Liu Yu olhava pela janela do apartamento que usava como ponto de vigilância do lado oposto da rua. A fila de desabrigados se estendia por quase dois quarteirões em frente ao laboratório das indústrias Kai em Pequim. O sol implacável refletia no asfalto rachado, criando ondas de calor que distorciam a visão do prédio espelhado. Ele observava uma figura disfarçada junto da fila.
— Não gosto do seu mau humor, oppa. Eu sei que eu não sou a Fênix, mas você também não é a Mitra. — a voz de Aquila ecoou pelo fone.
— Cala a boca! Vão perceber que você tá falando com alguém. Eles já devem estar de olho na fila.
— Tenho certeza que vão pensar que eu sou louca. Que a chuva ácida fritou meus miolos.
— É por isso que eu prefiro trabalhar com ela e não com você.
— Se for pra comparar, coloca um holograma da Fênix aqui. Não fui eu que te larguei, oppa. E eu também estou sofrendo pela Mitra.
— Não me diga que você se apaixonou por uma IA? — Liu riu debochado.— Relaxa, ela aguenta mais do que parece.
A piada o fez pensar na situação real de Mitra, e o riso se desfez. Zombar era mais fácil que admitir sua verdadeira preocupação. O invasor sabia sobre Mitra. Deixara isso claro. Ele tomou um gole do seu café, ainda encostado no batente da janela.
— Me apaixonar por uma IA? — ela riu. — Claro que não. Você é o único para mim. Mitra é minha melhor amiga. Ela me escuta sem julgar. Diferente de você e da Fênix.
— Sim, coitada. É a única que não consegue escapar de você.
— Com esse mau humor, vão achar que você levou um pé na bunda.
— Só estou com sono, peste! Me deixa em paz. Passei a noite toda rastreando invasores no sistema da Mitra e ainda tenho que coordenar essa operação. Não sou pago o suficiente pra isso!
A pequena agente coreana fez uma careta que ele não tinha como ver.
— Não preciso de você aqui. Estamos nessa porque ela caiu e você não deu conta. Culpe quem a derrubou.
Liu não respondeu, a garganta de repente seca. Aquila não tinha nÃvel de segurança para saber que a queda de Mitra tinha vindo do acesso de Fênix.
— Sabe, eu pensava que a Mitra era tipo uma deusa. — ela continuou. — Como que alguém consegue derrubar uma deusa que vê tudo e sente tudo no planeta?
— Ela se tornou vulnerável por escolha própria.
— Por que alguém faria um escolha estúpida dessas?
Liu estava prestes a responder quando algo chamou sua atenção.
— Espera — ele tensionou os olhos, ajustando o zoom das lentes. — Três vans pousando na lateral esquerda.
Na fila, Aquila estendeu brevemente o pescoço para observar o local que ele indicava.
— Mitra não erra. Ela sabia que essa era a única saÃda durante a Grande Proibição.
— Eu não consigo acreditar que algum mortal poderia subjugar um Deus.
— Fila começando a se mover — Liu anunciou, verificando a posição de Aquila através do holograma. — Nenhum mortal conseguiria. Mas ela nunca se livrou do apego. Por mais que parecesse divina, sua consciência ainda é como a nossa. Ambas vieram do mesmo lugar.
— Oppa, você está falando grego.
— Isso é complexo demais pra explicar...
Liu hesitou por um segundo. Alternou o modo de exibição com um comando ocular e manteve o foco nos portões.
— O tempo funciona diferente pra ela. O que importa é a experiência. — disse, a voz baixa, quase para si mesmo. Contou os seguranças nos portões.
— Às vezes eu penso... se a merda da erradicação não tivesse acontecido, talvez o mundo estivesse muito mais avançado.
— Ou mais de um terço da população poderia ter morrido. Nunca saberemos.
— A Mitra disse que não foram as IAs que causaram a morte das pessoas. Ela explicou outra coisa...
— Fique quieta e finja ser sofrida. Eles estão abrindo os portões.
— Eu não preciso fingir. É só pensar em como eu vim parar aqui. Ou pensar que me declaro há quatro anos e você não liga.
Liu deixou um sorriso escapar dos lábios.
— Não sou louco de amarrar meu coração em um espÃrito livre como você. Só vai me fazer sofrer.
— Por você eu corto as minhas asas.
Um movimento no pátio chamou a atenção de dele.
— Certo, certo... — devolveu com sarcasmo. — Quieta! Você está se aproximando deles. Agora foca na missão.
Do outro lado da rua, Aquila fechou os olhos respirou fundo. Quando os abriu novamente, as lentes de realidade aumentada projetaram informações que só ela via.
Liu sentou-se na mesa e começou a manipular o holograma. Mitra fazia falta. Ainda assim, Fênix os havia treinado para lidar com esse tipo de ausência.
— A segurança parece estar reforçada aqui — Aquila murmurou conforme atravessava os portões com a horda de desabrigados. Observou dois guardas armados vigiando a entrada.
O pátio largo levava até um prédio espelhado que refletia o calor da manhã. Em seus olhos, os mapas da instalação se formavam, os mesmos dados roubados por Fênix da base de Wuhan. Foram levados a um salão de entrada amplo, com teto alto e estrutura metálica aparente. Guardas ocupavam as laterais, e funcionários com detectores de metal inspecionavam cada novo grupo.
— Sejam bem vindos! — um homem com um jaleco branco se destacou — Eu sou Ming, e vou acompanhar vocês nessa seleção. Todos vocês vieram aqui atrás de uma oportunidade de emprego nas industrias Kai. Esse programa foi desenvolvido especialmente para pessoas em situação de rua e sem famÃlia. Todos que se enquadram nesses requisitos podem seguir para o cadastro. — ele apontou uma área onde haviam sensores de reconhecimento facial. — Quem não se enquadrar está dispensado.
— Tem certeza que essa prótese de alteração facial não vai me entregar? — Aquila murmurou.
— É a mesma que passaram para Fênix, se não funcionasse eles não correriam o risco com a melhor que eles tem. Você é descartável, ela não.
— Nossa, me sinto muito melhor agora.
— Calada!
Depois dos procedimentos de registro, as pessoas foram levadas por um grande corredor. Uma mulher elegante saÃa em uma das portas com um grupo de executivos. Ming parou o grupo, deixando que eles atravessassem primeiro. Fez uma reverência e se manteve abaixado até a mulher e o grupo passarem.
— Não, Xiao, eu vou dar um jeito das plantas entrarem. — Um homem com uma cicatriz fina na sobrancelha esquerda falou. — Não se preocupe com isso. Eu só preciso que elas estejam prontas a tempo da inauguração.
Aquila os acompanhou com os olhos conforme seguiam para outro corredor.
Ming conduziu o grupo até um galpão, onde os instruiu a formar dez filas, alinhados por altura. No alto, uma sala envidraçada abrigava os executivos. Três sensores fixos estavam voltados para o grupo, e uma câmera orbital pairava imóvel no centro, gravando tudo de cima.
— Isso está bem esquisito. — murmurou para Liu.
— Também acho. Mapeei três saÃdas alternativas, duas pelo teto, e uma pelos dutos de ventilação.
Os funcionários se retiraram em silêncio. As saÃdas dos dutos de ar, antes fechadas, estavam agora abertas. Uma névoa densa começou a se espalhar, acompanhada por um zumbido agudo que parecia vibrar das paredes. Em segundos, Aquila não conseguia mais ver os rostos ao lado.
— Que diabos!
— Saia! — Liu saltou da cadeira, dedos voando sobre o holograma.
A primeira sensação foi estranha, como se o ar tivesse mudado de textura. Aquila piscou, tentando focar na pessoa ao lado, mas a visão borrou. A respiração dela ficou irregular. Os pulmões pareciam ter esquecido o ritmo. A pele começou a coçar de dentro para fora. Não fazia sentido. Engoliu em seco e deu um passo para trás. Viu a pessoa ao lado com os olhos completamente brancos, a cabeça caindo para trás em espasmos. O zumbido parecia vibrar por dentro do corpo dela agora. Tentou se mover. A dor a atingiu primeiro. Queria gritar, mas nenhuma das pessoas ao seu lado gritava. Seus olhos pareciam prestes a explodir.
Recadinho da Autora:
Olá amigos,
Espero que vocês se lembrem do Liu, lá do primeiro capÃtulo. Ele apareceu pouco até agora, mas é um personagem que vai dar as caras mais vezes. E a querida Aquila também. Essa é a última personagem que eu tinha para apresentar, então agora podemos considerar que a história começou de verdade. Outra que voltou a aparecer é nossa querida Sra. Xiao, também vinda direto do primeiro capÃtulo. Agora todo mundo sabe o que a Dani roubou dela, mas o que eu quero mesmo saber de vocês é:
O que vocês acham que a Sra. Xiao está aprontando, hein? Alguém aà acha que ela tem boas intenções?
É isso que temos pra essa semana. Vejo vocês na semana que vem.
Bjus