Raja meditava entre as matas escuras, às vezes clareadas em pequenos espaços pela entrada indecisa de um recatado raio solar ou pela passagem de algum animal, de forma lenta e majestosa, de característica ondulância muscular, no caso do tigre e suas listras, mais agitada e entre os galhos quando se tratava de macacos, sobretudo ao arregalarem seus olhos, curiosos diante da imobilidade de um ser que não parecia vivo, ignorado pelas feras. Recebia as serpentes por seu torso nu como se estivessem deslizando sobre pedras.
Por baixo, vestia uma calça de linho branco, os pés descalços, as pernas cruzadas em posição de lótus ou, como ele preferia dizer, em cruz de lótus, sobre a terra um tanto áspera e escura. Uma inspiração e uma expiração por minuto. Praticamente imperceptíveis. O ar saía bem devagar pelas narinas. As palmas e os dedos das mãos unidos em frente ao centro do peito e apontados para o alto. Em seu interior, contemplava Krishna, que acreditava ser uma das encarnações do Filho de Deus, que teriam atingido seu cume com a vinda de Jesus de Nazaré.
O cristianismo indiano, embora fosse filiado à Igreja Católica e reconhecesse o papa de Roma como suma autoridade da Fé, caracterizava-se por algumas teologias que se distinguiam da linha ortodoxa. O Purgatório, por exemplo, era substituído pela reencarnação para os que não fossem corruptos o bastante para despencar no Inferno nem santos o suficiente para o Paraíso.
Havia também o incentivo às técnicas do yoga, visto como um dos meios para se alcançar a santidade, e quase todos aceitavam mais de uma descida do Filho. Entre estas, Buda, Rama e Krishna.
Este último, na visão de Raja, estava pregado na cruz com ao lado seu gêmeo, o branco Balarama, talvez uma personificação do Espírito Santo, ainda que os teólogos indianos discutissem muito a respeito.
O que parecia ser um ermitão também via, no alto de sua cabeça, uma cruz com, em seu centro, um lótus rosa, fechado, que aos poucos foi se abrindo e substituindo a imagem da divindade por uma luz sem atributos, que desceu sobre seu corpo e o tornou diáfano.
Contudo, foi obrigado a interromper a meditação e a abrir os olhos, pois uma presença se aproximara, muito sutil, ainda assim fácil de ser notada por alguém com sua percepção espiritual, que era a maior dentre os doze cruzados. As emoções finas e ainda assim afiadas de Masamune penetraram em seu coração e fizeram com que se levantasse.
Recebeu o outro já com o olhar pronto, cravando-o no semblante pálido do samurai cristão, este trajado com uma armadura de bushi de placas de couro, madeira e aço.
No peito, havia em alto-relevo a insígnia de um dragão oriental ascendente, serpentino, a envolver a cruz com entusiasmo, em contraste com a melancolia do olhar do guerreiro, que trazia seu elmo debaixo de um braço e a katana com guarda em forma de cruz em sua cintura.
– Sempre alerta, meu caro Raja. – Aproximou-se com passos que lembravam os de um tigre, seus cabelos longos e negros presos em um coque. Os do indiano eram brancos e, bem volumosos, estavam soltos. – O que compreendo, pois a qualquer momento pode ser necessário agir.
– Mesmo que nada desejemos alcançar para nós, que apenas queiramos servir, sem nos deliciarmos com nenhum fruto. Cada instante que passa é logo surpreendido por outro; se não ficarmos atentos a cada momento, ele irá passar. E não há meios do arrependimento buscar de volta o fruto que apodreceu e que teria servido para curar um doente. Assim como também é triste quando desperdiçamos um tempo que poderíamos ter usado para estar com Deus. Aos omissos e aos relapsos, cabe a deglutição pela boca entreaberta do Abismo, que só irá se escancarar no dia do Juízo Final.
– Já me perguntei algumas vezes: vocês indianos acreditam em reencarnação. Como fica nisso o dia do Juízo Final, após o qual não existirá mais meio de se viver no mundo sem ser puro de coração?
– Nesse caso, não haverá escolha para as almas ainda imaturas. Terão que descer ao Inferno até talvez se purificarem e garantirem uma chance de retorno à Terra.
– Compreendo. Ainda assim me parece que o presente de Deus é mais lógico e generoso quando é único, quando nossa identidade não se perde. Ou o servimos com disciplina, ou não há salvação.
– Mas o que mais vemos no mundo são máscaras, não seres. A reencarnação implica em trocas de personalidades. A identidade, que está além delas, permanece. É eterna. Porém apenas quem entra na senda da santidade tem acesso a ela, o que se dedica e assume um compromisso em viver cada instante de acordo com a Vontade de quem nos deu uma caixa que contém um presente e, com compaixão, diversas chances para abri-la. Não sou um teólogo, e sim um guerreiro, embora me interesse por teologia. E justamente por esse interesse descobri o interesse de Deus no homem, na infinita compaixão que existe no Verbo que retorna. Haveria então a possibilidade de um Inferno eterno? De uma máscara que dure para sempre?
– Nada de Saoshyant por enquanto? – Masamune achou melhor não prosseguir em uma discussão teológica que poderia ser interessante, porém se prolongar em demasia em um local quiçá inapropriado, olhando ao redor e também tecendo uma pergunta, só que sobre algo que dizia respeito à ação de momento.
Raja fechou os olhos. O samurai já sabia que o companheiro estava expandindo sua percepção para lugares longínquos.
– Ele está chegando. Deve demorar só mais alguns instantes. – Reergueu as pálpebras e, de fato, em pouco tempo, o cruzado persa apareceu.
De cabelos pretos, olhos amendoados e com uma barba bem-feita, vestia sua armadura escura com a face urrante de um demônio em desespero forjada no abdômen.
– Ainda sem sua armadura? – perguntou ao companheiro indiano, que seguia com a parte de cima do corpo desnuda.
Na mão esquerda de Saoshyant, via-se uma espada curva de ponta dupla, a empunhadura repleta de esmeraldas. A bainha negra com o desenho em verde de um monstro que parecia ser um dragão com chifres, mas asas de pássaro, como as de uma águia, sendo morto por um cavaleiro, estava pendurada à cintura.
– Estávamos esperando por você. – Na troca de olhares, investigação da parte de Raja e talvez desafio da do persa, que carregava, debaixo do braço direito, um capacete de topo arredondado que trazia embutida uma coifa de elos de ferro; seus olhos fitavam tudo de cima e refletiam a si mesmo mais do que o mundo externo. – Vou vesti-la agora.
Masamune centrou a atenção em Raja e este ergueu o braço direito. Na cintura do samurai, próxima à espada, estava a mão que não segurava o elmo. Mexeu com sutileza o indicador, já o do indiano apontado para cima. Uma fagulha dourada reluziu sobre ele.
Seguiu-se o aparecimento das diferentes partes da veste do guerreiro, que vieram levitando no ar e foram cobrindo seu corpo. Formaram uma proteção dourada repleta de detalhes que lembravam serpentes, inclusive no capacete, aberto para o rosto, com no topo a representação de uma naja com olhos de rubi que envolvia uma cruz e encarava quem estivesse adiante.
Depois chegaram a capa branca para as costas e o tridente para a mão esquerda, que se abriu para recebê-lo.
– Satisfeito? – A pergunta do indiano após a impressionante demonstração de psicocinese.
– Isso não seria magia? – O persa acabava de extinguir seu sorriso.
– Claro que não. Não foram empregados espíritos de qualquer espécie. Nada externo a mim interferiu. Foi apenas o poder de minha mente.
– Então estamos prontos para pegar os thugs. – Saoshyant embainhou a espada, encaixou o elmo à cabeça e lhe deu as costas.
– Antes gostaria de falar um pouco a respeito deles a vocês. Porque mesmo sendo guerreiros experientes, não devem conhecer muito sobre essa terrível seita da mão esquerda.
– O que sei é que você já foi um dos sacrifícios deles.
– E é por isso que tenho certa autoridade para falar sobre o assunto. Antes de tudo, vou esclarecer que a entidade espiritual por eles venerada não é um demônio. Kali, a negra, é uma força da natureza, que, como tal, é neutra. Pode ser usada tanto para o Bem quanto para o Mal. – Saoshyant voltou a encará-lo com maior interesse; e Masamune, mesmo em se tratando do cruzado que havia mais tempo exercia sua função entre os doze do presente, escutava de forma atenta, livre de soberba. – Trata-se de um poder que ora causa catástrofes, ora promove a fertilidade do solo. Há quem diga, aqui na Índia, que foi a força empregada por Deus para provocar o Dilúvio Universal. No entanto, feiticeiros podem utilizá-la sem qualquer finalidade superior, apenas para o próprio proveito. Isso é possível durante os eclipses lunares, algo que ocorrerá hoje. Se evocada sob essa condição celeste, Kali aceita ordens humanas e os líderes dos thugs estão a par disso.
– Mas uma vez que ela aceite ficar subordinada a eles, continuará assim mesmo depois de terminado o eclipse?
– Seguirá dessa forma até o eclipse seguinte, ficando depois disso inativa, em repouso, até o próximo. Já detive, em outras oportunidades, cerimônias thugs de evocação a Kali, mas me parece que eles proliferam feito formigas. Até porque em geral os magos thugs conseguem escapar. São ariscos e traiçoeiros.
– Mas Kali não possui vontade própria? – indagou Masamune.
– Ela não tem uma inteligência de tipo humano. Move-se para promover a mudança, a transformação, mesmo que essa transformação signifique reduzir a cinzas toda uma civilização.
– Mas segundo o que vocês na Índia acreditam, algum mago chegou a despertar Kali a seu favor em uma ocasião recente? – Saoshyant umedeceu os lábios com a língua.
– Há quem diga que ela agiu no período do ano 1000 ao lado das forças do Mal. Os resultados, como bem sabemos, ainda podem ser vistos ao redor do mundo.
– E alguma vez ela agiu a favor do homem? Não sei se isso pode ser dito quanto à ocasião em que se deu o Dilúvio Universal.
– Muitos acreditam que santos que pediram pelo auxílio de Deus para expulsar e derrotar demônios receberam, como resposta, aparições de Kali que dizimaram as criaturas infernais. Portanto, Kali também é capaz de abater e suplantar demônios. Mas veja bem a diferença: em casos como esses, ela não recebeu uma ordem humana, e sim atendeu a uma ordem de Deus.
– Uma diferença considerável – concordou Masamune, que também vestira o capacete. Era hora de se moverem.
De onde estavam, seguiram pela floresta sob a liderança de Raja, que os conduziria ao templo thug antes do cair da noite.
Corriam sem o menor esforço, mesmo com o peso das armas e armaduras, graças ao sangue de Cristo que fluía em suas veias.
Assim, alcançaram as proximidades de um palácio de madeira entalhada, repleto de esculturas de feras em sua superfície, cuja torre principal passava dos oitenta metros de altura. Em seu topo, estava entronizada Kali triunfante, os torreões curvilíneos coroados por cúpulas, e era antecedido por uma ponte de piso formado por pedras cristalinas assimétricas, verdes e azuis, de bordas brancas.
Por ali estavam espalhadas estátuas da furiosa entidade, ou de pé, com a boca escancarada em berros silenciosos e empalando demônios, ou montada em predadores como tigres e ursos. Suas dezenas de braços armados aparentavam estar em movimento.
– Parece deserto, a não ser pelas imagens, que me dão a impressão de estarem vivas. Será um efeito da magia dos thugs? – O persa começava a ser perturbado por uma dor de cabeça.
Masamune olhou para o companheiro sem responder ou demonstrar nada, porém sofria com um mal-estar generalizado. Em especial no que dizia respeito ao seu estado de ânimo, com as emoções puxadas para baixo.
– Eles imantam as esculturas com suas intenções distorcidas, com a finalidade de manter os leigos afastados. Por isso, nossa atenção deve ser constante. – Raja direcionou parte da sua para o cruzado natural do Cipango. Seus chakras1 estavam desfocados, envoltos por uma espécie de fuligem. "Ele não está nada bem", pensou, porém nada disse, pois, pelo olhar, o nipônico lhe aconselhou silêncio. Foi tudo algo rápido, para não ser notado por Saoshyant. – Não se iludam. Eles estão lá dentro. – O indiano deu este fecho à sua resposta.
"A minha espada é a minha cruz", à qual Masamune dedicava sua alma. Contudo, apesar de seu forte senso de disciplina, vinha se questionando havia um bom tempo sobre certas atitudes de alguns membros da Igreja, sobretudo dos padres da Ordem do Graal. Estas manchavam a lâmina do espírito, que deveria estar sempre limpa, com o sangue da carne, ou seja, a matéria bruta, os interesses que iam além de proteger os seres humanos comuns de demônios e magos, uma trama sombria que intuía a cada suposto religioso que observava e que não seguia os preceitos básicos da Fé, como amar e respeitar o próximo, que humilhava os próprios semelhantes ao se julgar superior por um cargo ou função, no esquecimento de que o ministério cristão seria a responsabilidade de fazer a vontade de Deus na Terra, não a própria. Os homens revelavam-se cada vez mais egoístas, fúteis, violentos e gananciosos, semelhantes aos monstros que os ameaçavam, diferindo apenas nas aparências. De que adiantava saber fazer o chá, servi-lo de acordo com todas as normas da etiqueta e depois cortar a cabeça do hóspede pelas costas, com a finalidade de roubar algumas moedas escondidas no hakama2? O que o enfraquecia mais a cada dia era a mesquinhez humana. Os símbolos e a magia dos seguidores de Kali, portanto, representavam somente uma faceta simplória da monstruosidade entranhada no espírito, cada vez mais abissal e portanto quase indiscernível do restante. Só ficava um pouco evidente nos aspectos menores. Camuflava-se quando no mais abominável.
***
Masamune olhou pela última vez para trás. Enquanto entravam no templo, tinha início o pôr do sol. Nuvens sombrias devoravam a claridade de um banho de sangue.
Dentro, um buraco repleto de estacas afiadas se escancarou debaixo dos pés de Raja. Que, no entanto, levitou acima daquela fenda perigosa e assim permitiu o salto de seus companheiros.
Desviou lanças, projéteis e flechas ao fazer uso de sua psicocinese. Só parou diante de uma estátua com carranca de leão.
– O que foi? – Saoshyant estranhou a parada. – Há algo de estranho com essa imagem?
– Não. O problema vem atrás dela. – Abriram-se os portões antes ocultos naquela parede.
Revelaram uma miríade de thugs furiosos, vestidos com turbantes e túnicas brancas e armados com espadas curvas.
O combate, no entanto, seria breve. Duraria pouco mais do que um sorriso do persa: Masamune manifestou sua velocidade de manejo de espada, inigualável entre os cruzados – apenas Gilles era comparável –, e cortou os dedos das mãos de alguns dos oponentes, que se limitaram a discernir feixes de luz e fugiram em desespero.
Já o indiano se tornou invisível em frente à estátua, que sumiu junto com ele do campo de visão dos inimigos.
Reapareceu quando Raja fulminou todos com golpes de tridente, ainda sem ser visto.
Só ficou de novo visível, os olhos de sua naja brilhando como pequenos sóis rubros, na certeza da vitória.
Um vento, por fim, seguiu a espada de Saoshyant e rasgou as gargantas dos thugs restantes.
– Esses idiotas achavam que estavam lidando com quem? – indagou o persa. – Não somos da mesma escumalha que eles.
– Calma, não se precipite. Foi só o começo. Eram apenas fanáticos que serviram como fantoches. Não havia nenhum mago entre eles. Ao passar por estes portões, as coisas devem se complicar. Serão bem diferentes. – E foram, com Raja à frente.
Depararam-se com um amplo salão circular em que havia uma mandala no chão e outra no teto.
Multicoloridas, apresentavam feitos e massacres de Kali; e sobre longas prateleiras perfilavam-se centenas de cabeças humanas, algumas ainda frescas, enquanto no meio do piso, imóvel, havia um homem de pele escura, olhos fechados e longos cabelos e barba tão brancos quanto sua túnica. Embora o mais inusitado fosse o indivíduo no centro do teto, pendendo de cabeça para baixo sem o apoio de cordas ou correntes, pintado de preto e com o crânio raspado, os olhos negros escancarados.
Em volta, dispunham-se guardas thugs fanáticos, dispostos a morrer para proteger seus líderes.
– Aí estão os dois magos. Mantenham-se atrás de mim – comandou Raja.
– Como é? Pretende lutar sozinho? – Saoshyant fez uma careta de desagrado.
Masamune permaneceu atrás, ao passo que a armadura do cruzado indiano se soltava do seu corpo.
Uma aura sinistra, negra, vermelha e fétida, se espalhou pelo ambiente.
– Matem o demônio invasor! Em nome de Kali! – bradou o feiticeiro de olhos abertos.
– Mas o que ele está fazendo? – questionou Saoshyant, sem conseguir acompanhar a rapidez de Masamune, que dizimou os inimigos com a espada: em menos de cinco segundos, os soldados thugs ficaram sem os dedos das mãos e dos pés; e os que ainda insistiram em avançar, assim como a magia elemental usada pelos magos (relâmpagos, ondas de calor, labaredas e mesmo lâminas de gelo), foram devorados pela energia escura e cada vez mais palpável de Raja, cujos músculos cresceram de forma anormal, acompanhando o aumento geral no tamanho. A cicatriz da cruz em seu peito deu a impressão que iria rasgá-lo, mas apenas desapareceu.
Passava agora dos três metros de altura, aproximando-se do teto. Sua pele se tornou vermelha e manifestava uma crina e uma barba espessas, que cobriam e emolduravam o rosto todo, a não ser pelos olhos repletos de espirais.
– Ele foi possuído! – exclamou Saoshyant. – Como é possível e por quê?!
– Não se desespere. – Masamune replicou em tom pacato.
– Como posso ficar tranquilo?! – O persa tentou brandir a espada contra o ex-companheiro, mas esta escapou de suas mãos e foi se fincar em uma parede bem atrás.
Ficou boquiaberto. Já o indiano, possuído, avançou contra os espantados magos thugs e, antes que se transportassem dali por meio dos portais tortuosos que abriram às suas costas, esmagou-os com suas mãos e pés.
– Raja é um caso à parte entre nós. – O samurai resolveu explicar o que acontecia. – É o único que consegue, ao entrar em êxtase com o sangue de Cristo que corre em suas veias, sair do corpo e por algum tempo se deixar possuir por um poderoso demônio, preservando, é claro, a consciência. Controla de fora a criatura, que perde a vontade própria.
– Isso é espantoso! Uma demonstração incrível de… de concentração e autodomínio!
– Ainda não terminou. – O cruzado da Terra do Sol Nascente seguiu o indiano transformado para além daquele local. Saoshyant meneou a cabeça para os lados e o seguiu por sua vez.
Havia um largo corredor adiante. Ao seu término, entraram em uma sala ampla e escura, que tinha ao fundo um trono com um monstruoso rosto de fauces escancaradas no alto do espaldar.
Proliferavam por todos os lados imagens de Kali. A entidade, representada nestas com expressões furiosas, retinha lâminas entre os dentes, além de haver corpos humanos apodrecidos nas proximidades do assento. Acomodado ali, sorria com ar debochado um homem revestido por um manto negro e azul-escuro.
O espírito de Raja aos poucos voltava para o corpo, que foi desinflando. Diminuiu em altura e a aura destrutiva desaparecia. A cruz que marcava o peito ressurgiu.
O olhar de ódio do demônio, no entanto, persistia no indiano, o que gerou um certo receio em Masamune, ainda que não o demonstrasse. "Nunca o vi desse jeito sem que estivesse com o demônio em manifestação. Mas entendo, deve ter voltado à carne para não perder o controle e a consciência, sendo possuído em definitivo. Mas por que isso aconteceria com ele?"
– Não o reconhece, Masamune? – Raja mordeu o lábio inferior.
O samurai permaneceu imóvel, refletindo. Saoshyant, por perto, se limitava a observar. O mago sinistro não se movia do local onde se achava.
– É o monstro no corpo de Dyonisos. – Raja acelerou as coisas.
Masamune não respondeu, porém se aproximou para enxergar melhor o ser que ali estava, despindo-o de algumas sombras mais densas.
– Compreende agora por que desisti de controlar o demônio? Contra ele, correria o risco de perder a sanidade e ser possuído de uma vez por todas. Afinal, quero destruir essa aberração.
Saoshyant mal acreditava no que via.
– Desde o começo da missão sabia que o encontraria aqui? – Masamune confirmara para si o rosto familiar, apesar da tez pálida demais, como se tivessem passado uma tinta branca por sua pele, já os olhos tão pretos quanto os cabelos longos.
– Não. Mas agora posso sentir o espírito de Dyonisos a implorar por socorro, e não se trata de nenhum acaso, pois uma das maiores razões de minha vida é livrá-lo desse tormento, ainda que me seja doloroso ferir seu corpo. Ele teve o cinismo de se aliar aos thugs para me provocar quando eu o encontrasse, como sabia que fatalmente aconteceria, já que não dou trégua aos deturpadores de Kali.
– O rosto está diferente. A feição é a mesma, mas a pele… Bem, não sou tão perceptivo quanto você, não consigo captar a agonia de nosso antigo companheiro, porém o corpo é o dele, sem nenhuma dúvida.
– Sei que nosso saudoso amigo já está morto, que não pode retornar. Apesar de sua força, não possuía um domínio mental como o meu. Mesmo assim, hoje por pouco não deixei o demônio que me ronda tomar meu coração. Por isso, não tenho moral para julgar ninguém! – E se voltou apenas para o possuído: – Vou limpar sua carne como limpo minha mente, Dyonisos: e então poderá ter enfim seu merecido descanso e seu corpo uma tumba apropriada e digna.
– Quer dizer que este foi Dyonisos de Atenas, agora possuído por um demônio? – indagou Saoshyant.
Masamune meneou a cabeça em confirmação e atacou junto com o indiano, tridente e katana contra uma criatura ainda imóvel, mas que desapareceu do trono: reapareceu com as mãos ao redor do pescoço do persa.
Saoshyant conseguiu levitar para longe. Isso causou surpresa mesmo no demônio, até então pura confiança.
A velocidade da lâmina do samurai forçou sucessivas esquivas, interrompidas pelo tridente de Raja, que o perfurou pelas costas. Ainda assim, o possuído continuou onde estava e bloqueou o golpe que o teria decepado. Atirou longe a katana enquanto a mão direita sangrava e manifestou uma aura azul trevosa, que transmitiu uma agressiva corrente de energia da arma para as mãos e logo para o resto do corpo do cruzado indiano, que se viu obrigado a retirá-la.
Dyonisos, ou quem quer que fosse, saltou para o alto. E então, enquanto levitava e reconstituía o estrago feito em seu corpo, irradiou, com o semblante ensandecido, uma roda de relâmpagos dourados, que perderam o sentido circular e se tornaram uma dança elétrica sem regras.
Saoshyant pulou em sua direção com a espada em punho, porém foi fulminado e acabou no chão.
"Como pode? Tendo o sangue de Cristo a correr em minhas veias, eu é que deveria ter um poder maior. O poder e a magia de Deus! Não posso me ater às regras!" Aproveitou-se que Raja estava inconsciente, após ser atingido por uma forte descarga, e Masamune temporariamente cego devido à claridade emanada na direção de seus olhos, impedido assim de recuperar sua espada, para salvar os companheiros ao manifestar seu verdadeiro potencial (assim como sabia pouco sobre Raja, a recíproca era verdadeira): tornou a ficar de pé e o solo embaixo do cruzado possuído trincou; este foi puxado para baixo, impedido de levitar. Com um peso sobre seu corpo, o inimigo ofegou pelo sufocamento.
Masamune compreendia que algo se passava, a terra estava diferente sob seus pés, mas seus olhos ainda sofriam em consequência da luminosidade.
Criaturas troncudas, marrons e negras, de braços possantes e dedos quadrados, os rostos chatos, pouco menores do que seres humanos, haviam se materializado a partir de uma aura verde, marrom e preta emanada por Saoshyant.
Eram espíritos elementais, que subiam pelas costas de Dyonisos ou o seguravam pelos pés; e ainda surgiram os que o golpeavam. Um destes agarrou-lhe a garganta.
– Herege! – O possuído, por fim, se pronunciou.
Liberou outra vez seu sorriso e, para o desespero do persa, desbaratou-se dos espíritos da terra com sua aura de relâmpagos: perfurou-os com as emanações elétricas, ao mesmo tempo que chifres de bode cresciam, em paralelo com a transformação de seus pés em patas caprinas. Sua roupa se rasgava e seu corpo aumentava de tamanho e se deformava, cheio de cotovelos. Partiu na direção do cruzado.
Ao voltar a enxergar, Masamune se limitou a testemunhar um massacre. O ataque de Dyonisos, um baile sangrento de um único dançarino bestial, amassou e destroçou a armadura e os ossos de Saoshyant.
Raja recobrou a consciência; o corpo do companheiro estava estendido sobre uma poça de sangue.
– Não há opção. Vou ter que arriscar. – O indiano olhou para o samurai, que mal havia se movido. De nada adiantaria recobrar sua espada, de qualquer forma.
Um urro. E mais uma vez Raja transformou seu corpo, permitindo a possessão, o que atraiu a atenção do demônio na carne de Dyonisos. Este abandonou o persa, que o samurai se apressou em carregar para fora do templo – não havia mais nada que pudesse fazer ali; sua experiência também servia para ocasiões como essa –, e houve o choque entre os monstros. Um bode esquálido e bípede, com garras imensas, contra um demônio vermelho pouco mais alto e mais musculoso, porém quase desprovido de acessórios cortantes.
Seguiu-se uma explosão de fogo e eletricidade e o templo foi abaixo. Não se tratava do lugar apropriado para um combate tão extremo.
"Sou eu. Sou eu, Raja", pairando acima com seu espírito, o cruzado repetia estas palavras em sua mente como um mantra. Apenas estas. Às vezes se sentia tentado a desmaiar, porém logo recordava: "Sou eu. Sou eu, Raja."
Uma serpente branca e dourada envolveu sua alma. Uma cruz da mesma cor e luz apareceu no alto de sua cabeça espiritual. Ambas a cada segundo mais brilhantes.
Conduzido pela claridade, seguiu para dentro dela até seu corpo se erguer dos escombros, mais uma vez humano. Retornava ao físico sem armadura nem arma. No visual, nada de Dyonisos. "Mas ainda sinto a presença daquele demônio e o meu corpo não suportará uma nova possessão."
– Vamos embora, antes que ele resolva nos atacar outra vez. Não temos ainda como derrotá-lo – foi o apelo de Masamune, que ressurgia ao seu lado. Carregava consigo Saoshyant. – O templo foi destruído, os magos thugs estão mortos. Cumprimos a missão de impedir o despertar de Kali.
Raja sabia não ter tempo para pensar.
– De fato só me restam mais forças para fugir – reconheceu.
– Vamos embora agora. – Masamune desapareceu feito um vento que passava por um bambuzal.
O indiano, que na verdade não queria sair dali, notou um movimento nos frangalhos da construção.
Então, mesmo com os olhos em brasa, raciocinou que morrer naquele lugar e naquela hora não ajudaria em nada o seu velho amigo e chutou para longe o orgulho: "Devo me desmaterializar aqui e me rematerializar bem longe? Não. Seria um excessivo desgaste à toa. Ficaria extenuado. E ele não vai me seguir tão cedo. Basta correr. Mas juro que algum dia vou correr é atrás dele."
A cabeça de bode emergiu. Já não havia mais ninguém por ali, afora a escuridão.
Um tortuoso guincho de dor e ódio, reverberando em ondas de êxtase, varou a noite.
O povo dos arredores refletiu com terror que Kali despertara com o eclipse, conforme as lendas diziam que ocorrera no passado.
Contudo, não demorou para o silêncio predominar.
1 Segundo a filosofia iogue, centros energéticos sutis, em forma de vórtices ou lótus, que distribuem a energia vital (prana) através de canais denominados nadis.
2 Vestimenta tradicional japonesa que cobre a parte inferior do corpo e se assemelha a uma calça ou saia larga.