Assim que Daniella acordou, Dr. Orion a levou para casa. Durante todo o trajeto, insistiu que ela ficasse no hotel com ele. Culpa e arrependimento apertavam seu peito por ter criado as condições para que ela fosse atingida.
— Estou bem, não precisa fazer tanto alarde. Até parece que você nunca me viu perdendo uma luta — retrucou, entre os desabafos de seu pai.
— Você não precisa ficar com ele, vou pedir para que ele vá para outro hotel. Vou designar um novo segurança para você.
— Quer que eu lute com mais um? Não aceito segurança que não consiga me vencer. Se ficar insistindo, ficarei sem segurança nenhum. Ele pode ter vencido, mas viu que não foi fácil. Como vou confiar em alguém que não consegue nem lidar comigo? Eu gostei do seu garoto, posso ficar com ele. Pare de criar caso com isso, você já está me irritando. Me deixe descansar.
Beijou a bochecha do pai e abriu a porta do carro. Ele se largou no banco traseiro, indiferente aos julgamentos do motorista.
— Tem certeza de que vai ficar aqui sozinha? O hotel tem serviço de quarto, posso designar alguém para ajudá-la no que precisar.
— Estou bem, papai. Vá, descanse. Nos falamos amanhã.
A porta se fechou, e Dr. Orion ficou observando-a pelo vidro da limusine com um olhar de tristeza, como um pobre cão abandonado.
Daniella permaneceu parada na calçada, olhando as luzes traseiras da limusine se afastarem até desaparecerem na curva. O ar noturno estava fresco contra sua pele, um contraste bem-vindo depois de um treino tão intenso.
Caminhou até a entrada do prédio, os passos ecoando no saguão vazio. Ali, longe dos olhos preocupados do pai, podia finalmente respirar. O elevador tocava uma música ambiente relaxante. Estalou o pescoço, soltou os cabelos do rabo de cavalo. No corredor, o scanner biométrico reconheceu sua palma e a porta deslizou suavemente.
Entrou no apartamento e parou; algo estava diferente. Estreitou os olhos, imóvel por alguns segundos, deixando que seus sentidos se ajustassem ao ambiente familiar. Não era nada óbvio, mas seu treinamento havia aguçado sua percepção para mudanças sutis. O apartamento parecia o mesmo, mas não estava.
Os olhos vasculharam a sala, catalogando cada detalhe fora do lugar: a poltrona dois centÃmetros mais à esquerda, uma marca quase imperceptÃvel de bota sobre o tapete. Trabalho profissional. Limpo, mas não invisÃvel.
Percorreu silenciosamente o corredor, os pés descalços testando cada tábua do piso. O apartamento era seu refúgio, escolhido estrategicamente no terceiro andar, com vista para duas ruas e acesso aos dutos de ventilação do prédio.
Primeiro quarto. Examinou cada canto, procurando por presenças ocultas. Vazio.
Segundo quarto: A luz do fim de tarde entrava preguiçosamente pela janela fechada, projetando sombras alongadas entre as cortinas. O apartamento permanecia em silêncio, apenas o zumbido dos sistemas de climatização e a respiração controlada dela no espaço deserto.
Quem quer que tivesse estado ali havia partido. Voltou para a sala, analisando metodicamente as pistas. Invasão silenciosa, mas não hostil. O padrão era familiar: entrada profissional, varredura de segurança, propósito especÃfico. Alguém havia vindo deixar algo para ela.
Aproximou-se da estante, ajustando os livros que haviam sido ligeiramente desalinhados. Ao pegar um exemplar de Sun Tzu para reposicioná-lo, algo escorregou das páginas. Um envelope.
Pegou-o, testando seu peso. Leve demais para conter explosivos, mas pesado o suficiente para carregar consequências. Voltou ao quarto, fechou a porta por hábito e sentou na beirada da cama.
Um minúsculo módulo de memória translúcido caiu do envelope quando o abriu. Era o suficiente para confirmar o que já sabia: a OPM tinha uma missão para ela. O timing não era coincidência — nunca era. Alguém da agência havia monitorado sua situação e decidido que estava na hora de colocá-la de volta em campo.
Pegou a tiara neural da mesa de cabeceira. O chip se encaixou com um clique suave, a luz azul piscando uma vez, confirmando a conexão. Deitou-se devagar, ajustando-se no colchão. Fechou os olhos e realizou uma rotina de relaxamento muscular.
Uma sensação de formigamento percorreu sua têmpora enquanto o dispositivo sincronizava com suas ondas cerebrais. Primeiro veio a leveza e então a sensação de estar flutuando acima do colchão. A realidade começou a se dissolver nas bordas da consciência.
Por alguns instantes, apenas escuridão, até que luzes começaram a acender gradualmente atrás das pálpebras fechadas. O sÃmbolo da agência apareceu primeiro, seguido pelas letras MITRA, que se abriram formando as palavras “Multipurpose Intelligence and Tactical Reconnaissance Assistantâ€.
O mundo real se desfez como sempre, uma queda suave seguida pelos sentidos se reorganizando devagar. Primeiro, apenas a consciência de estar em pé sobre algo sólido. Depois, a percepção vaga de um espaço ao redor — paredes distantes, teto alto. Os dados brutos da simulação foram ganhando forma aos poucos, como uma fotografia emergindo lentamente do revelador.
A sala de reuniões em tons de azul marinho terminou de se solidificar ao redor dela. As paredes, ainda translúcidas, começaram a ganhar consistência.
No centro da sala, uma mesa holográfica se solidificou diante dela. Dois agentes apareceram na sua frente. Enquanto se moviam, as paredes ganharam painéis que projetavam informações. Daniella endireitou a postura.
— Fênix — disse um dos agentes, sua voz soando clara e natural, apesar de sua forma virtual. — Temos movimento no caso Malik.
O ambiente virtual oscilou por um instante. O sistema percebeu sua reação. “Mantenha o focoâ€, repetiu mentalmente, as palavras que sua mentora tanto usava. Seis anos. Seis malditos anos seguindo pistas falsas, nomes falsos, rastros que levavam ao nada.
— Que tipo de movimento? — A voz saiu controlada.
— Ele saiu da toca — a agente feminina afirmou, observando a reação de Daniella. — Temos localização confirmada. Londres.
O nome que ela não esperava ouvir a atingiu como um soco. Daniella enrijeceu.
— Qual foi o gatilho para identificação?
Grandes telas holográficas surgiram ao redor deles, cheias de imagens de câmeras de vigilância e gráficos de dados em tempo real.
— Wuhan forneceu os primeiros dados após sua operação nas Indústrias Kai— explicou a agente feminina. — Os documentos geraram correlações no sistema.
— Correlação direta com Malik?
— Triangulação através de Sebastian Wright — o homem gesticulou, fazendo surgir uma assinatura digitalizada no ar. — Identidade conectada às Indústrias Kai como investidor fantasma.
Daniella franziu a testa.
— Wright é nova persona ou reciclagem?
— Reciclagem. Mesmo padrão operacional que mapeamos seis anos atrás.
— Tem atividade programada para Londres?
— Confirmado. — Enquanto falavam, as imagens do hotel de seu pai começaram a surgir nos hologramas.
O coração de Daniella apertou. O homem que matou Selene estava caminhando pelos corredores que a acolheram quando fugiu de Isla del Canareos. Esta não era apenas mais uma missão.
— Orion Star— ela murmurou, reconhecendo as imagens.
— Reserva confirmada para noventa dias a partir de hoje — a agente adicionou, a atenção ainda em Daniella. — Evento corporativo, múltiplos participantes.
— Janela suficiente para preparação de operação maior — murmurou.
— Reserva processada por uma empresa fantasma registrada nas Ilhas Cayman — o primeiro agente adicionou. — Assinatura operacional consistente com padrões anteriores.
— Temos imagem atual do alvo?
O homem projetou as imagens de segurança, sombras borradas de uma figura alta usando um chapéu e máscara cirúrgica.
— Apenas isso. Um metro e oitenta e cinco, porte militar, evita câmeras e sensores de reconhecimento facial.
— E nossos informantes? — ela perguntou, já sabendo a resposta.
— Dizem que algo grande está sendo preparado — a agente declarou. — Malik não faz reservas em cidades como Londres para férias.
— Este evento no Orion Star pode ser ponto de convergência para entender a operação principal.
Daniella observou as plantas do hotel. Seu segundo lar, agora um campo de operações.
— Qual a estratégia de inserção?
— Funcionária do hotel — transmitiu o agente, sua voz carregando a precisão de quem já havia executado dezenas de operações similares. Daniella examinou o documento virtual que surgiu diante dela, os olhos percorrendo rapidamente as informações. — Claire Bennett, coordenadora de eventos. Perfil construÃdo com histórico de trabalho em três hotéis de luxo.
— Desnecessário — Daniella interrompeu, cruzando os braços. — Meu pai está me enviando para Londres de qualquer forma. Posso aceitar a posição sem criar inconsistências.
— Perfeito — o homem assentiu, uma satisfação calculada na voz. — Sua missão: identificar Malik e mapear o propósito desta reunião.
— Vou precisar de suporte operacional — ela declarou, o tom profissional. — Alguém experiente em vigilância discreta e manejo de equipamentos.
— Especifique os requisitos.
— Preciso de alguém capaz de neutralizar minha proteção pessoal sem criar incidentes. Sobre o equipamento-
— Já foram selecionados — o agente gesticulou e os dispositivos apareceram flutuando ao redor deles. Daniella examinou cada peça, testando mentalmente o peso e a funcionalidade. — Malik vai executar varredura completa por dispositivos — ele alertou, a experiência transparecendo na voz. — Ele tem treinamento militar de contrainteligência.
— Estes equipamentos operam em frequências que não constam em nenhum manual — a agente afirmou com confiança profissional. — É o que temos de mais avançado para alvos como Malik. Mesmo assim, use apenas quando necessário. Não podemos permitir que esta tecnologia seja comprometida.
Novos itens se materializaram no espaço virtual.
— Alteração facial?
— Próteses de silicone médico — o agente esclareceu. — Mudanças sutis na estrutura óssea, suficientes para enganar reconhecimento facial, mas imperceptÃveis ao olho humano a mais de dois metros. Evite contato prolongado com conhecidos próximos. Sua familiaridade com o local é tanto uma vantagem quanto um risco. Os funcionários não podem saber de seu envolvimento. Qualquer suspeita sobre suas verdadeiras atividades poderia comprometer não apenas a missão, mas sua segurança pessoal.
— Fênix, esta missão é extremamente delicada — a agente feminina concluiu. — Não apenas pelo perfil do alvo, mas pelo local. Se algo der errado, seu pai e o hotel podem se tornar alvos. Queremos identificar o bastardo e descobrir o que ele está tramando, mas você volta viva. Entendeu?
As imagens do hotel de sua famÃlia pairavam diante dos olhos, trazendo consciência do peso adicional que esta missão carregava. Não era apenas mais uma operação — era uma missão que tocava seu passado, presente e possivelmente seu futuro.
— Quando começamos?
— Mitra enviará as coordenadas de ativação. Cuida-se lá.
* MITRA - Assistente de Múltiplos-propósitos para Inteligência e Tática de Reconhecimento
Recadinho da Autora:
Olá meus caros leitores,
Aqui estamos novamente. Parece que as férias da nossa herdeira favorita acabaram, e como puderam ver no final, Dr. Orion venceu em todas as frentes em que o danadinho lutou. Conseguiu colocar um segurança no pé da filhota e ainda mandá-la para Londres. Convenhamos, o cara não é dono de um dos maiores conglomerados do mundo à toa, né? Meta de 2026: ter a paciência do Dr. Orion e esperar as peças se encaixarem na vida.
Essa é a segunda vez que Mitra é mencionada nessa história. Em breve vamos conhecê-la de fato. Mas, quem leu Molly Não Sabe Amar já conhece. Ou pelo menos, sabe que ela existe. Então, se quiser ver o nascimento da Mitra, passe lá em Molly Não Sabe Amar.
Alguém interessado em comprar a tiara de interface neural?