Aquila queria se mexer, mas o corpo não obedecia. A dor, antes difusa, agora se concentrava em suas mãos. Aos poucos o mundo retornava: formas, sombras, o ar pesado do salão. Através da névoa da semiconsciência, ela captou o eco metálico de passos descendo escadas. Vozes se aproximavam, as mesmas do grupo que notou na sua chegada.
— Isso é fascinante — disse o homem da cicatriz na sobrancelha ao surgir na superfÃcie, os olhos avaliando as pessoas na fila.
Xiao sorriu, lábios vermelhos recortando a face.
— Tivemos alguns contratempos, mas conseguimos.
— Por que os olhos deles ficam brancos? — o homem perguntou, mantendo as mãos cuidadosamente entrelaçadas atrás do corpo enquanto se inclinava para observar. — Eles ainda conseguem me ver através disso?
Xiao tocou a pálpebra com a ponta dos dedos, um gesto calmo de quem já viu o processo muitas vezes.
— É o fechamento da submissão. Sem reflexo pupilar, sem resistência. A pelÃcula que se forma mantém o cérebro quieto. — Ela deixou um sorriso satisfeito escapar. — Silêncio total. Nada de luta interna. Eles só obedecem.
— E dói? — perguntou o homem, com um leve tom de curiosidade mórbida.
— No inÃcio — Xiao deu de ombros. — Mas depois param de sentir qualquer coisa.
Ele virou-se para a mulher e sorriu.
— Quer dizer que eu posso mesmo fazer o que eu quiser?
Xiao estendeu a mão.
— Só não danifique a mercadoria.
O homem deixou o sorriso expandir em seus lábios enquanto levantava a perna e acertava um chute nas costas de uma das senhoras da fila. A mulher caiu no chão, apática, e com dificuldade se levantou e voltou para seu lugar.
— Você me ouve? — sussurrou no ouvido de outra pessoa. — Isso promete.
Liu observava a cena pelas lentes de Aquila do apartamento em frente à instalação, acompanhando cada variação nos sinais biométricos que flutuavam diante dele. Os hologramas piscaram com alterações nos dados vitais de Aquila, aos poucos se normalizando. Como esperado, o chip neural havia ativado os protocolos de defesa. No corpo de Aquila, as unidades invasoras migravam para as extremidades, longe dos centros vitais.
— Os nanorrobôs estão fazendo seu trabalho — Liu murmurou, aliviado.
Os dedos dançaram pelo holograma retrocedendo as imagens filmadas por ela desde que chegou. Verificou as caracterÃsticas dos olhos brancos que havia capturado no momento que ela encarou o homem ao lado.
— Aquila — a voz de dele soou baixa no comunicador. — Você vai conseguir se mexer em breve. Estou alterando suas lentes para parecer como os olhos dos outros. — Liu murmurou. — Aperte o polegar no indicador, preciso saber se me escuta. Fica quieta, tem movimento aÃ. Controla a respiração, seu coração está acelerado demais.
O homem da cicatriz na sobrancelha se aproximou de Aquila verificando o relógio. Ajustou os punhos da camisa como quem se prepara para começar o expediente. Seus olhos percorreram o corpo dela com a mesma expressão que usaria para examinar um cardápio. Quando passou as mãos pelos cabelos dela, suspirou baixo, como se finalmente pudesse relaxar após um longo dia.
— Posso levar essa? — Ergueu o queixo de Aquila com dois dedos. — Quero ver se ela ainda reage quando eu falar com ela. Gosto mais dessas exóticas, bonitas e imundas.
Xiao mantinha-se a uma distância calculada. Era parte do processo — o cliente precisava se convencer da qualidade do produto. Revirou os olhos, pensando que os ocidentais continuavam desprezÃveis. Mas não era o tipo de pessoa que criticava de onde vinha o dinheiro. Balançou os dedos no ar na direção da entrada.
— Ao final do corredor tem um almoxarifado. Quinze minutos. Depois vem os testes de campo.
Enquanto Xiao ainda gesticulava, Aquila conseguiu tocar o polegar no indicador, ao mesmo tempo em que o homem a agarrou pelos cabelos. Sentiu o corpo lento e pesado ao ser arrastada para fora das fileiras. Sabia que não poderia contar com sua agilidade para fugir.
Com a cabeça abaixada, ainda sentindo o aperto do homem em seus cabelos, ela saiu do salão e se viu no corredor. A ausência de outras pessoas indicava que não era um ambiente de comum acesso.
O homem abriu a porta do almoxarifado e a empurrou com violência para dentro. Aquila varreu o local com os olhos. Prateleiras modulares subiam até o teto, repletas de caixas padronizadas com códigos brilhando nas laterais. O cheiro neutro do ar filtrado não mascarava totalmente o odor metálico dos materiais estocados. Localizou o que precisava: ferramentas de manutenção apoiadas contra a parede.
— Agora sim, só nós dois. — O homem disse, um tom de satisfação depravada na voz. Algo pesado cortou o ar e o atingiu na cabeça, fazendo-o cambalear. Antes que pudesse processar o ocorrido, uma cotovelada bateu em sua têmpora.
O homem desabou. Aquila respirou fundo três vezes. Só então percebeu que ainda segurava a ferramenta de torque com força demais. Relaxou os dedos deliberadamente, abaixou-se para confirmar que ele havia realmente perdido os sentidos, e então sentiu uma náusea abrupta.
— Você está bem? — Liu perguntou no comunicador ao ouvir o som de Aquila vomitando.
— Não. Parece que eu acabei de colocar todos os meus órgãos para fora, e minha mão dói como o inferno. Mas, vamos sair daqui primeiro.
— Certo. Pegue aquelas roupas, eu vou alterar as suas caracterÃsticas faciais na máscara para que você possa sair pelos sensores sem alertá-los.
Aquila pôs-se em ação imediatamente. Tirou as roupas de mendigo e vestiu uma das roupas de servente disponÃveis. Quando abriu a porta, as lentes já mostravam a rota de fuga que Liu havia programado.
Os sensores por onde passou exibiram no holograma os dados de Ming quando escanearam a sua face. Não teve problemas em atravessá-los. Quando por fim chegou na saÃda lateral do prédio, sentiu o vento quente lhe cumprimentando o rosto.
— Van cinza mais escura, segunda à esquerda. Porta destrancada, sistema limpo. Vai.
Ela andou despreocupadamente, sem chamar muita atenção. Na metade do caminho, uma sirene começou a soar, fazendo-a acelerar o passo.
O carro alçou voo no mesmo momento em que seguranças armados irromperam por todas as portas do prédio, mas ela já estava completamente fora do alcance deles.
— Que diabos eles estão fazendo naquele lugar?
— Acredito que nada de bom. Verifique o que há dentro dessa van, veja se tem algo que possa ajudá-los a te rastrear.
Aquila se levantou e foi para área da carga. Desativou duas câmeras e começou a procurar por sensores.
— Equipamento médico… substâncias lÃquidas, — ela focou no rótulo. — XD-4566, lote completo. Que merda é essa? — Seus olhos escaneavam tudo, enviando para Liu as informações presentes nos cartuchos.
— Não sei. Você tá limpa — pausou brevemente. — Indo para a base de Chengde. Tassi já foi avisada sobre a carga.
— Certo.
— Como está a sua mão?
— Só o dedo mindinho da mão esquerda dói. Está difÃcil mexê-lo.
— O que quer que seja a que você foi exposta, eu tive que concentrar aÃ, longe do sistema nervoso. A Dra. Tassi vai saber como tirar isso daÃ. — pausou. — Se a Mitra estivesse aqui, talvez conseguisse uma solução melhor. Vamos torcer para que não precise amputar.
— Maravilha! — Aquila respondeu em coreano, frustrada. Encostou a cabeça na parede metálica da van e fechou os olhos.
Recadinho da Autora:
Olá amigos,
O que aprendemos nesse capÃtulo? A menos que você seja Daniella Del Rion Orion, não brinque com a senhora Xiao. Você pode acabar perdendo um dedo ou, pior, a vida. Para quem está sentindo falta da nossa herdeira e da nossa IA, elas darão o ar da graça no próximo capÃtulo.
Agora, a pergunta que não quer calar: alguém aà gostaria de trabalhar para a senhora Xiao? Fiquei sabendo que ela está selecionando currÃculos.