As palmas de suas mãos estavam cobertas por uma poeira vermelha que não pontilhava apenas seu corpo, como também as paredes da casa. Precisava tomar coragem e olhar para fora.
"Quando era um moleque imbecil e ficava de olho nas lavadeiras de passagem, mamãe me dizia para tomar jeito e me aconselhava a não ficar zanzando por aí, mas agora sou o preboste do vilarejo." Tinha, portanto, a honrosa responsabilidade que lhe impunha a missão de se ocupar não só de sua administração, como também de sua defesa; uma pena que naquele momento não pudesse fazer nada.
"Deus me defenderá!" O pó vermelho invadia a casa mesmo com as janelas fechadas. Ultrapassava as mais estreitas fendas.
Sacudiu a cabeça, cambaleou e sua mão, embora trêmula, reabriu a janela. Lançou o olhar para fora. Os dois seguiam ali, sob o pôr do sol.
A menina, em seu vestido esfarrapado, não parecia ter mais do que seis anos. Sorria e balançava os cabelos pretos em sua dança. Era a única disposta a brincar naquele corredor de casas de palha, madeira e taipa.
O cruzado, com o rosto ocultado pelo bacinete, seria uma estátua de aço se não fossem as narinas inquietas de seu cavalo.
– Seja sincero comigo, meu senhor: por acaso veio cortar a minha cabeça? – A garotinha pálida não demonstrou o menor abalo ao perguntar.
O santo guerreiro fez o sinal sagrado. Uma cruz de pontas afiadas estava presente tanto em vermelho na capa quanto em prata no centro da armadura. Quando o vira chegar ao vilarejo, o coração do preboste fora preenchido pela certeza de que estavam nas mãos do Senhor dos Exércitos. "A cruz de Cristo é loucura, porém não deixa de ser esperança. São feixes de luz unidos para dispersar as trevas do medo."
– O senhor não pode me machucar. – A menina, sem demonstrar temor, apontou para o guerreiro e deu uma piscadela. – Eu sei que não! – Parecia evidente, afinal, que o cruce signatus não poderia usar, contra uma mera criança, as duas espadas que trazia em sua cintura, uma de cada lado.
Idênticas, destacavam-se as empunhaduras em um prateado mais escuro, em forma de dragões retorcidos, que davam a impressão de fazer um tremendo esforço para morder, sem êxito, suas próprias caudas, em uma perseguição munida de desespero e dentes.
– Se quiser, pode vir comer carpa frita comigo e com os meus pais hoje. Ou o senhor não me entende? Nunca ouviu falar das carpas de Sundgau? Ontem mesmo tivemos a festa de São Nicolau! Por que o senhor não participou? Ganhei biscoitos e pedaços de pain d’épices. Sabe como se faz? A minha mãe pode te passar a receita depois!
O cruzado seguia mudo. A garota riu e o cavalo bufou. O guerreiro bateu com as esporas nos flancos da besta, que acelerou, e, sem hesitação, pulou da sela ao mesmo tempo que desembainhava uma das espadas.
A empunhadura emanou uma luz de prata e o dragão em metal ganhou vida e mordeu a própria cauda: a cabeça da garotinha voou para longe com um único golpe e o cavalo escapou adiante.
A respiração do proboste emitia um ruído acuado. Levou a mão direita ao peito e, ao acariciá-lo, silenciou. Seu queixo tremia.
– Isso não é nada bom. O senhor quer que eu chame os meus pais? – O rosto falou separado do corpo, no chão, sobre a pocilga de sangue que se formara e que parecia ter assumido a forma de uma rosa que recém-desabrochara.
Do tronco estanque brotou uma nova cabeça. A primeira se desmanchava no aspecto de uma gosma da cor da pele e dos cabelos fundidos, como se por cima daquela matéria tivesse sido despejada alguma espécie de ácido.
Aquela nova face girou sobre o próprio eixo. Seus olhos apresentavam, nas veias, uma vermelhidão quase negra. Foi com estes que encarou primeiro o preboste – cujas bragas foram encharcadas por uma umidade quente –, para então se fixar no cavaleiro.
O verde das árvores e da relva da região ficou ainda mais encoberto por aquela poeira encarnada, que brotava por geração espontânea, pois não havia vento.
O cruzado avançou de novo, porém desta vez a menina se moveu. Os dedos da mão direita adquiriram uma extensão anormal e agiram como lanças flexíveis. As unhas se transformaram em pontas metálicas. Foi vital o correto posicionamento para tirar proveito do visor perfurado em forma de cone, o que facilitou o desvio do ataque frontal.
Mais um golpe preciso e o braço da criatura com aparência de criança acabou cortado.
Vieram os dedos da outra mão para atingi-lo, mas sua esquiva foi mais rápida.
– Por que não desiste? – A voz da menina soou inumana. Emanava uma fome maníaca por carne triturada.
Gerou um novo braço. O decepado, caído, sofria um processo análogo ao da cabeça.
O guerreiro foi rápido demais: desembainhou sua segunda espada e, em mais um avanço, aplicou dois golpes verticais simultâneos. Cortou de uma vez o braço inteiro e o pedaço do outro que se formava.
Por fim, perfurou-lhe o peito com uma lâmina e rachou-lhe a cabeça com a outra, agachado para ficar na altura adequada. Tudo a uma velocidade sobre-humana.
– Ele conseguiu! – Uma voz de comemoração veio da janela de outra das casas. Mais pessoas observavam o que acontecia.
– Será que esse monstro não vai mais se regenerar? – Um homem de meia-idade saiu da taverna mais próxima.
O preboste sacudiu a barba branca, que estava coçando, retirando alguns grãos de poeira vermelha, que sumiram de sua mão.
– Não se preocupem! – O cavaleiro falou com voz trovejante. – Uma vez que o coração e o cérebro foram atingidos de forma simultânea ou num curto espaço de tempo, esse tipo de demônio não pode mais voltar à vida. – O sangue nas espadas desapareceu, absorvido pelo metal, antes que as tornasse a embainhar.
Como por milagre, todo o pó vermelho que se espalhara apesar do ar estático também não deixaria rastro algum após a morte do demônio, difundindo-se o mesmo processo que se verificara na mão do preboste, que, agora sem qualquer resquício de tremor, com o coração aliviado, deixou sua residência, assim como muitas outras pessoas estavam fazendo.
– Como poderemos recompensá-lo? – perguntou ao seu salvador. – Além de tudo, fala muito bem a nossa língua! – Pois o cavaleiro se pronunciara em alsaciano, não no idioma oficial do reino, mais falado na Île-de-France. – Quer dizer que se interessa por nosso povo, por nossas tradições? Ou por acaso é nosso conterrâneo e por isso a Igreja o enviou para cá ao atender nossa requisição?
– Não confunda as coisas. Somos obrigados a saber os idiomas de todas as comunidades cristãs, mas não é um interesse particular meu. Trata-se de algo que envolve um dom do Espírito Santo, que nos permite aprender qualquer língua ou dialeto com facilidade.
– Oh, sim… sim, meu senhor! Mil desculpas. Não sabia desse detalhe, pois nunca antes havia estado com um cruzado. Mas o que devemos fazer agora?
– Primeiro retirem esse corpo imundo do meio da rua. – Retirou o elmo. Tinha a aparência de um anjo, com os cabelos loiros e cacheados. Seus olhos eram, porém, similares a dois lagos de gelo. Um anjo não deveria ter olhos semelhantes a um par de fogueiras? – Peço para que o enrolem e o mantenham assim até a meia-noite. E então, após ser realizada uma santa missa, queimem-no em frente à igreja à luz de círios. Quando isso estiver terminado, a luz espantando as trevas, o senhor venha me visitar na hospedaria com o pagamento que puderem oferecer. Só não se esqueçam de não serem tacanhos, pois a avareza é um dos pecados mais custosos para que algum dia seja obtido o perdão divino. – Como só existiam uma igreja e uma hospedaria no vilarejo, parecia impossível encontrar naquela fala pontos de ambiguidade.
– Mil graças, mui nobre e reverenciável soldado da cruz de Cristo! Que o Senhor esteja sempre em sua presença. – O preboste fez uma reverência acompanhada do sinal da cruz e os demais ao redor o acompanharam.
– Ele está no meio de nós. – E foi recuperar o cavalo, que já vinha ao seu encontro a passos calmos, o bater de seus cascos silencioso sobre o chão.
O preboste seria capaz de jurar que o animal, com os cantos dos lábios ligeiramente alçados, estava sorrindo, como se em nenhum momento tivesse receado que seu senhor não triunfasse. Afinal, uma vez identificado, aquele típico devorador de crianças, que assumira a forma de sua última vítima, não era um adversário à altura.
O cruzado agarrou as rédeas de sua montaria, cuja estatura era maior do que a média dos corcéis, escalou-a sem qualquer demonstração de calor e encaminhou-se para o estábulo da igreja.
Aquele cavalo emanava um odor entre o terroso e o adocicado. Bem distinto do cheiro de enxofre dos demônios, que, no entanto, conseguiam disfarçá-lo muito bem. Só o estava sentindo agora que a aberração estava morta.
Dizia-se que os cruzados, por outro lado, o percebiam de longe. Perguntou-se se isso era verdade, mas era melhor não duvidar de nada em relação a quem possuía o sangue de Cristo correndo em suas veias.
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