
A sala de reuniões do Orion Star tinha paredes de vidro visÃveis para todo o andar. As pessoas trabalhando nas baias observavam, curiosas, o que acontecia ali dentro daquele imenso aquário. Porém, elas não tinham como saber, já que os vidros filtravam as imagens holográficas e deixavam turvo qualquer um que tentasse focar nos lábios de algum ocupante.
A reunião havia sido organizada para um número restrito de pessoas da confiança do Dr. Orion, dentre eles o auditor interno, o conselho de administração, o diretor de recursos humanos e Gregori, o assistente executivo. O Dr. Orion também havia solicitado a presença de sua filha no dia anterior.
— Os números simplesmente não fecham — o Auditor Interno projetou um holograma tridimensional no centro da mesa. Pontos luminosos conectavam-se entre si, formando padrões de fluxo de capital. — Veja estes desvios minúsculos. Individualmente são imperceptÃveis, mas quando isolamos a frequência em que eles acontecem…
O holograma reconfigurou-se, e uma linha vermelha pulsante atravessou toda a estrutura. Era Londres. Seu pai queria que ela investigasse a diretoria do Star de lá.
— Alguém está drenando recursos sistematicamente — completou o Dr. Orion, girando o modelo holográfico com um gesto. — A questão é: para onde?
Daniella observou os padrões com interesse antes de recostar-se novamente, assumindo a velha pose de tédio ensaiado. Quem quer que estivesse manipulando aqueles dados conhecia profundamente os sistemas internos. Um trabalho de infiltração elegante.
— Quanto tempo? — perguntou ela, esquecendo-se por um instante do papel de herdeira incompetente que deveria manter.
— Pelo menos uns trinta meses — respondeu o auditor. — Começou pequeno, quase imperceptÃvel.
Passou distraidamente a stylus no ar, deslizando pelos perfis holográficos dos diretores de Londres enquanto seu pai falava. Entre os vários rostos corporativos que flutuavam discretamente, reconheceu Lamar, um antigo amigo de infância, que tentava manter ela e Neo na linha insistindo quase todos os dias para não correrem pelos corredores quando crianças.
Os dados na ficha indicavam seu percurso impressionante: Lamar Salvatierra: Diretor Financeiro, gestor de projetos estratégicos da filial Londres e supervisor de parcerias sustentáveis. Diretor de finanças com missão especial em projetos ASG (Ambiental, Social e Governança). Acesso: NÃvel 3 (Finanças Departamentais, Folha de Pagamento, Contratos de Prestadores)
Interessante
NÃvel 3 não explicaria o acesso necessário para o tipo de desvio discutido.
— Você não parece surpresa com a ascensão do filho da camareira — comentou seu pai, observando-a atentamente.
— Sinceramente, só estou surpresa que alguém consiga fazer uma carreira inteira no Orion Star sem ter um colapso nervoso — ela deu de ombros. — Olha esses relatórios que eles têm que preencher. Estou morta de tédio só de olhar.
Mas Dr. Orion notou o interesse momentâneo, e seus olhos brilharam com uma satisfação. Ele sabia exatamente quais botões pressionar.
— Você conhece Londres melhor que qualquer outro executivo do grupo — argumentou seu pai. — Viveu lá, entende as nuances culturais, tem os contatos certos. E, principalmente, ninguém suspeitaria de você.
O que seu pai não mencionou, mas Daniella sabia perfeitamente, era que essa missão significaria abandonar sua confortável posição em Wuhan para mergulhar de cabeça na polÃtica corporativa da matriz. Londres tinha sido seu lar por anos, era verdade, mas retornar como investigadora arruinaria os bons relacionamentos que havia construÃdo lá. Por isso queria distância dessa investigação. Existiam pessoas tão qualificadas quanto ela para resolver esse assunto.
Ajustou o bracelete de ouro em seu pulso e manteve os saltos Jimmy Choo batendo ritmicamente no piso de mármore durante toda a reunião, uma réplica de luxo restaurada a partir dos modelos originais do século XXI, digitalizados e preservados como patrimônio da moda.
Anunciaria sua presença em Isla del Canareos da forma mais irritante possÃvel para que alguém convencesse seu velho pai a desistir da ideia. Ajustou o sorriso vazio e o olhar vago no rosto e colocou em ação sua estratégia favorita para que fosse deixada em paz.
Durante toda a apresentação, brincava com a caneta entre os dedos. Fingiu se atrapalhar e a jogou direto na cabeça do Diretor JurÃdico, pedindo desculpas logo em seguida, mal conseguindo disfarçar o sorrisinho arteiro no canto da boca.
— Estas barrinhas coloridas são tão confusas — Daniella suspirou dramaticamente, apontando para os gráficos com um gesto impreciso. Mas então, enquanto o Diretor Financeiro iniciava uma explicação condescendente, seu dedo indicador tocou exatamente no ponto onde os dados mostravam a maior anomalia. Não foi um gesto aleatório. Dr. Orion estreitou os olhos. Por uma fração de segundo, pai e filha compartilharam um olhar de entendimento mútuo antes que Daniella voltasse à sua performance.
— Desculpe, você estava dizendo algo sobre fluxos de receita? — ela piscou inocentemente, girando uma mecha de cabelo entre os dedos.
O Diretor de Recursos Humanos pigarreou discretamente quando Daniella deixou cair a caneta pela terceira vez. Seus olhos encontraram os do Diretor Financeiro numa comunicação silenciosa de desaprovação.
— Dr. Orion — interveio ele, ajustando o relógio holográfico em seu pulso —, respeitosamente, este assunto requer alguém com experiência em investigações corporativas. Temos uma equipe especializada que poderia…
— Minha filha conhece Londres melhor que qualquer um nesta sala — cortou Dr. Orion, seu tom não admitindo contestação.
Gregori, o Assistente Executivo, observava Daniella com um olhar avaliativo que destoava de sua posição subalterna. Por um instante fugaz, seus olhares se cruzaram, e ela percebeu: ele não estava comprando sua atuação.
— A senhorita Del Rion tem um histórico impressionante em Wuhan — comentou Gregori suavemente, deslizando um relatório holográfico em direção ao centro da mesa. — Particularmente em assuntos… delicados.
Daniella manteve a expressão vazia, mas mentalmente reavaliou o homem. Gregori havia feito a lição de casa. Perigoso.
— Minha filha, você não precisa entender os números, pagamos pessoas para isso — Dr. Orion a fitou com um olhar rÃgido e recostou-se na cadeira, cruzando os braços sobre o peito. Ele sabia que ela entendia muito mais do que os números. Nem todo esse tempo longe o fazia esquecer as artimanhas da jovem.
O homem não era dono de um dos maiores conglomerados hoteleiros do mundo à toa. Tinha um olhar treinado. Ela podia enganar todos os executivos daquela reunião, mas jamais enganaria seu velho pai.
— Bem, acredito que temos um curso de ação claro — concluiu Dr. Orion, desativando os hologramas com um gesto firme.
— Quanto tempo temos antes que os auditores externos identifiquem as discrepâncias? — perguntou o Diretor Financeiro.
— Três meses, no máximo — respondeu o Auditor Interno. — Depois disso, perderemos o controle da narrativa.
Todos os olhares se voltaram sutilmente para Daniella, que examinava suas unhas distraidamente. Ao perceber o silêncio, ela ergueu o olhar.
— O quê? — perguntou, fingindo não entender a expectativa. — Vocês não podem realmente esperar que eu resolva isso. Eu mal consigo equilibrar minhas próprias contas de compras.
— Daniella… — começou seu pai.
— Papai, eu tenho uma reserva no spa em Bali na próxima semana — interrompeu ela com um tom lamentoso. — E depois vou para o Festival de Moda de Tóquio. Essas são obrigações sociais! — ela acentuou dramaticamente a última palavra. — Você mesmo disse que eu represento a imagem da famÃlia.
O Diretor de RH pigarreou novamente, claramente desconfortável com a dinâmica familiar exposta na reunião corporativa.
— Talvez devêssemos considerar a equipe especializada em auditorias — sugeriu ele. — Temos profissionais altamente…
— Eu não terminei, Bernard — cortou Dr. Orion, a voz firme. Então, voltando-se para a filha: — Vamos continuar esta discussão em meu escritório.
Daniella estalou a lÃngua contra o céu da boca, exibindo seu melhor olhar de tédio.
— Se é absolutamente necessário — suspirou ela, pegando sua bolsa. — Mas não vou para Londres, papai. Pode tirar isso da sua cabeça.
Enquanto os executivos se levantavam, Gregori observou-a com um olhar analÃtico que a fez sentir-se momentaneamente exposta. Havia algo naquele homem que sugeria que ele via além.
Seguiu seu pai para o escritório, e por cima do ombro, espiou Gregori falando com um homem próximo ao elevador. O jovem elegante segurava dois cafés. Tinha um rosto familiar, mas não conseguia lembrar onde tinha visto ele antes.Â
Recadinho da Autora:
Olá, amigos.
Sei que prometi o encontro desses dois, e juro para vocês que eu tentei. Mas o capÃtulo ficou muito grande depois da revisão, e precisei dividi-lo em dois. Eu realmente precisava aprofundar algumas informações sobre personagens que terão um papel mais relevante no ambiente corporativo da história.
Espero que o capÃtulo não tenha ficado chato. Mas, se estiver cansativo, por favor, me avisem. Prometo que vou revisá-lo mais algumas vezes, se for necessário. A opinião de vocês é muito importante para mim.
Agora, promessa de verdade: o encontro dos amigos de infância vem no próximo capÃtulo. Dessa vez, não tenho nem como escapar. Vai acontecer. Juro!