Distante de onde Gilles e Edgar se digladiavam, Antenor aguardava o que estava por vir em frente à catedral de Sevilha, perto de sua torre e campanário, La Giralda, de base quadrada e cerca de 101 metros de altura. Ao soarem os sinos das Completas, teria início a procissão, mas ainda não chegara ninguém.
Aparentando ser um simples jovem de cabelos castanhos curtos revoltos e olhos da mesma coloração, vestia uma camisa branca vincada, de mangas compridas, e uma calça apertada de cor semelhante à de sua pele.
"Sei que não deveria ter me encantado como me deixei encantar. Perdoe-me, meu Deus!" Trazia na cintura somente uma espada curta de guarda circular e mantinha os braços cruzados, reflexivo naquele momento à paisana. "Ainda mais por uma pagã. Se bem que para mim nada serviria de atenuante, já que meu dever é me manter longe da volúpia, de tudo o que é carnal. Nem cristã; nem pagã. Apesar de mais grave ser o encanto por uma pagã. Nunca vou me esquecer do modo como ela me olhou."
Vira à distância, havia cerca de duas semanas, logo que chegara à Andaluzia, uma bela cigana de cabelos pretos cacheados, sobre os quais estava fincada uma rosa, e braços delgados e ágeis, que o cativaram e guiaram sua atenção.
Não era alta, mas parecia ser, devido ao porte arrojado da figura esguia. A pele morena apresentava, sob luz diurna, o belo reflexo dourado das andaluzas. Até o pequenino pé era andaluz, pois parecia ao mesmo tempo delicado e confortável no sapato gracioso. Bailava, girava, rodopiava sobre um tapete persa jogado sob seus pés ao lado de uma fogueira, e todos os olhares ao redor convergiam nela, todas as bocas dos homens de seu povo estavam abertas e, de fato, enquanto dançava ao som de um tamborim basco erguido acima da cabeça, viva como uma vespa, vestindo um corpete dourado sem pregas e uma saia multicolorida que se inflava, as pernas bem formadas por vezes emergindo debaixo desta, seus ombros nus em destaque, parecia uma criatura sobrenatural, tanto que o cavalo sobre o qual o cruzado estava montado se agitara, e seu relincho fizera com que fosse notado.
Ela olhara na direção do estrangeiro, chamejando os olhos comparáveis a carvões. Antenor cingira a cabeça do seu corcel com a mão, como se dotada de garras, puxara sua crina e se afastara tanto para não cair em tentação quanto para não assustar aquela gente. Apesar de pagãos e da má fama de ladrões traiçoeiros, os ciganos, enquanto cantavam e dançavam, pareciam pessoas puras e alegres, e que por isso mereciam a vida como qualquer outro filho de Deus. Não os flagrara fazendo mal a ninguém.
"Matei um demônio naquela mesma noite. E a imagem que vi refletida no sangue do monstro foi o rosto dela, com os olhos que não paravam de me fitar. Aqueles dois carvões acesos… Terá sido um último artifício do Inferno para me fazer cair em tentação? Não daquela criatura, que já estava morta, mas da boca monstruosa de onde proveio, buscando me atrair e devorar? Ora me sinto feliz por ter recebido o olhar dela, o que não deveria sentir, ora me pergunto se deveria nutrir algum receio, pois posso ter sido aprisionado, transformado em um escravo espiritual, por meio de um feitiço.
Não, não, quanta besteira! Sirvo apenas a Cristo. Como poderia o sangue Dele, que milagrosamente até nos torna imunes à morte por idade ou doença, ser mais fraco do que a magia de uma cigana? Talvez ela nem tenha dado importância à minha aparição, apesar de eu sentir que os olhares que trocamos foram fortes, genuínos. E se o Inferno estivesse nela mesmo sem que ela soubesse? Os piores grilhões não são os do sangue e da carne, mas os que se ocultam nas regiões celestes, invisíveis aos olhos dos homens. É o que está na Escritura. Mas justamente pela fé que nos ergue até os Céus mais elevados, devo cessar de temer o mal!" Respirou fundo. "O que quer que tenha sido, passou, e que Deus perdoe meu pecado! Só peço também para que a proteja, pois não me pareceu uma alma perdida. Que conte com Sua misericórdia, Senhor! Que Sua Luz possa alcançá-la e, quiçá, convertê-la." Persignou-se na mesma hora em que apareceram os réus e seus familiares, escoltados por cavaleiros e seguidos por uma comitiva de monges e padres, alguns destes provenientes das prisões secretas, que traziam consigo círios e candeias. Todos eles foram parando por ali, onde iriam se organizar melhor.
A Procissão da Cruz Verde era conhecida por esse nome devido à bandeira branca com uma cruz dessa cor em seu centro, levada pelo fiscal do Tribunal da Inquisição, o cavaleiro que iria mais à frente. Da catedral de Sevilha, dirigir-se-iam à praça principal obedecendo a uma ordem pré-determinada.
Logo atrás do fiscal, vinham os falsos testemunhantes, obrigados a pagar uma quantia em dinheiro e a usar, costuradas nas roupas durante dez anos, línguas de pano grosso.
Na sequência, havia os réus confessos arrependidos de heresias consideradas leves e médias. Vestiam sambenitos, tabardos em baeta amarela e vermelha, os seus com uma cruz de Santo André – em X – traçada no peito. Precisavam cumprir penitências e pagar uma multa. Se não tinham como custeá-la, passavam alguns anos presos ou em exílio.
Mais atrás, em sambenitos de meia cruz, viam-se os arrependidos de praticarem e/ou divulgarem heresias sérias, como as que negavam a autoridade do papa. Depois de enforcados, e após uma multa paga pela família à Igreja, seriam ao menos admitidos no Purgatório.
Seguiam-nos os condenados à morte na fogueira: réus que não tinham abjurado de graves teses ou práticas heréticas; os pagãos que se recusavam a se converter ou cujas conversões haviam sido demonstradas falsas, apenas aparentes; os que se negavam a admitir seus erros a despeito de diversas provas; e os reincidentes em heresias leves ou médias, chamados de penitentes relapsos. Todos estes traziam sobre as cabeças chapéus cônicos, grotescos, pintados com símbolos infernais, e seus sambenitos retratavam cenas do Inferno, monstros e fogo, as máscaras de aparências demoníacas retiradas dos rostos apenas no momento da execução. Eram tristes figuras, sempre em marcha pesarosa.
Depois delas que se abria o espaço para os parentes dos réus, que, se tinham condições para tanto, custeavam os processos por ordem do Estado. Caso contrário, contribuíam com o que lhes fosse possível.
Por fim, completando o séquito, havia os monges e sacerdotes. Importante lembrar que, uma vez interrogados pelo Tribunal da Inquisição – que na teoria era montado para salvar, não para condenar –, era a justiça secular quem providenciava as execuções dos réus considerados culpados. O Corpo de Cristo não podia manchar suas mãos de sangue e, caso se arrependessem in extremis, os condenados à fogueira tinham sua pena abrandada. Eram enforcados e suas almas encaminhadas para o Purgatório, a não ser que denunciassem comparsas, e então seriam absolvidos, sob a condição de colaborarem o máximo possível com os próximos interrogatórios.
"Será preciso tanto para manter a unidade da Igreja? Sobretudo com esses trajes e máscaras, que mais parecem tecer um elogio ao poder do diabo e à sua capacidade de arrastar almas ingênuas? Algo assim não atrai os demônios e os entusiasma ao invés de mantê-los afastados e mais receosos?
Nunca falei com o cardeal Torquemada a esse respeito. Agora que ele é o inquisidor-geral, terei essa coragem? Tenho a liberdade, porém me falta valentia.
Deus nos deu o livre-arbítrio, a todos nós; até mesmo para nos acovardarmos. No entanto, não deveria recear uma conversa séria com um sacerdote, um homem que está a serviço da verdade e do bem. Preciso questioná-lo: essa crueldade é verdadeiramente necessária? Os demônios não estão desaparecendo. Já me disseram que as profundezas do Inferno são gélidas, mas não seriam estas cercadas por imensas labaredas?
Será a primeira vez que acompanharei um Auto da Fé, mas já sei um pouco a respeito. Recentemente li inclusive um velho processo contra uma camponesa acusada de praticar o maometanismo aqui na Andaluzia.
Lorenzo Cavalcanti me falou certa vez que, em contraposição a Cristo, que nos disse para não julgar, certas decisões do Tribunal da Inquisição são equivocadas e pecam pela precipitação, além do uso da tortura, que pode induzir até um inocente a se confessar culpado, pois as dores sofridas são abomináveis.
São Paulo nos disse para estarmos preparados para julgar até os anjos. Mas que 'nós'? Homens como nós? Ou homens como ele? Eu não me sinto preparado para tanto." O processo sobre o qual refletia dizia respeito a uma mulher chamada Carla Ordoñez, vítima da inveja de algumas vizinhas, que a acusaram de praticar a religião muçulmana.
Embora se soubesse que a fé de Maomé persistia mais sob a forma de seitas marginalizadas nas ilhas que antes formavam a África e a Península Arábica, como, por exemplo, a malfamada Ordem dos Assassinos, acreditava-se também na possibilidade que lá e cá nas ilhas europeias pudessem existir remanescentes, receados por se temer um reavivamento do Islã.
Para confirmar a culpa da denunciada ou inocentá-la, a Santa Inquisição recorrera primeiro à tortura de Maria Zamora, sua amiga mais próxima.
Como Zamora não resistira ao calvário dos interrogatórios, a confissão se concretizara e Carla fora presa e colocada sob a responsabilidade do braço secular, queimada em uma pira no dia 13 de junho de 1945, após cerca de três anos de cárcere e tortura.
Tomada como base aquela leitura, e diante da falta de provas efetivas que muitos casos apresentavam, Antenor conduziu sua reflexão ao seguinte ponto: "Com sinceridade, não compreendo o porquê de nem todos aceitarem a fé em Cristo, que é a única que nos oferece garantias de felicidade e, quando esta se aparta de nós, de esperança. Entretanto, sou da opinião que a vida de todo ser humano, feito à imagem e semelhança do Criador, deveria ser protegida. Apenas os demônios merecem a perseguição, pois são os primeiros a nos perseguirem.
O ensinamento de Cristo foi feito para todos, não para alguns, e nunca é tarde para receber o amor de Deus. Quem nunca pecou, que atire a primeira pedra! Trata-se de uma verdade contida na Sagrada Escritura, e não deveríamos nos achar merecedores de atirar pedras em nossos irmãos se até mesmo Jesus protegeu uma pecadora. Assim, em lugar de eliminarmos os que parecem contrários a nós, por que não esperar que se convertam ao observarem nossa conduta correta e exemplar? As execuções resultam do medo, do temor que a justa fé se torne escassa. Seria Deus menor do que o medo? Quem tem Deus dentro de si não pode temer que tudo venha a ser perdido, que o Martírio tenha sido em vão. Quem possui Deus em seu interior pode reconstruir a Igreja, mesmo que esta fique em cinzas e tenha se tornado o último cristão da face da Terra.
É verdade que existiram e ainda existem heresias preocupantes que contestam a autoridade dos príncipes e barões, que sustentam que nada deveria ser pago a César, que tudo pertence a Deus e à sua comunidade. Semelhantes seitas podem ser perigosas, levar a rebeliões sangrentas contra as autoridades legítimas, que São Paulo nos disse que devemos respeitar. E a Igreja no passado agia justamente para evitar as arbitrariedades dos senhores, a violência motivada pelo medo da revolta. As penas eram duras somente contra os verdadeiros subversivos… mas agora as coisas mudaram; e mesmo cidadãos que pagam seus impostos com honestidade podem acabar mal. Quantas decisões foram realmente equilibradas e sensatas? Em quantos julgamentos as investigações foram atentas e fizeram com que o braço secular fosse menos violento do que seria sem a Inquisição?
Não seria o momento de nos perguntarmos se não estamos nos deixando vencer pelo medo, que é veneno para nós e néctar para os demônios?" Os sinos tocaram. Era chegado o momento da comitiva, já organizada, deixar a área da catedral, ao redor da qual tomara forma uma discreta multidão, que Antenor nem vira se avolumando, como se já estivesse ali desde sempre, oculta nas trevas, de uma hora para a outra adquirindo cabeças. Rostos. Dezenas deles.
Apesar dos pesares, seguiu a procissão, que, sob vaias, fezes, pedras e insultos lançados contra os condenados, se dirigiu para as cercanias do estrado reservado na praça, construído para o Auto da Fé.
Foi realizada, de frente para este, uma oração conjunta. Permaneceriam por lá, rodeados por cavaleiros da guarda real da Andaluzia e do alcaide de Sevilha, até o nascer do Sol, quando as atividades seriam retomadas.
1 Para a obtenção de informações também sobre outros hereges.