Na sede da Ordem da deusa, Belanus e as duas feiticeiras realizavam um ritual de proteção voltado a unir Hécate e Cernunnos.
O caldeirão borbulhava. Tinham sacrificado um cervo e usado ervas e o sangue do animal para traçar um círculo em volta que os protegeria de Asmodeus. As forças da
natureza estavam sendo chamadas. O elemental materializado que costumava ficar do lado de fora viera para dentro. A porta, trancada, era guardada por outros espíritos, que nas aparências lembravam troncos de árvores
móveis, dotados de braços possantes e garras afiadas nas mãos e nos pés, que podiam escalar paredes e se fixar onde quisessem.
Pedras trazidas pelo bruxo apresentavam pinturas que representavam um deus vermelho cujos chifres se transformavam em cobras, e algumas serpentes de fato se manifestaram ao redor do trio a
partir do sangue. Tambores tocavam sozinhos, ou sob mãos e instrumentos de seres invisíveis. Ratos passavam e cães fantasmas latiam. Plantas trepadeiras tomavam conta das paredes e flores rubras desabrochavam.
Um sapo saiu da água fervente do caldeirão para pular no chão, respeitando os limites do círculo, do qual não se retirava, senhor de dois elementos, porém não do mundo.
Lobas haviam aparecido às dezenas. Uivavam fora da sede e a população comum que vagava pela noite começava a se assustar com a invasão. No entanto, estavam
atentas a um trabalho mais profundo do que atacar transeuntes. Suas gargantas se afunilavam em direção à Lua.
Mesmo um urso e um leão apareceram na praça central; e espectros de morcegos e escorpiões se reuniram em volta da poção que as bruxas preparavam. O caldeirão
soprou uma fumaça negra.
– Rendemos graças a Hécate e Cernunnos, que nos tornarão invulneráveis à magia das trevas! – Friga invocou as potências para o seu trabalho.
– Primeiro, um sarcófago impenetrável para os demônios. – Jogou pedaços de casca de cipreste.
Na sequência, deu a Cibele e Belanus avelãs torradas, que comeram, e atiraram as cascas na água que fervia. Folhas e cascas de choupo, cedro, teixo e salgueiro foram outros
dos ingredientes utilizados.
– Nem que tenhamos que parecer mortas, permaneceremos vivas – recitou Cibele.
– Mesmo que sejamos forçadas a desaparecer do mundo, não desapareceremos para nós mesmas. – Menta, cardamomo, alguns dentes de alho, espinhos e sementes de
mirra, flores de lavanda, folhas de tomilho e óleo de artemísia foram acrescentados à receita. Comeram amêndoas; por fim, jogaram ali pequenos frutos de beladona.
Beberam cada qual uma xícara do preparado e suas pupilas se dilataram, expandida não só a visão física como a espiritual. O fio das restrições
e da separação entre os planos fora estendido e cortado. A garganta de Friga ficou seca e Cibele tentava controlar sua taquicardia, acariciando o peito. O bruxo visualizou o deus cornífero diante de seus
olhos, sentado de pernas cruzadas, cercado por espíritos de animais. Não resistiu e se ajoelhou diante da presença imponente, cujo rosto lembrava o de um touro.
– Vamos render graças ao deus e à nossa deusa, que concedem as melhores pescas e fazem crescer os rebanhos de bois e as tropas de cabras e ovelhas, que retiram a cortina
escura para a multividente aurora. – A velha feiticeira falou com esforço.
Contudo, aquele Cernunnos se revelou uma farsa: sorriu com cinismo e se ergueu.
Antes de descortinar sua verdadeira forma, já provocara pavor, ódio e desgosto em Belanus: tratava-se de Asmodeus, que com um urro dispersou os espíritos da natureza, ferindo
alguns, e rasgou a cabeça do bruxo.
Seu outro braço se esticou até Cibele e arrancou-lhe as veias do pescoço.
– Como pôde profanar o nosso ritual? Como possui tanto poder? – A garganta da mais idosa e única sobrevivente ardia.
O monstro riu e disparou, prensando-a contra a parede com seu corpanzil. Levou-a à morte por esmagamento, cada um de seus ossos reduzido a migalhas.
– Pertencem agora ao senhor. – Aleister se materializou em um clarão azulado. – Vossa Majestade vai me agradecer pela ajuda?
– Eu poderia ter feito isso sozinho. Não tenho nada do que lhe agradecer.
– Claro! Mas graças a mim tudo foi mais rápido. Poderia ter levado algumas horas para penetrar neste esconderijo. – Ao lado do mago, havia um pequeno exército
de seres elementais corrompidos ou escravizados, de semblantes tortuosos, que desmontara as defesas espirituais do trio.
– Tenho a eternidade à disposição. Se quis ajudar, o problema é seu.
– Como preferirdes! – Provocativo o sorriso de Bruce Aleister; as almas de Friga, Cibele e Belanus, três pequenas chamas azuis, estavam na palma da mão esquerda do
demônio.
Os dedos se fecharam. Aquelas essências desapareceram.
Na verdade, tinham ido parar dentro do soberano infernal, mergulhando em trevas.
***
Aqueles eram tempos amargos para muitos. Como para Sir Edgar, que abdicara de suas terras e posses. Entregara tudo à coroa inglesa, com o objetivo de entrar para a Igreja.
Estava certo de que fora visitado por um anjo na noite da descoberta da traição da esposa, o que explicaria a luz forte que o despertara. Graças ao bom Deus, acreditava,
não seria enganado durante anos a fio, talvez criando um filho de outro pai.
Também deduzira que os demônios o haviam tentado e provocado sua fúria descabida, que teria levado outros homens à morte além do traidor Raymond, se seus poucos fiéis amigos não o tivessem detido.
Por tudo isso chegara à conclusão de que precisava buscar outros meios e caminhos.
– Padre, o que mais quero é servir a Deus, auxiliando esta humanidade corrompida, salvando ao menos alguns da perdição e do abismo. Para isso estou disposto a caçar
hereges e demônios, também como forma de agradecer ao anjo que me revelou a verdade – desabafou com o mesmo idoso sacerdote que fora até ele após a fatídica caçada, e que agora
o acolhia em sua igreja.
– Melinda dissimulava com perfeição e essa é uma das características das mulheres, que são criaturas insaciáveis. Um dia também estive
no mundo e compreendo o que está passando.
– Os últimos dias foram turbulentos. Os monstros do Inferno rondam minha alma e como senhor de terras minha atividade era por demais limitada. Sinto a necessidade de fazer muito
mais.
– Entregue-se sim a Deus, filho. Ou também temo por sua alma, por tudo o que já me contou. Desta vez acredito que a intervenção tenha sido certamente a de
um anjo… E quiçá da outra também. Mas não somos anjos. O que de mais próximo pode existir dos mensageiros e guerreiros celestiais na Terra são os cruzados.
– O que preciso fazer para me tornar um deles?
– Talvez isso estivesse mesmo escrito por Deus para o senhor. Ainda que haja livre-arbítrio, costumo pensar se para alguns indivíduos Nosso Senhor não traça
certos planos duros, mas precisos, belos apesar das dificuldades e medos. Quiçá seja seu destino tornar-se um caçador de demônios, em acordo com a Divina Providência.
– O que mais poderia desejar?
– Falarei com um amigo meu, um irmão da santa Igreja, o bispo Tharien, e logo lhe trarei uma resposta.
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