
Treinar até o limite havia se tornado um hábito quando a responsabilidade ameaçava pesar em seus ombros. Daniella só percebeu o quanto passara da conta quando desligou a simulação. O relógio projetava quatro e vinte e três, lembrando-lhe que o sono era mais concessão do que necessidade. Suas têmporas latejavam com o eco digital, e a sua mente ainda processava os cenários de combate, as variáveis de terreno, as falhas de equipamento que precisaria antecipar.
A princÃpio, não achou que seria um problema. Gregori sabia que ela nunca voava cedo. Não era parte de sua rotina, cuidadosamente construÃda, treinar até tarde. Sempre que não estava em campo respeitava seu horário de sono para que quando precisasse do seu corpo ele não hesitasse em responder. Iria dormir algumas horas, recuperar o sono perdido e partir quando corpo e mente estivessem sincronizados.
No dia anterior, durante a simulação de perseguição pelas ruas virtuais de Londres, Mitra havia confirmado que todos os preparativos para a missão estavam alinhados. As peças se encaixavam com uma perfeição suspeita.
O corpo pedia descanso, mas uma sensação incômoda de que a rotina seria interrompida cedo demais a acompanhou no sono leve que se seguiu. A luz da manhã mal começava a se infiltrar pelas frestas da persiana quando a voz de Tyler soou pelo sistema de comunicação.
— Senhorita — havia uma nota de hesitação, como se ele antecipasse sua reação. — Você tem visita. Posso liberar a entrada do Alex?
Arrancou a venda, e o corpo reagiu com tensão imediata.
— São seis da madrugada! — sua voz saiu rouca, uma mistura de sono e irritação. — O que o garoto do meu pai quer? — Ela calculava possÃveis cenários, sua mente mapeando contingências mesmo antes de saber o motivo da visita.
— Ele disse que tivemos problema com o jato. Seu voo foi reagendado para daqui a duas horas. Quer falar com você.
Mudanças de última hora eram sinal de alerta. Um músculo tremeu em sua mandÃbula. Problemas nunca tinham acontecido em anos de uso dos serviços de transporte da empresa do seu pai.
— Deixe-o entrar. Aguardem na sala.
Com a graciosidade felina, ela se levantou. Os pés descalços não faziam barulho no piso enquanto ela se dirigia ao banheiro. Precisava de um banho para enfretar o que quer que viesse pela frente.
A água quente relaxou seus músculos. Sua mente se reorganizou. Cada peça de informação encontrando seu lugar no quebra-cabeça que se formava. Mentalmente se preparava para reassumir seu papel de mimada insuportável. O garoto do seu pai, Alex, parecia ser uma boa pessoa. Uma rara sinceridade transparecia nele, algo difÃcil de encontrar no mundo corporativo. Uma pena que serviria de peça no teatro da herdeira problemática. Mas antes, precisava garantir que suas vidas não estavam em risco.
— Mitra, analise tudo sobre esse problema no jato. Se for sabotagem, preciso saber antes de sair de casa. — Ela passou os dedos pelos cabelos. — Verifique também as condições da aeronave que iremos utilizar. Se precisar, crie um chamado falso de vistoria na empresa para fiscalização de segurança. Exija o registro do processo com câmeras e analise se o voo estará seguro antes de embarcarmos. Não podemos arriscar surpresas.
— Entendido. — A voz suave de Mitra respondeu. — Iniciando verificação e abertura de perfis para fiscalização. Conclusão em 36 minutos.
Fechou os olhos, entregando-se ao alÃvio que lavava o cansaço pouco a pouco. A adrenalina da suspeita estava queimando sob sua pele, afiando seus sentidos como sempre acontecia quando o perigo se aproximava. Sua mente montava a performance que precisaria dar daqui a pouco: “O Câncer do Starâ€. Tinha que fazer jus à sua reputação, mas com precisão, sem deixar rastros de suas verdadeiras intenções.
Na sala de estar, aguardando a herdeira do Orion Star, Neo colocava o suporte com dois cafés em cima da mesinha à frente do sofá.
— O que ela está fazendo para demorar tanto? — reclamou, andando pela sala impaciente enquanto Tyler se postou na porta de entrada com a sua pose habitual, observando. — Será que ela não entendeu que estamos com o horário apertado?
Vinte minutos depois, a porta do quarto se abriu. A aparência revelava cada detalhe pensado para encarnar a herdeira desaforada. O conjunto de alfaiataria preto e os saltos altos ecoavam autoridade, mas eram práticos o suficiente caso precisasse entrar em ação. Seus cabelos ainda estavam úmidos e usava uma maquiagem leve.
Caminhou na direção de Tyler quase que colando o seu corpo ao dele, levantou seus braços em direção ao ouvido livre, oposto aquele que ele mantinha o comunicador com a equipe de segurança, e colocou ali um fone de ouvido que conseguia ouvir de maneira privada tudo que Mitra precisasse falar.
Ele sentiu o perfume dela na proximidade, mas manteve-se impassÃvel. A mão no bolso roçou a cicatriz quando seu batimento cardÃaco acelerou. Então notou o fone discreto na orelha dela. Provavelmente queria manter Mitra longe do conhecimento de Neo. Confiara nele, e em ninguém mais.
Tyler engoliu a seco ao notar Neo do outro lado da sala, tomado por um ciúme mal disfarçado. Queria rir do amigo, ao passo que a preocupação lhe tomava aos poucos. Ele com toda certeza estava entendendo tudo errado.
Depois que a mãe de Neo deu a vida para salvar a sua irmã, decidiu que faria de tudo para que ele pudesse ser feliz. E um mal entendido com a paixão de infância dele era algo que não desejava criar.
Sem que Tyler percebesse, ela deu um giro rápido nos saltos, o cabelo atingindo o rosto do segurança como um tapa. Ele fechou os olhos, comprimiu os lábios mas, se manteve imóvel.
Os olhos dela se cravaram em Alex, sentado no sofá, inerte.
A aproximação repentina da mulher que habitava suas lembranças mais Ãntimas com o seu melhor amigo fez suas pernas vacilarem. Seus olhos não perderam um movimento sequer.
— Isso… é melhor ser importante. — A voz dela cortou o silêncio da sala. Alex se endireitou instantaneamente, mas não demonstrou o nervosismo tÃpico que sua presença costumava causar nas pessoas quando mantinha esse tom.
— Dani… — Neo se levantou, estendendo o café. A voz falhou antes de se corrigir: — …-ella.
— Senhorita Del Rion para você — ela repetiu o aviso que havia lhe dado no escritório de seu pai.
— Certamente. Desculpe, e desculpe pelo horário.
Com uma sobrancelha arqueada, ela pegou o copo apenas para abandoná-lo sobre a mesa sem provar. Era um gesto estudado de desdém, mas sua mente registrou a informação: ele havia se dado ao trabalho de ser atencioso com ela também, não só com seu pai.
— Um café não vai compensar o fato de que você está aqui às seis da manhã me dizendo que há problemas com o jato do meu pai. — Ela se acomodou na poltrona oposta, cruzando as pernas em um movimento deliberadamente lento. — Então, qual é a brilhante solução que você veio me apresentar?
— Na verdade… — Neo começou, e Daniella notou um leve tremor em suas mãos quando apertou o relógio para acessar o holograma das passagens. — Conseguimos uma alternativa que pode ser até melhor. Um voo suborbital comercial.
O silêncio que se seguiu foi denso o suficiente para estremecer os presentes. Daniella permitiu que ele durasse alguns segundos a mais que o confortável, observando uma gota de suor se formar na têmpora de Alex.
— Um voo comercial. — Ela repetiu cada palavra como se explicasse a uma criança. — Você quer que eu, Daniella Del Rion Orion, pegue um voo comercial?
No canto da sala, Tyler mudou sutilmente sua postura. Ela aparentava que estava pronta para criar o caos.
— É mais rápido que o jato. A vista da curvatura da Terra é incrÃvel, e…
Um suspiro profundo dela cortou o raciocÃnio dele pela metade. Sua irritação não passou desapercebida por ele. A princesinha do papai ia criar confusão com ele por conta de um voo com pessoas.
Exausto em assumir atribuições fora do seu cargo, deixou o olhar se perder no tapete enquanto um vazio crescia em seu peito. Era difÃcil reconhecer que ela se tornara uma pessoa diferente daquela que um dia fora sua favorita em todo o mundo. Não se tratava de ter que lidar com as futilidades de uma garota mimada. Era como vivenciar um luto. Aquela que ele amara havia partido, deixando um monstro em seu lugar.
— Você é irritante — as palavras escaparam carregadas de amargura quando ele voltou a observá-la.
Devagar, ela se virou.
— O que disse? — a voz gélida ecoou no ar entre eles.
— Você é uma mulher extremamente irritante! — reafirmou, erguendo o queixo.
Tyler deslizou a mão até a maçaneta e saiu como uma sombra. Sabia que aquilo não terminaria bem para o amigo, mas Neo havia feito sua escolha.
Recadinho da autora
Olá amigos,Â
Acho que o nosso Neo querido chegou ao limite dele, não é mesmo? Todo mundo tem um limite, e até que ele demorou, não acham?
Façam suas apostas:
O queridinho do Dr. Orion sairá vivo dessa?