Tyler permaneceu no corredor, as costas contra a parede fria. O som das vozes subindo lembrava trovões ainda distantes; cada acusação vinha como um relâmpago anunciando que o céu logo se romperia. Os gritos ecoavam através da porta, alternando entre os dois. A voz de Daniella, que costumava ser controlada, subia furiosa, enquanto Neo - sempre tão racional - perdia a compostura.
As muralhas que ela erguera durante todo o seu treinamento na ordem ruÃram em segundos, e os estilhaços ricocheteavam em cada palavra cuspida, se sobrepondo numa cacofonia de acusações e defesas, até que a comunicação de Mitra em seu fone de ouvido provocou um silêncio súbito de Daniella, enquanto seu amigo continuava aos gritos solitários.
— Análise completa — A voz de Mitra soou. — O voo suborbital VSO-472 não passou em quatro verificações de segurança. O voo foi suspenso, mas consegui lugares vagos no VSO-477 que passou na verificação sem nenhum indÃcio de manipulação detectado. A tripulação tem histórico limpo. Limpei todos os rastros de alterações. Para os registros nos sistemas, será como se o voo de vocês sempre tivesse sido o VSO-477.
Na mente de Daniella os fatos se conectavam. Aquilo não era uma simples coincidência.
— Quanto ao jato exclusivo do Orion Star, — continuou Mitra — os relatórios técnicos indicam uma falha no sistema de navegação. — Fez uma pausa antes de continuar. — No entanto, detectei um padrão incomum em toda a ilha. Todos os jatos particulares disponÃveis para aluguel foram reservados nas últimas 48 horas.
Os dentes de Daniella pressionaram o lábio até deixar uma marca pálida, enquanto o olhar dela se fixava em nada. A mente trabalhava em silêncio, juntando peças que não queria ver encaixadas. O mesmo problema que causou o acidente de Lauren. Alguém estava mirando em um deles. Ela precisava descobir em quem e por quê.
Tyler tocou o fone.
— Mitra, identifique quem fez as reservas.
— Múltiplos usuários, sem conexão aparente.
A comunicação cessou no exato momento em que a voz de Neo cortou o ar:
— Sua mãe se envergonharia da megera que você virou.
Tyler, temendo pela vida do amigo, escancarou a porta a tempo de ver um livro fÃsico, uma relÃquia, passar zunindo com precisão militar pela cabeça de Neo. Dois centÃmetros não eram um erro. Neo congelou. Tocou o rosto, verificando se ainda estava inteiro.
Daniella guardava essas preciosidades por todos os cômodos. Dr. Orion colecionava objetos antigos: telefones, celulares, aparelhos obsoletos. A revolução dos comunicadores holográficos transformara tudo em relÃquia. Daniella herdara do pai esse traço; a diferença era sua predileção pelos livros. Volumes que deviam custar uma fortuna espalhavam-se pelo apartamento. Ela precisava estar transtornada para arremessar um deles daquela forma.
Daniella voltou-se para Tyler, contendo sua fúria. Visualizara todas as formas possÃveis de quebrar, um por um, cada osso do corpo daquele maldito nerd que seu pai contratara.
— Senhorita, por favor — Tyler implorou, tentando evitar um homicÃdio. — Ele não sabe o que fala. Perdoe sua ignorância.
Ela saiu porta afora, bufando. Seu autocontrole, cultivado por anos, acabara de desmoronar. Estava determinada a fazer picadinho daquela erva daninha que se alojara no coração de seu pai. As malas ficaram para trás, e junto delas um silêncio denso que se instalou entre os dois.
Tyler viu Neo percebendo a loucura que cometera conforme a sua feição mudava de raiva para horror e choque. O amigo desabou no sofá, todo o corpo acusando cada erro. Os dedos arrastaram-se pelos cabelos até esconder o rosto, tentando apagar as palavras que já não podia tomar de volta.
— O que deu em você? Ela não sabe quem você é. Acha que pode arriscar seu emprego assim? — Tyler questionou, levantando o amigo pelo braço. — Vamos, temos um voo para embarcar.
— Quem é essa mulher, Tyler? Ela não é a Dani.
— Cara, para com isso. Desapega do passado. Você precisa esquecer; aquela garota não existe mais. Deixa ir.
Neo suspirou, sentindo a cabeça latejar. Seguiu Tyler, que carregava as malas de Daniella para dentro do carro. Ela já os aguardava no banco de trás com seus óculos escuros e fone de ouvido. Partiram em uma viagem silenciosa até o naveporto.
O apito de embarque trouxe de volta uma lembrança incômoda: a noite da formatura, quando fugira sem avisar ninguém. Pegara o primeiro voo disponÃvel, só para se afastar da ilha — Londres, por acaso. Só descobriu que o pai a rastreara quando a equipe do Orion Star exigiu confirmar sua identidade. Naquele dia, Dr. Orion percebeu que a expansão dos hotéis pelo mundo era também uma forma de manter a filha sempre em casa, mesmo distante.
Todos os acontecimentos inesperados daquela fatÃdica noite em que se formou só serviram para fazê-la se sentir vazia e iludida. A sensação da gravidade zero, experimentada pela primeira vez, a fez perceber quanto era pequena diante do cosmos.
A cabine brilhava com vidros panorâmicos pensados para exibir a vista do planeta, aproveitando ao máximo o breve tempo no limite da atmosfera. Para muitos, aquilo proporcionava uma experiência incrÃvel, aventureira; mas para ela, guardava memórias de insuficiência, dando a sensação de que nada no mundo importava e de que ela não era importante para ninguém. Nem para ele, que estava passando a noite da formatura com Lauren.
“Sua mãe teria vergonha da megera que você se tornou.†a frase ecoou em sua mente.
Por mais que acreditasse que Alex não soubesse nada sobre sua mãe, reconhecia que ele estava certo. Sua mãe sempre fora amorosa, gentil e doce; ela teria vergonha de ter uma filha capaz de matar. No dia em que tirou sua primeira vida, ela soube disso.
Empurrou o pensamento para longe. Alex tinha o mesmo olhar sonhador de Neo. Os dois acreditavam em um mundo repleto de pessoas boas, como sua mãe havia sido. Sabia, porém, que gente assim era rara; o mundo se mostrava tudo menos gentil.
Os assentos, afastados das paredes, deixavam um espaço livre para que os passageiros flutuassem. Dispostos em semicÃrculo, permitiam que todos se encarassem enquanto se divertiam durante a microgravidade.
Neo contemplava Daniella do assento próximo, questionando-se se ela aproveitaria a viagem ou se suas palavras haviam arruinado tudo. Herdeiros não costumavam abrir mão do conforto, nem para esse tipo de experiência. Através das janelas panorâmicas de vidro reforçado, a curvatura da Terra se revelava. Ele acreditava que aquele seria um momento inesquecÃvel para ela; o semblante, no entanto, permanecia inalterado.
Observava, esperando que sua amiga de infância esboçasse algum sorriso pela experiência. Os passageiros soltaram os cintos quando a tripulação informou que era seguro. Alguns se divertiam; ela, no entanto, mantinha os olhos fixos no cenário espacial. Os cachos castanhos se ergueram no ar, e o rosto permaneceu imóvel, ancorado em pensamentos mais pesados que a gravidade perdida.
Hipnotizado, ele admirava sua beleza, sonhando com a menina que ela fora um dia, deslumbrado com a mulher em que se tornara. Não conseguia desviar o olhar de seus lábios.
Os dedos cerraram o braço da poltrona, na esperança de que aquele gesto pudesse impedir o impulso de estender a mão e desfazer a distância entre eles. A mulher diante dele já não guardava nada da pessoa que amara. Uma pontada de dor atravessou seu peito ao pensar em tudo que ela precisou enfrentar para se tornar tão fria, tão autoritária.
Suspirou e encostou a cabeça no banco, estudando os seus traços. O contorno do rosto dela o fascinava desde criança.
Daniella sentiu-se observada. Desviou o olhar do planeta e encontrou os olhos de seu admirador. Ambos se mantiveram em silêncio, sustentando uma troca de olhares que trazia conforto.
Lá no fundo da sua mente, arranhando numa parede escura, um voz infantil reverberou: “Vamos ver quem pisca primeiroâ€
E, naquele momento, nem ele nem ela se sentiam sozinhos.
Recadinho da Autora:
Parece que existe alguém no mundo capaz de fazer a nossa espiãzinha perder o controle, não é mesmo?
Nem o pai dela conseguiu tal feito.
Mas precisamos considerar que o garoto do Dr. Orion está numa zona perigosa. Ninguém pode negar, porém, que o querido tem coragem.
Será que ele amansa a fera? Ou será que ela vai fazer picadinho de nerd à la paysanne?