– Por que não começa logo a compor uma canção contando como o seu senhor salvou o rei, Diego? Você estava lá, foi uma testemunha privilegiada!
– É, sabe que estou pensando muito nisso ultimamente? – respondeu a outro escudeiro fingindo entusiasmo, enquanto tomavam juntos uma cerveja que de tão espessa seria possível mastigá-la.
Diego deveria ser um homem orgulhoso de seu amo, de servir ao cavaleiro mais prestigiado do reino. Tudo o que conseguia experimentar, no entanto, era inveja e incômodo.
Certa noite, recebeu uma visita inesperada:
– Dom Henrique? O que o traz aos meus humildes aposentos? – Arregalou os olhos, espantado, ao abrir a porta de seu quarto no castelo, bem abaixo do andar onde ficavam os nobres, e ver à sua frente a figura do conde Henrique de Toledo, que chegava com um sorriso no rosto.
Poucos dias depois, Miguel e outros cavaleiros receberam suas respectivas cartas de convite, em pergaminhos enfeitados com fios de ouro e prata: anunciavam um torneio que seria realizado no interior de Castela. E de uma forma ainda mais intensa do que a habitual, pois se trataria de um treinamento para lutar contra demônios. Afinal, era o que diziam as cartas, não podiam depender totalmente dos cruzados.
O filho do alferes-mor ficou ansioso para participar. Mas Isabel veio adverti-lo:
– Quem gosta de participar desse tipo de torneio é o conde Henrique. Você nunca compareceu a nada do tipo. É bem diferente dos torneios que organizamos em Burgos: por mais que aqui você seja imbatível, no espaço aberto há brechas para a deslealdade, a trapaça e o engano. Se eu fosse você, meu filho, não iria.
– Mas eu não sou a senhora, que fala como se eu não estivesse habituado a lidar com ataques desleais. O que foi o atentado do assassino maometano contra a vida do rei? A senhora já se esqueceu? E fui convidado! Se não aceitar, irão me considerar um covarde.
– Os homens são alimentados pela inveja. E se alguns cavaleiros se juntarem para derrotá-lo e capturá-lo, para depois cobrarem do seu pai um altíssimo resgate? Muitos devem estar ansiosos para desfazer a lenda do invencível Miguel, o salvador do rei. É por essa razão que o convidaram. – "Henrique, seu desgraçado! Está fazendo isso só para me provocar. Pode sim ser uma emboscada para o meu filho! Com consequências piores do que um mero pedido de resgate. Estou com um mau pressentimento; não posso permitir que Miguel vá, por mais valente que seja", era o que passava pela mente da mãe do cavaleiro.
– Não sou invencível. Mas provarei que não posso ser derrotado com facilidade.
– Você é muito teimoso. É até possível que teçam alguma armadilha usando um demônio. – Desta vez resolveu expor o que pensara. – Que espécie de treinamento contra demônios pode ser elaborado entre os que não são cruzados?
– Eu não sei. Apenas sei que irei.
Não havia como convencê-lo. Um treinamento contra demônios ela própria já tivera: sua espúria convivência com o conde Henrique, que ainda temia que viesse a público caso tentasse confrontá-lo.
"Não deveríamos subestimar os demônios humanos", um pensamento que a deixou cabisbaixa, mas, horas depois, em uma faísca, despontaria uma solução plausível. Uma que lhe permitiria tentar algo pelo filho sem que precisasse se arriscar:
– Homens como você, e também como o seu pai e o rei, deveriam brandir o gládio espiritual contra esse costume diabólico, esses malditos eventos que fazem com que um cristão se lance contra seu irmão de fé em um duelo mortal. – Incitado por Isabel, o bispo Marcos falou a respeito com Miguel. Era um inimigo declarado dos torneios, sobretudo dos realizados fora da capital. – Que sentido há nisso? Somos filhos de Deus! Dessa maneira só posso questionar a sinceridade de propósito dos cavaleiros, que para enfrentar demônios se armam de espírito agressivo e retornam muito piores, quase tão perigosos quanto aqueles que pretendem confrontar, semelhantes a bestas do Inferno!
– Não exagere, Excelência. Se é assim, está claro que também não vê os cruzados sob um ângulo favorável. – A resposta de Miguel, em um tom que continha um certo enfado.
– Não é um exagero. E de fato os cruzados são homens que me intimidam. Para ser ainda mais sincero, que me dão medo. Não me transmitem o menor amor cristão.
– É o trabalho duro que são obrigados a fazer. Como Vossa Excelência Reverendíssima se tornaria se tivesse que caçar demônios?
– Não sei, mas não importa. Não sou membro da Ordem do Graal, não sou um padre vermelho, e portanto não quero que se torne igual a eles. Já roguei ao rei a fim de que empregasse seu poder de persuasão para impedir a realização desses torneios bárbaros e, se necessário fosse, a oposição viril, em nome da utilidade da Igreja de Deus, que se não promove o amor e a paz de Nosso Senhor não faz o menor sentido! Inclusive alguns dos meus irmãos estão de acordo. Falei com o abade Bernardo e ele afirma que os que ostentam e perecem nessas feiras deveriam ser privados de sepulturas.
– Mas dessa maneira ele estaria se igualando aos pagãos e aos bárbaros! Quem é ele para julgar seus irmãos de fé e privá-los de um túmulo, fazendo com que circulem como espectros até o dia do Juízo Final?
– Também julguei a posição dele exagerada. Os torneios com normas mais rígidas, como os realizados aqui em Burgos, filho, ainda são aceitáveis. A Igreja até poderia ceder um pouco quanto a eles. Mas estes no interior do reino não passam de pura barbárie, para a qual só afluem os sedentos de sangue ou os ávidos por muito ouro. Dom Henrique, por exemplo, une as duas coisas. Você não é nem uma coisa nem outra, então o que pretende fazer por lá? Enquanto as mortes aqui são acidentes, lá são comuns, e disputas de corte podem se estender a tramoias, armadilhas e emboscadas.
– Por que armariam uma emboscada contra mim? Apenas para obter um resgate gordo do meu pai? Há nobres mais ricos do que o alferes-mor.
– Mas qual o valor de um homem que já salvou a vida do rei? Ademais, pense em quantos o invejam por sua postura, sempre magnânima; por sua força, invicto nas justas; por sua esposa, tão bela, nobre e bondosa… – Com a alusão a Maria Cristina, Miguel resolveu refletir. Precisava pensar também na mãe de seus futuros filhos, e se lembrou da nuvem negra que ela mencionara, algo que em um primeiro momento não lhe parecera digno de atenção, e que depois associara ao assassino do Velho da Montanha. Mas e se, isso somado às preocupações do bispo e de sua mãe, fosse um aviso de Deus quanto ao torneio?
Henrique, por outro lado, não via a hora que o filho do alferes-mor aceitasse o convite. Todas as noites, ao se sentar em sua poltrona, punha-se, pensando nisso, a acariciar sua espada como se fosse uma curva de mulher. Reluzia o rubi no centro da empunhadura em forma de dragão; e também tinha em mente outras amantes além de Isabel, porém esta, mesmo sem ser a mais bonita nem a mais jovem, era, sem dúvidas, a mais desejável por tê-lo rechaçado. As rebeldes eram sempre as mais saborosas. Como uma carne difícil de assar, uma delícia malpassada! E o conde gostava das mais sangrentas, assim como nas disputas, como quando simulara uma batalha, em um dos torneios, contra o marquês de Vega, um sujeito magro demais, de pescoço descarnado, a barbicha loira e o ombro esquerdo ligeiramente mais alto do que o direito, cujo exército era famoso pelas lanças mais afiadas de Castela e pelas cargas mais violentas ou mesmo temerárias.
Contudo, enquanto seu oponente apreciava o espetáculo – nos torneios, seus cavaleiros ostentavam belos penachos coloridos nos elmos e armaduras banhadas em ouro e prata –, seus homens tinham sido incitados a dar o máximo, e ninguém questionava nada quando os olhos do conde liberavam um brilho rubro inexplicável. Perdiam parte da vontade própria ao ouvirem suas palavras.
Era também do agrado do conde de Toledo usar a música para intensificar as ações, com os homens que tocavam os clarins e os tambores prontos para executarem composições de sua autoria. Estas faziam o sangue dos soldados ferver. Ainda mais quando pouco antes haviam falado com ele; ou bastava que o tivessem escutado.
Em campo aberto, suas tropas massacraram as do adversário. Alguns dos homens desmontados foram pisoteados pelos cascos dos cavalos dos miles de Henrique e foram imediatamente arrastados por seus criados; outros se levantaram e tentavam recuperar suas montarias. As espadas deslizaram para fora das bainhas, emitindo silvos metálicos; gritos exaltados, poeira e o tropear dos cascos saturavam o ar, logo substituídos por urros de desespero e jorros de sangue. O senhor de Vega, a despeito de sua fúria pelas perdas, não pudera fazer nada para impedi-las e terminara como refém. Sua família precisara pagar o resgate, exorbitante segundo o marquês, mas seus protestos haviam sido em vão.
– Como meu senhor pode estar indeciso se participar ou não? É uma questão de honra. – Diego assim replicou às dúvidas de seu amo. – Se não comparecer, muitos o considerarão um covarde, coisa que sei que meu senhor não é nem nunca será. Porém terá que provar sua coragem sempre, para desdizer os hipócritas. Poderão afirmar inclusive que se acomodou ao se tornar o favorito do rei, e então rirão e tramarão às suas costas, pois pensarão que lidam com um homem que adormeceu sobre seus louros. Enquanto agora não há nada a temer, pois estarei ao seu lado e nenhuma armadilha surtirá efeito. Antes eu caia em seu lugar!
– Agradeço-lhe por sua preocupação e por sua disposição em me servir, Diego. Fico feliz por ter um amigo tão valioso ao meu lado. Ando cansado com tantos questionamentos.
– Disso me dei conta. Mas não há motivos para tanto, com a força que o senhor possui. Estou certo de que sairá vitorioso mais uma vez. – Ao menos, o cavaleiro teria alguns dias para se preparar: durante o período da Quaresma até a Páscoa, que antecederia o torneio, qualquer batalha estava proibida segundo as normas da Treuga Dei, que vetava práticas violentas aos domingos e em dias e períodos consagrados à fé.
Nos torneios dos quais já tomara parte, Miguel enfrentara não apenas castelhanos como estrangeiros de diversas terras, entre os quais homens da França, prenhes de arrogância, da Inglaterra, que não admitiam ser tocados de forma nenhuma antes das disputas, recusando até simples apertos de mão, da Germânia, em geral ainda mais frios e distantes, e da Toscana, do seu ponto de vista os mais agradáveis.
Eram muitas as recordações, a começar pelos preparativos: os escudeiros limpando espadas e cotas de malha, os ferreiros pregando as ferraduras nos cavalos e os criados escovando suas crinas, decorando os arreios com sinos e enfeites preciosos. Seu pavilhão branco, vermelho e dourado, maior do que uma casa, dominava o centro do acampamento. O príncipe dos arcanjos, de asas abertas no estandarte, vigiava sua entrada.
No interior, Miguel e alguns outros jovens cavaleiros se espalhavam ao redor da mesa central, ainda de camisa e calções. Um cantil de vinho passava de mão em mão. Miguel era o único a não beber antes dos duelos.
– Neste canto, nosso probo Dom Miguel, que muitos chamam de o cavaleiro de ouro, ou de o querido dos anjos! – O arauto o anunciara, enquanto ao lado do filho do alferes-mor postara-se o portador do brasão da família. O estandarte, em uma versão mais agressiva em comparação ao que se erguia diante da tenda do cavaleiro, mostrava São Miguel perfurando o pescoço de um dragão e, ao seu redor, rosas com mais espinhos do que pétalas. – Neste outro, monsieur Denis, vindo da Auvérnia, disposto a desafiar e vencer todos os guerreiros de Castela, provando assim a superioridade dos cavaleiros francos! – Um homem que sem seu elmo ostentava cabelos negros longos e lisos porém escassos na fronte alta, pálido e de nariz aquilino, os olhos azuis frios; vestia uma armadura enegrecida, sem adornos a não ser pelo capacete sofisticado, que lembrava a cabeça de um touro. – Nas terras que governa, é conhecido como “o minotauro”. – E chegara ao torneio com pompa, acompanhado de cento e vinte cavaleiros e mil soldados a pé, os homens que o serviam, afora seu cunhado e alguns irmãos, certos de que testemunhariam sua vitória.
Tratara-se do adversário mais duro que Miguel enfrentara em uma disputa: os dois caíram ao mesmo tempo ao se tocarem com as lanças e, uma vez no chão, os escudos se partiram com os golpes fortes que desferiam e o duelo de espadas tivera de ser mais lento e pensado, até Miguel descobrir uma brecha na postura de seu oponente em um átimo e dessa maneira prejudicar seu capacete e levá-lo ao solo.
Pusera o pé direito sobre o peito do francês e, com a ponta da espada apontada para sua garganta, obtivera a rendição, a vitória, as flores, os aplausos e o beijo final de Maria Cristina, que o abraçara, toda aflita.
Se a luta era emocionante, mas tinha gosto de sangue, saborear o triunfo tornava os lábios da esposa favos de mel. Algo que o conde Henrique preferiria ver queimar, espantando as abelhas; seu deleite residia no sabor da carne degustada durante a guerra. Quando um homem como sire Denis vinha enfrentá-lo, com seus soldados, tinha o maior prazer em promover a carnificina. Colocava em fuga os adversários pelos vales e vinhedos. Deixava que muitos morressem pela estrada devido a hemorragias, e que outros tivessem seus cadáveres atirados à água ou antes fossem lançados vivos e se afogassem.
Miguel também tinha memória agradável de outro combate, no qual enfrentara um catalão que ostentava uma cota de malha decorada com fios de prata por baixo da túnica brasonada de cor turquesa. Parecia ser um indivíduo de trejeitos sofisticados, que recebera, antes de subir em sua montaria, um anel dourado de uma dama de vestido roxo, seus cabelos ocultos sob um lenço vermelho preso por um cordão amarelo, acompanhada por uma aia de vestido rubro, que exibia bastos cabelos loiros, adornados por uma tiara em prata repleta de pequenas pedras brilhantes, que dera ao homem um elmo encimado por uma estrela de seis pontas. A primeira era uma mulher casada, que o iniciara nas artes do amor – não carnal, obviamente, mas o ensinando a compor versos e cultivar o inacessível amor cortês –, como era costume na Catalunha e na Aquitânia. Um hábito que Miguel não aprovava, afinal poderia estimular o adultério (diferente do que ocorria em Castela, onde, por exemplo, Diego deixara de louvar Maria Cristina após o casamento). E já não simpatizava muito com catalães. De qualquer forma, ficara fascinado com a aia da dama, com seus cabelos luminosos, e ele mesmo tivera dificuldades para controlar seus pensamentos adúlteros.
O cavaleiro colocara a mão esquerda no peito, o que indicava o quanto estava honrado com o presente da nobre dama, da qual não passava de um humilde vassalo. Disputaria o torneio para se tornar merecedor de tamanha dádiva.
Seu jovem escudeiro sofria para segurar o cavalo, que aparentava estar bastante ansioso. Em Burgos, as disputas respeitavam os costumes de todas as nações, e por isso certos cerimoniais podiam ser demorados.
Com frequência ocorriam apresentações teatrais ou de menestréis, como antes dessa justa com o catalão. Fora representada uma peça comovente na qual o cavaleiro, antes de morrer, entoava uma canção de amor à sua espada e oferecia sua armadura a Deus. O céu então se abria para a descida das hostes de anjos, encarregados de marcar o peito do herói com a cruz e de levá-lo armado para o Paraíso.
– Conhece o Céu, cavaleiro? – indagara-lhe o catalão antes do início do confronto.
– Como poderia, se estou vivo? – replicara-lhe Miguel.
– Pois eu farei com que veja estrelas à luz do dia! – Ao que o filho do alferes-mor não pudera evitar sorrir, apesar da origem do outro contendente.
Quando o combate se dera, o cavalo em excessiva agitação acabaria por prejudicar o estrangeiro. Este chegara em desequilíbrio sobre a sela para o segundo choque com Miguel e fora ao chão.
O castelhano descera e, no combate em terra, encontrara um adversário perigoso e aguerrido, mas que conseguiria suplantar: rasgara a túnica brasonada e partira a estrela de seu elmo.
Vencido, o catalão aceitara sua mão com um sorriso desajeitado e, após o torneio, saíram juntos para beber em uma taberna e riram bastante. Miguel, que aos poucos deixava de lado seu preconceito em relação aos catalães, não resistira e indagara sobre as mulheres que o acompanhavam.
– Ficou encantado, não foi?
– Sou um homem casado e levo a sério meus votos. Mas admirar certas belezas femininas não acredito que seja pecado – replicara o valente cavaleiro de Castela.
O rival no torneio soltara uma risada e emendara:
– Como o senhor é divertido, Dom Miguel! Mas o que lhe digo é que para mim são da mesma forma inacessíveis, pois a jovem aia está prometida e minha senhora é casada, apenas um objeto inatingível de minha devoção, pois ao contrário de seu marido, que também estava presente no torneio, não tenho terras nem soldados sob meu serviço. Se ousasse algo, seria um homem morto. Sou apenas um terceirogênito que não quis se tornar padre e ainda não arrumou uma esposa rica! – As palavras daquele cavaleiro fizeram o filho do alferes-mor refletir a respeito de Diego: "E se o amor dele não fosse, naquela época, apenas um objeto de cortesia? E se ele, meu bom escudeiro, estiver sofrendo pela paixão por minha esposa? E eu aqui, encantado por outra mulher, embora ame Maria Cristina! Talvez meu amor seja menos digno do que o de um homem de posição inferior! Tenho que ter vergonha. Tanto em consideração à minha esposa como pelo possível sofrimento do meu servidor, que poderia dar a própria vida por sua senhora e minha mulher, mas continua sendo meu servo e amigo fiel. Como é complexo o amor!"
***
– Dom Henrique de Toledo e outros que defendem esse gênero de torneio, por mais elevadas que sejam suas posições, por mais que seja nobre seu sangue, caem nos sete pecados capitais, pois os ímpios e vaidosos andam nesse circuito. – O bispo Marcos dava início à sua pregação de domingo de Páscoa. Terminara a representação da Visitatio sepulchri, que se concluíra com o anúncio de que o Salvador ressuscitara, feito pelas mulheres que haviam encontrado um anjo no túmulo vazio, interpretadas, no drama litúrgico, por rapazes virgens. – Um cavaleiro inveja outro que é considerado mais forte; um fere o outro, o maltrata e pode até matar; essa gente é tão obcecada pela vaidade que pensa que os bens espirituais de nada valem; tomam as armas e exigem resgates dos adversários presos; extorquem os camponeses com exações para organizar o evento; promovem festas e comem superfluidades; assediam as mulheres impudicas. Ou seja, praticam a soberba, a inveja, a ira, a acídia, a avareza, a gula e a luxúria. Mas fazem ouvidos moucos! Alguém por acaso vê o conde de Toledo e seus partidários na Santa Missa? Nunca participam.
Infelizmente, as palavras do bispo seriam despejadas em vão. Miguel já estava decidido a ir, inclusive para fazer como o catalão: mostrar-se digno do amor de Maria Cristina, para ele acessível, que porém via maculado.
Da igreja de volta ao castelo, na iminência da despedida, deu-se um beijo diferente de todos os anteriores em sua vida. Silencioso; e lento, muito lento, ainda que macio e úmido. Arrastou-se até sua face, quente e acolhedor. O silêncio continuava. E o deixava inquieto.
Maria Cristina, ao contrário, ouvia ruídos demais para conseguir falar. Esforçava-se para só escutar a música interna, que era, como um salmo amoroso, como um trecho do Cântico dos Cânticos, a que tentava transmitir ao amado. Ele, no entanto, talvez estivesse surdo.
– Quando retornar, espero que possa lhe dar uma nova alegria. – Miguel conseguiu dizer.
– E que nova alegria seria essa? A minha felicidade está garantida, desde que regresse.
A voz do marido silenciara o restante. A quietude tornara-se mútua. E naquele espaço vazio comum, era mais fácil deslizar para o amor.
– Quero ter um filho com a mulher que amo.
– E que mulher seria essa? – perguntou-lhe em tom jocoso.
– Se lhe dissesse que é uma Maria, o que acharia? – Sabia que a esposa não gostava de ser chamada apenas por Maria, e sim por seu nome completo ou somente como Cristina, que, por mais devota que fosse à mãe de Deus, soava melhor aos seus ouvidos, até por ser menos comum e aludir a Cristo.
Contudo, naquele contexto, o humor só aveludou a atmosfera, o riso feminino se fundiu aos dedos fortes que acariciavam os cachos sadios e a mão direita de Miguel acarinhou com suavidade o ventre da mulher. Imersos em si mesmos, beijaram-se desta vez em meio ao fogo que se erguia, originado das faíscas que eclodiam dos corações.
Não perceberam Diego, que atrás da porta não segurava o escudo de seu senhor e sim um boneco presenteado-lhe pelo conde Henrique, que em muito lembrava o melhor cavaleiro de Burgos, ainda que com o peito esburacado.
***
Chegada a manhã do torneio, o filho do alferes-mor trouxera consigo homens de sua confiança e da de seu pai e de seu sogro.
"Muitos entre os que tomam parte destas justas são incrédulos, hereges, impiedosos, presunçosos, jactanciosos, falastrões, homicidas, invejosos, ladrões, glutões e adúlteros. Estão afogados nas profundezas do mal!" Miguel se lembrou das palavras do bispo Marcos, "mas eu não sou um desses muitos". Só queria provar o seu valor.
Os corcéis bufavam. O Sol abrilhantava o verde da relva. Um vento forte antecipou o estrondo sobre a terra, gerado pelos dois exércitos que investiram um contra o outro em uma cavalgada furiosa, autorizada pelos tambores dos árbitros, que, como os homens de Henrique, mantinham seus rostos em estreito sigilo. Os juízes encobertos por véus e máscaras escuras como as túnicas que alcançavam seus pés; e os segundos em armaduras negras cerradas, com destaque para o cavaleiro que partiu de trás, de cujo elmo escapava o reluzir de um par de olhos verdes sem nenhum contorno.
A guerra simulada, para o desespero do filho do alferes-mor, revelou-se uma guerra efetiva e avassaladora. Um desastre que se estendeu pelo vilarejo mais próximo e ceifou as vidas de camponeses despreparados, que tiveram suas casas incendiadas, seus poços e moinhos destruídos por espadas, maças e lanças que não se quebravam mesmo ao se chocarem com os materiais mais duros e suas crianças capturadas para servirem como escravas nas terras de Henrique.
A verdade era que nem os juízes e muito menos os guerreiros em armaduras pretas eram humanos, e dizimavam com golpes secos os valentes amigos e companheiros de Miguel, cujas armas se rompiam ao primeiro contato com as que aqueles demônios portavam. Nenhuma veste resistia, todas eram perfuradas com facilidade. Os inimigos nem viam necessidade de procurar brechas.
Miguel necessitou de seu escudeiro, porém este desaparecera. Ao se chocar com o cavaleiro de olhos verdes, o filho do alferes-mor arrancara-lhe o elmo. Só que sua lança se partira, e seu capacete também voara longe devido ao golpe simultâneo do oponente, conquanto ambos tivessem se mantido sobre suas selas.
A revelação do rosto, a pele de uma opacidade esverdeada, os cabelos longos em uma tonalidade prateada que tendia também ao verde, traria consigo consequências inesperadas: nas costas do adversário brotaram asas de penas esmeraldinas, que continham olhos que se abriram para testemunhar melhor e registrar o fim de Miguel e seus amigos.
– O que são vocês? Como aquele miserável teve coragem de evocar criaturas do Inferno para acabar comigo? Desconheço o motivo que levou esse maldito a me detestar, mas não teria bastado uma emboscada com bons homens, sem envolver tanta gente inocente? – questionou Miguel, com o rosto sujo de sangue.
– Compreendo a sua angústia. – O cavaleiro verde soltou sua lança, embora intacta, e desembainhou uma espada esmaecida da mesma cor. – Mas reflita: não existem inocentes. O ser humano é sempre culpado. Todos algum dia desejaram o mal para no mínimo um de seus semelhantes, e isso tem uma retribuição. Nenhum pecado passa impune, ou Adão ainda estaria no Paraíso.
– O seu discurso é estranho para um monstro do Inferno. – Olhando em volta, difundiam-se chamas, gritos, e havia sangue respingado em muros derrubados.
Miguel não podia ter nenhuma dúvida da malignidade do rival, que ostentava a pior face da violência, sereno, sem o menor remorso.
– Ao contrário dos outros aqui, tenho direito a um pensamento próprio, pois não provenho de cadáveres ou ossos reanimados, ou de pedras e pedaços de metal. – De fato, havia ali, debaixo das armaduras, corpos putrefatos animados pelas almas de demônios convocados por meio de magia negra; e o mesmo ocorria com esqueletos ou ainda estátuas, além de armaduras vazias, conduzidas pelos espíritos contidos nelas, seus selos gravados no metal. Todos obedeciam à vontade do evocador, almas primitivas gratas pelo prazer momentâneo de fazerem vítimas no mundo físico. – Dizem que mudei porque fui possuído. Mas isso não interessa a você. – Miguel tentou se defender com a espada, mas o golpe recebido foi tão forte que quebrou a lâmina e o derrubou do cavalo, que fugiu em disparada. Onde Diego fora parar? De qualquer forma, o pobre escudeiro pouco poderia ter feito.
Pegou outra espada, caída no chão, que pertencera a um dos inimigos, um dos poucos que algum de seus companheiros conseguira abater, e encarou com esta o adversário sobrenatural.
– Saiba que este é só o início. Algo que acredito que lhe interesse é que Henrique não quer apenas a sua morte. Você não passa de um pequeno obstáculo. Ele quer este reino. E sabe o que mais o motivou a dar início a esta empreitada? Doña Isabel, sua mãe. Não porque a ame, mas porque ela o enjeitou e Henrique se sentiu usado. Com o trono, nenhuma mulher poderá rechaçá-lo, nem mesmo dona Isabel, e quem irá usar quem? – Estas palavras paralisaram o filho do alferes-mor. Como aquele monstro ousava falar de sua mãe? Seu estômago embrulhou e seus braços fraquejavam.
– O que diz é mentira.
– O trono será a prova que ninguém pode simplesmente dizer não a um homem especial. Pena que você não é um e por isso não estará aqui para testemunhar a conclusão das coisas. – Um ataque certeiro decepou o braço direito do cavaleiro meramente humano.
O inimigo, que seguia a cavalo, teria a seguir desferido o último golpe, em meio ao réquiem de despedida da existência terrena de Miguel, com as trevas que cada vez mais se avolumavam ao redor dele. Isso se uma luz não tivesse passado, para, sem vento, levá-lo consigo. Fez com que o homem de rosto verde atingisse o vazio.
Ao perceber que a vítima se fora, o estranho cavaleiro já sabia com quem estava lidando.
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