelhos.
— Daniella Del Rion Orion.
O som do nome reverberou nas paredes invisíveis do espaço.
O ar ficou mais denso, e ela percebeu o coração acelerando.
— Eu sou Daniella Del Rion Orion! — gritou, e sua voz quebrou a estrutura do ambiente, que respondeu com rachaduras de luz se espalhando pelo céu digital.
A resposta veio fria, monocórdica:
— Acesso negado. — A voz mecânica ecoou de múltiplas direções.
— Negado por quem?!
Os olhos de Mitra se acenderam em dourado.
— Daniella Del Rion Orion.
— Que merda você está falando?
Ela sentiu o mundo perder definição ao redor. O ar cheirava a ozônio. As bordas de tudo começaram a se dissolver. E, por um instante, Daniella teve a sensação de que não estava sendo expulsa — estava sendo apagada.
E, por um instante, Daniella teve a sensação de que não estava sendo expulsa — estava sendo apagada
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Recadinho da Autora:
Hmm... Daniella, o que você andou fazendo com a sua cabecinha, minha jovem?
Alguém quer arriscar umas hipóteses?
PS1: Vou aproveitar para avisar que os próximos capítulos sairão primeiro para os apoiadores e, quando o seguinte sair, eles passarão a ser liberados no gratuito, ok?
PS2: Apoiadores terão capítulos extras bônus. Mas fiquem atentos que eu vou adicionar na ordem cronológica.
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