No dia do combate decisivo, o papa Inocêncio XV estava presente. Tratava-se de um homem de espírito conciliador, que vinha buscando atenuar as recentes divergências entre padres vermelhos e jesuítas, tanto que seu semblante era ameno, o sorriso quase nunca ausente dominando um rosto bastante rechonchudo em comparação com o restante do corpo.
Antes do início da contenda, que se daria entre o lusitano e um grego de nome Glauco, discursou para aplacar a Companhia de Jesus, da qual alguns membros ilustres se encontravam dispostos em uma fileira próxima ao Sumo Pontífice:
– Não estamos aqui para tecer um hino à violência ou para exaltar o orgulho e a vaidade de homens que só pensam em derramar sangue. Encontramo-nos hoje reunidos para consagrar um bastião da Fé, um soldado de Cristo, pois temos que estar cientes de que o próprio Salvador nos disse que veio para trazer a espada, deixando claro, portanto, que vivemos em um mundo em guerra: as hostes celestiais e as legiões de Satã estão em conflito constante. Se permanecermos passivos, sem definir de qual lado ficaremos, é natural que acabemos sendo massacrados, pois os anjos não saberão a quem devem proteger. A Palavra é valiosa, só que os demônios não A compreendem. Vamos portanto tomar parte como combatentes das hostes de Deus, desempenhando um papel ativo, ao menos alguns de nós já na Terra.
Os questionamentos dos jesuítas estavam centrados na utilização do sangue de Cristo que brotava do cálice que se dizia ser o Santo Graal. De acordo com eles, era dúbio que aquele sangue fosse realmente o de Jesus, pois haviam se passado cerca de mil anos desde a aparição do recipiente e em nenhuma ocasião posterior, por exemplo em visões de santos, o Filho de Deus confirmara seu envio. Segundo o que se dizia, o Graal fora por um milagre encontrado na catedral de Cantuária, na Inglaterra, o que confirmava a lenda de que José de Arimateia o levara ao norte. No entanto, sustentavam que o único sangue de Cristo presente no mundo era o que se manifestava através da transubstanciação que se verificava durante cada missa.
O que mais conduzia os membros da Companhia de Jesus à dúvida eram os registros de crimes, arbitrariedades e delitos escabrosos cometidos pelos cruzados. Como era possível que ocorressem se aqueles guerreiros tinham o sangue de Jesus correndo em suas veias? O vinho da missa não produzia quaisquer consequências negativas. Logo tudo não passaria de um embuste do diabo, de um engodo infernal, tanto que, desde o surgimento do cálice, novos demônios não paravam de se manifestar.
O papa e os padres vermelhos defendiam os cruzados afirmando que, ainda que alguns tivessem cometido excessos, por diversas vezes haviam salvado gente inocente e mesmo a humanidade como um todo de desgraças maiores. Não passavam nunca de doze, o número dos apóstolos de Cristo, justamente para evitar que formassem um exército poderoso demais, enquanto a desertores e possuídos cabia a morte.
Quanto ao fato de não serem santos, advogavam que a transubstanciação efetuada em cada missa também não garantia a santidade aos homens; ainda assim, tornava-os melhores do que antes de entrarem na igreja.
– Reconhecemos os méritos da Companhia de Jesus no que diz respeito a esta ter convertido praticamente todo o Oriente e as ilhas do sul à verdadeira fé. E isso há muito tempo! Chegaram ao Ceilão e às Molucas no ano de Nosso Senhor de 1548, tocando o Catai em 1552. Em 1558, alcançaram o Cipango. Gruber e D’Orville lideraram a conquista do Tibete em 1661, e outros depois passaram pelo Congo e pela Etiópia, cristianizando as populações bárbaras dos negros. Devemos a vós a expansão da Igreja e a chegada de tantas ovelhas ao rebanho de Nosso Senhor. Mas não vos esqueçais, como honrados combatentes da fé que sois, que talvez não teríamos mais seres humanos na Terra se não fossem os cruzados, os mais valiosos combatentes deste mundo, pois podem liquidar o mal com maior facilidade do que qualquer um de nós – afirmara o cardeal Jonathan em uma disputa que travara na Arquibasílica de Latrão com alguns jesuítas, encabeçados pelo luso Simão Rodrigues, que naquele momento no Coliseu não poderia deixar de torcer para seu conterrâneo.
Tratava-se de um homem de barba e bigode escuros, com poucos cabelos sobrando em sua cabeça tonsurada. Quase não tirava as mãos de seu crucifixo, ao menos enxergando nos olhos de Antenor uma pureza rara de ser encontrada no semblante de um guerreiro, em geral tão orgulhosos e cheios de si.
O confronto entre o filho do marquês de Braga e o grego, que contavam com duas das melhores armaduras do torneio, começou com a queda dos cavalos ao se tocarem com as lanças.
O primeiro, ao optar por seu arco ao se reerguer, entregue por um dos pajens que ficavam ao redor, se distanciou para empregar suas flechas.
O segundo pretendia se aproximar com sua espada curva e usou o escudo oblongo para deter as setas.
Antenor, pela primeira vez durante todo o torneio, suava frio. Nos combates anteriores, permanecera calmo. "O que está acontecendo comigo? Será porque desta vez é uma decisão, e não só em termos de combate como interiormente? Quero me tornar um cruzado, tenho que estar decidido nesse sentido. Não posso hesitar, colocar porquês, me fazer perguntas e pesar os prós e os contras, afinal isso já foi feito e não há tempo para repetir. A hora é de fazer, de golpear!"
Glauco estava revestido por uma armadura de catafracto. As escamas de metal por sobre a cota de malha cobriam quase todo o corpo, seu elmo com uma viseira apropriada para desviar golpes de espada.
As flechas podiam perfurar-lhe a couraça. Desde que atingissem frestas ou partes mais vulneráveis.
Não conseguia chegar perto o bastante do lusitano para lhe desferir um golpe decisivo porque Antenor corria e se afastava.
Começaram a se rodear sem se golpear. O povo mais humilde vaiou ambos os contendentes.
Os espectadores privilegiados estavam mais entretidos com a comida, menos o papa, os padres da Ordem do Graal e alguns jesuítas como Simão.
Trocaram de armas. Antenor largou o arco e requisitou a um pajem um machado de duas mãos. O grego, então, pediu um martelo de guerra e abandonou o escudo.
O português se esquivou de alguns golpes que tinham potencial para lhe arrebentar o elmo e conseguiu, por fim, explorar uma das brechas da armadura do adversário, perfurando-lhe a axila com a ponta de lança situada entre as duas lâminas do machado. Empurrou-a ali com toda a força e, ao extraí-la derramando sangue, o rival desabou sobre a poeira. Um árbitro entrou na arena para declarar vencedor o luso. Glauco recebeu o socorro de dois barbeiros-cirurgiões.
– Levantem-se e rejubilem-se! Temos um novo campeão da Fé! – bradou o papa, e o público exultou, entusiasmado com o final emocionante, sob os aplausos dos padres vermelhos e os olhares apreensivos e atentos dos jesuítas.
Entre estes, encontrava-se o carrancudo Superior Geral da Companhia, Fernando Pizarro, o papa negro – devido à cor de sua batina e ao poder que exercia –, um homem de estatura elevada, postura bem ereta, magro e, apesar das rugas dos seus setenta anos, em perfeita saúde, os olhos azuis firmes e analíticos, seus cabelos brancos ondulados até a base do pescoço.
Retirou-se da comemoração.
Algumas horas depois, seu crucifixo emitia reflexos rubros sob a luz das candeias de seu escritório na Igreja de Santo Inácio. Estava recebendo Simão Rodrigues. O papa negro sentado atrás da escrivaninha com os cotovelos sobre esta, os dedos entrelaçados e uma expressão preocupada.
– Como lhe pareceu o novo guerreiro? – perguntou ao irmão lusitano.
– Acredito que ele seja diferente dos outros, Padre Geral. Notei uma pureza de olhar rara, um ímpeto de fazer o bem. Não havia sede de sangue. Esse sim poderá ser um válido soldado de Cristo. Um combatente leal à causa de Nosso Senhor.
– Não está se deixando levar pelo fato de ser seu conterrâneo?
– De modo nenhum. O senhor sabe que sou um homem que não se deixa levar por nada além da fé em Deus e em seu Filho. Não havia maldade no rapaz.
– Mas a crueldade pode nascer depois que o sangue de Cristo for introduzido nele. É bom continuarmos atentos. O seu amigo poderá se tornar uma pessoa diferente.
– Ele não é meu amigo, não é nada meu. Só me pareceu um gajo dotado de genuína bondade.
– Está bem, Simão. Não vou colocar em dúvida sua boa fé, porém nunca deixe de observar.
– Velar; vigiar. São palavras fundamentais em nossa doutrina. Mas o senhor acha mesmo que o papa pode estar se equivocando dessa forma, atribuindo a Cristo um sangue que não é o Dele? E isso já há tantas gerações?
– A infalibilidade papal é um dogma delicado. A menos que um ou vários impostores tenham se sentado no trono de São Pedro, levando adiante uma trama demoníaca! – Mordeu o lábio inferior. – Na verdade, em minha opinião, há apenas duas possibilidades: ou quase todos os últimos papas foram usurpadores, descrentes disfarçados que compraram seu posto, por isso nem mesmo deveriam ser considerados Sumos Pontífices, havendo alguns poucos ingênuos, e a ira de Deus caiu sobre os farsantes que se foram para o outro mundo e cairá sobre o que está aqui e sobre os que virão, ou sobre todos nós, que fomos coniventes, ou aquela taça é realmente o Santo Cálice e estamos equivocados. Por via das dúvidas, não hesitaria em testar os cruzados, em estar sempre com os olhos abertos em relação a tudo o que fazem, atento a como portam suas espadas, a como se movem, tentando adivinhar até seus pensamentos. Por mim, os eliminaria, porém não posso tomar uma atitude brusca, nem tenho forças para isso, sem a certeza plena.
– Apesar do Corpo de Cristo ser perfeito, os homens podem se apoderar dele e usá-lo para seus próprios fins. Possuímos livre-arbítrio.
– Antes não tivéssemos nenhum livre-arbítrio. Seríamos mais sábios.
– Está contestando o Criador?
Apesar do olhar cravado em seu interlocutor, Pizarro demorou alguns segundos para responder:
– Tem razão… Ocorre que me preocupo demais com a humanidade, a ponto de às vezes chegar a pensar como os maniqueus: que na verdade foi um demiurgo corrompido que a criou. Os exemplos de usurpação do Corpo de Cristo são tantos que Deus deve ser infinitamente paciente! Conhece a história da papisa Joana?
– Apenas ouvi falar de algo do gênero. Mas meus preceptores sempre se desviavam quando perguntava algo a respeito. Nunca quiseram me contar os detalhes dessa história sórdida. Alguns até a negam. Dizem que é uma lenda absurda.
– Mas foi real. Recomendo que leia um livro que me caiu em mãos uma vez, temos um exemplar na biblioteca, de um bispo francês chamado Lachatre. Ele conta a história em detalhes, ainda que eu não resista e tenha que lhe comentar algumas partes.
– Não nego que sou um homem curioso, Padre Geral.
– O padre Kapek costumava dizer que essa história foi, na verdade, uma fábula maligna inventada pelos ateus e pelos heréticos para denegrir o clero, ou então que a papisa teria sido um autômato criado por meio dos sortilégios diabólicos de bruxas ardilosas. Já o padre Baronio afirmava que fosse uma criatura do Inferno convocada por magos negros, enquanto o herético Raxmond sustentava que Joana teria sido enviada à Terra pela própria cólera de Deus para esmagar nossa soberba e o autoritarismo dos papas, cujas abominações não podiam ser mais toleradas. Muitos duvidam de sua existência, mas tenho certeza de que ela existiu, afinal nem mesmo o padre Labbe, um dos Generais que me antecedeu, conseguiu desmenti-la empregando todos os seus esforços. Isso por mais que ninguém deseje uma mulher no trono de São Pedro!
– Se aconteceu mesmo, como foi permitido pelos homens e por Deus?
– Não simpatizo nem um pouco com Raxmond, só que pode de fato ter sido um golpe no orgulho da cristandade, Deus querendo castigá-la pelos caminhos ímpios que andou seguindo. Os homens não são capazes de permitir ou de impedir nada que seja ao mesmo tempo grandioso e terrível! Portanto, o que aconteceu aconteceu pela vontade do Criador, da mesma forma que talvez os cruzados sejam um segundo golpe, para nos mostrar que nunca estaremos à altura do Filho… Contudo, quanto à papisa em si, Mariano escreveu sobre ela e suas crônicas são as de um espírito judicioso e imparcial, dedicado à Santa Sé, um homem que nunca se deixou levar por paixões e preferências pessoais. Você sabe como foi corajosa sua defesa do papa São Gregório VII contra o imperador Henrique IV, que, além de pretender investir seus bispos, desejou tomar o Graal para si e produzir um grande exército de cruzados. Trata-se, portanto, de um testemunho que não se pode dispensar, além de termos manuscritos relacionados à papisa em inúmeras bibliotecas. Aqui mesmo rastreei diversos. Tudo teria ocorrido no início do nono século, antes da grande catástrofe, quando o imperador Carlos, tendo subjugado os saxões, pretendeu converter aquele povo ao cristianismo, buscando a ajuda dos padres sábios e devotos de seu tempo. Entre os eruditos que se encontravam em terras germânicas, havia um padre inglês que percorria as cidades com uma jovem grávida, que alguns dizem que sequestrara para salvá-la por pura caridade da cólera dos pais, enquanto outros afirmam que era sua amante. Os dois pararam em Mogúncia, onde a jovem deu à luz uma menina, que segundo certos autores se chamava Agnes, Gilberta para outros, enquanto boa parte se inclina ao fato de Joana ser já seu nome de batismo e não um pseudônimo adotado em homenagem ao apóstolo que era seu favorito. Sevarius dizia que ela pode ter se chamado Isabel, Doroteia ou Margarida, mas isso não importa muito, o que interessa é que se tornou uma bela moça quando cresceu, e bem instruída pelo pai douto, efetivo ou adotivo que fosse, que logicamente afirmava aos vizinhos que a menina era fruto de um caso amoroso de sua protegida, sendo ele apenas um humilde e digno salvador e preceptor. De acordo com Mariano, Joana apresentou um desenvolvimento excepcional e encantava os doutores da cidade, dando sempre as melhores respostas, mais perfeitas do que qualquer garoto dera antes, e com doze anos se dizia que era mais culta do que a maior parte dos homens do palatinado e que se igualava em sabedoria aos principais eruditos. Contudo, como é de se esperar da natureza feminina, ela se deixou levar pelo amor, a exemplo da mãe.
– E quem foi o felizardo?
– Não o chamaria de felizardo. Apesar da beleza e da inteligência de Joana, o pobre rapaz só sofreria desgraças ao lado dela. Tratava-se de um monge da abadia de Fulda, de família inglesa, que se apaixonou perdidamente, e não duvido que ela o tenha seduzido com seus encantos, mesmo que depois também tenha se enamorado. É o gume duplo das mulheres: elas seduzem, acham que estão no controle, e quando se dão conta já se enredaram. Claro que nem todas, mas isso acontece com muitas, e Joana e seu amante armaram uma trama, com ela deixando para trás seu nome verdadeiro, fosse qual fosse, passando-se por homem e seguindo com o amante para a abadia, enganando o superior com seu disfarce e ficando sob a supervisão do sábio Rábano Mauro. Claro, no entanto, que foi difícil para os dois ocultar o amor, e dessa forma tiveram que fugir do convento e buscar refúgio na Inglaterra, onde prosseguiram com seus estudos, conseguindo concluí-los. Então passaram a viajar juntos, conhecendo a França, onde Joana, sempre travestida de monge, travou disputas com doutos locais e ficou bastante famosa, mais do que seu acompanhante, chamando a atenção entre outros da duquesa de Septimânia e de Santo Ascário. Depois chegaram à Grécia, berço da filosofia, e ela tinha apenas vinte anos ou pouco mais, no esplendor de seus atributos físicos, que conseguia a custo disfarçar sob o hábito monacal, com a aparência de um formoso adolescente. E imagine, meu bom Simão, como isso era também uma tortura, impedindo-a de todas as formas de provocar os olhares dos homens. Nesse sentido teríamos que louvá-la, pois pisoteou a vaidade feminina. Uma pena que, é o que acredito, não com o coração e sim por mera necessidade. Deus quiçá a tenha punido por sua luxúria quando seu companheiro faleceu em Atenas depois de dez anos juntos, vítima de uma enfermidade desconhecida. Joana ficou só na Terra, ainda que tivesse se aprofundado na oratória e sua eloquência se mostrasse prodigiosa, digna de um Demóstenes.
– Talvez fosse sim uma boa mulher, ao menos nessa fase de sua vida, e se tiver sido esse o caso deve ter sofrido muito. Mulheres são mais vulneráveis do que os homens às dores do amor mundano.
– Apenas quando bondosas. Mas não vamos discutir isso agora. Chegamos ao ponto em que a jovem erudita se foi da Grécia sobretudo porque lá os homens têm o hábito de exibir as barbas crescidas, o que lhe dificultava cada vez mais a ocultação do sexo. Veio para cá, onde o costume ordenava raspar a barba. Além disso, se livraria das lembranças do amado ficando mais distante de seu túmulo e encontraria em Roma um lugar mais adequado para seus novos estudos e a exposição de seus dons, cada vez mais dedicada a estes, tanto que passou a ensinar artes liberais na Academia e introduziu cursos de ciências abstratas que duravam até três anos, sempre acompanhada por um grande auditório. Fazia os discursos com uma desenvoltura tão arrebatadora, mesmo os realizados de improviso, que foi considerada a mais harmoniosa mescla entre beleza e sabedoria de seu tempo, um belo e jovem gênio a quem foi concedido o título de príncipe dos sábios, afinal pensavam que fosse um jovem professor, a ponto de todos se sentirem honrados por serem seus pupilos, com um procedimento e talentos tão recomendáveis que um partido se declarou por ela como a única pessoa digna de ocupar o trono de São Pedro.
– E ninguém desconfiava de nada?
– Como Mariano bem disse, Joana devia usar uma perfeita máscara exterior para cativar os homens e realizar suas ambições. Bem sabemos que, mesmo quando honestas durante a maior parte do tempo, as mulheres sabem dissimular melhor do que os homens para obter o que desejam. Não foram tolos os que caíram sob seus encantos: e sim muitos entre eles doutos e sábios; e ainda assim ela conseguiu.
– E se ela tiver sido, ou se tornado, uma feiticeira?
– Nada nesse sentido está provado. Inclino-me a pensar que era tão somente ambiciosa. E foi com propósitos certeiros e uma mente firme que, com o trono papal vago, os cardeais, os diáconos, todo o clero e o povo, aclamaram-na e elegeram-na por unanimidade, ordenada na presença dos comissários do imperador por três bispos na Basílica de São Pedro. E com as vestes pontificiais, seguiu com um imenso cortejo para a Arquibasílica de São João de Latrão e assentou-se na cadeira apostólica, o que uns veem como uma manipulação diabólica, enquanto outros pretendem ter sido um milagre, uma prova definitiva de que Deus perdoou Eva, confirmando a Assunção da Virgem Maria, e que portanto as mulheres deveriam ter mais espaço na Igreja. No que acredita mais? Pessoalmente, não creio no êxito feminino em altos postos na Igreja, tanto que os doze apóstolos eram homens. As mulheres carecem de equilíbrio emocional e são manipuladoras e dissimuladas em demasia. Não que não existam santas, é claro, todavia são mais raras do que os santos. Verdadeiramente numerosas são as loucas fêmeas. A santa Virgem, mãe de Nosso Senhor, foi uma sublime e imaculada exceção, não uma regra. Ou São Paulo não teria escrito que a cabeça do homem é Deus, enquanto a cabeça da mulher é o homem.
– Creio que estou de acordo com o senhor.
– E não podemos nos esquecer que, sob a autoridade infalível de vigário de Cristo, Joana conferiu ordens sagradas a prelados e diáconos, consagrou altares e templos, deu os pés a beijar a nobres e arcebispos, administrou sacramentos aos fiéis, coroou imperador Luís II e compôs prefácios de missas e cânones, posteriormente interditos!
– Mas como acabou sendo desmascarada?
– Dizem que o ano de 854 foi marcado por tremores de terra, chuvas de sangue e pedras e aparições numerosas de demônios e dragões. Não faço ideia do quanto isso seja verdadeiro, porém nuvens de gafanhotos monstruosos, com dentes compridos e acerados, devastaram a França, e epidemias se espalharam pela Europa. Quanto a isso, temos documentos. O corpo de São Vicente teria se levantado em Valência para denunciar um padre sacrílego que pretendia arrancá-lo do túmulo e vendê-lo aos pedaços. Vermes enormes devastaram as plantações dos feudos da Inglaterra, justamente a terra do pai de Joana. Tais acontecimentos foram considerados sinais enviados por Deus para enunciar que a cadeira evangélica estava maculada. E talvez isso não se devesse ao simples fato do papa ser uma mulher e sim porque ela, conquanto tivesse por anos permanecido casta, fiel à memória de seu amante, acabou não resistindo e se entregou a um novo homem, um indivíduo discreto, que alguns dizem que era seu camareiro, ao passo que outros falam de um cardeal, que de algum modo a teria descoberto, e não sabemos se no início com intenções sodomitas. O pior foi quando um acontecimento contrariou todas as previsões e planos dos amantes, que não teriam mais como manter a discrição: Joana ficou grávida; e isso teria despertado realmente a ira divina.
– Não acredito nisso. De todos os pecados cometidos, esse na minha opinião foi o menos grave, afinal é dever da mulher gerar descendência, arcando com as dores do parto. Ela cumpriu com o próprio papel nesse aspecto.
– Ouça até o final, meu bom, mas impaciente Simão, porque foi esse filho que a conduziu à ruína. – Tossiu pelo tempo de um ámen. – Um dia, enquanto presidia um consistório, foi trazido à presença da papisa um endemoniado: antes de o exorcismo ser feito, a criatura do abismo declarou que só sairia daquele corpo que possuíra quando Joana, o próprio Santo Padre, lhe fosse dada em carne e espírito, ardendo no fogo eterno após deixar ver ao clero e ao povo de Roma uma criança nascida de uma papisa. Não se sabe qual foi a reação dos presentes.
– Devem ter ficado perplexos e horrorizados, sem entender o porquê de tais palavras.
– Pensaram provavelmente que o pai da mentira tecia mais uma de suas tramoias, sem maiores preocupações, enquanto Joana, depois daquela data e tendo visto em seguida um demônio em seus aposentos, passou a se dedicar a rudes penitências. Dormia sobre cinzas, cingia os membros delicados com um cilício grosseiro e consumia-se em remorso. Orava várias vezes ao dia e abstinha-se de relações com seu amante. Até que Deus lhe teria enviado uma visão, tocado por suas lágrimas, fazendo com que um anjo lhe dissesse que poderia escolher entre o Inferno ou ser reconhecida em público como mulher. Como não era nenhuma estulta, escolheu a segunda opção e no dia das rogações montou em seu cavalo e se dirigiu à Basílica de São Pedro à frente de uma procissão solene, seguindo o uso estabelecido, precedida pela cruz e acompanhada de metropolitanos, bispos, cardeais, padres, magistrados e de uma multidão, é claro que vestida com os ornamentos pontificiais. De lá, regressaria para a Arquibasílica, mas, entre a Basílica de São Clemente e o Anfiteatro Flávio, as dores do parto a assaltaram com tamanha violência que despencou da montaria, fazendo com que se torcesse no chão entre gemidos e urros horríveis, chegando a assustar os populares, que pensaram que o próprio Santo Padre tivesse sido possuído e que os tempos estivessem mesmo no fim! Só que rasgados os ornamentos que a cobriam, Joana se viu despida e na presença da procissão deu à luz sua criança. Imagine o caos, com os padres tentando escondê-la a todo custo, os mais robustos levando-a embora com brutalidade, sem a menor consideração por suas dores, e a consternação do povo.
– E a trouxeram para morrer de volta aos aposentos papais?
– De forma nenhuma! Assim que encontraram uma igreja qualquer, fecharam as portas e largaram seu corpo no altar. Joana não durou muito mais, tanto pela vergonha quanto pelas dores, e entregou sua alma aos Céus, é o que é dito, nos braços do cardeal que era seu amante e que a protegeu de ser apedrejada pelos confrades, citando o célebre trecho evangélico segundo o qual quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra. E terminaram assim os anos de regimento de Joana. De uma mulher no posto mais alto da cristandade.
– E que fim teve o corpo?
– Dizem que foi enterrada na noite que seguiu àquele dia, naquela mesma igreja desconhecida. Sem deixar rastros. Pretendeu-se a extrema discrição, minimizando a ignomínia. Alguns estudiosos alegam que, após sua criança ser sufocada por alguns padres, seu cadáver tenha sido colocado junto com o do bebê no mesmo lugar onde sucedera o trágico infortúnio, e ali teria sido edificada uma capela, que contava com uma estátua de mármore representando a papisa em trajes monacais, sem revelar sua verdadeira identidade, erigida a pedido de seu amante, tudo destruído depois durante um dos cataclismos do ano mil, e as ruínas varridas de vez por papas posteriores. Na época da morte de Joana, transcorrido algum tempo, não faltaram repercussões, com certos visionários considerando a expiação de seus últimos momentos como insuficiente para aplacar a cólera divina, afinal ocupara a cadeira daquele que fora a pedra sobre a qual Cristo edificara seu edifício. Para os menos indulgentes, ela e seu amante foram condenados a ficarem suspensos por toda a eternidade nos extremos opostos das portas do Inferno, sendo impossível que um dia voltem a se reunir. Uma pena bastante severa que condena os amantes ao ardor solitário, enquanto aqui em nosso mundo, a fim de poupar outras almas de semelhante sofrimento e de impedir um escândalo comparável no futuro, fez-se necessária uma nova medida, afinal os olhos são enganados com facilidade. Já ouviu falar da prova da cadeira furada?
– Segundo o que estudei, durante um período introduziram essa prova constrangedora para comprovar a virilidade do Sumo Pontífice, mas não que tenha surgido porque uma papisa existiu. Com o tempo, pela graça de Deus, julgou-se simplesmente que era desnecessária e que não seria mais realizada. – Referiam-se a um teste no qual, uma vez eleito o papa, este era conduzido, antes de ser entronizado com as devidas solenidades, em primeiro lugar a uma cadeira de mármore branco no Palácio de Latrão, posta no pórtico, entre as duas portas de honra, um assento que era, porém, furado. O Santo Padre, ao se levantar, entoava um versículo do salmo 113: Deus eleva do pó o humilde, para o fazer assentar-se acima dos príncipes. Na sequência, os dignitários da Igreja davam as mãos ao Sumo Pontífice e o conduziam à capela de São Silvestre, onde se encontrava outra cadeira, esta de pórfiro, também esburacada, na qual ele se assentava. As duas cadeiras furadas teriam sido do mesmo tamanho, sem almofadas ou ornamentos, e antes da consagração bispos e cardeais deixavam o papa meio estendido sobre esta segunda, com as pernas separadas, e ficava nessa posição exposto, com os hábitos pontificais entreabertos, para demonstrar sua masculinidade. Como se não bastasse (e àquela altura Simão já dera algumas boas gargalhadas), ainda se aproximavam dois diáconos que iriam se assegurar pelo tato: então o papa estava eleito e os padres podiam render-lhe graças, prostrar-se, cingir seus rins, beijar-lhe os pés e proceder com a cerimônia, que se encerrava com um festim e uma distribuição de moedas aos frades e às freiras. – Confesso inclusive que algumas descrições que li a respeito me fizeram rir – admitiu a Pizarro, que permaneceu sério. – Decerto algo vergonhoso demais para o Corpo de Cristo, considerando-se que Alexandre VI era reconhecido publicamente como pai dos cinco filhos de Vannozza dei Cattanei e teve que passar pela mesma prova!
– Alexandre VI, que ao que tudo indica comprou seu pontificado, foi só um dos tantos papas corruptos que tivemos. Tivemos hereges nestorianos e arianos; e Silvestre II dizem que foi um mago que vendeu a alma aos demônios. Os exemplos são inúmeros. E o fato de até mesmo uma mulher ter se sentado no trono de São Pedro evidencia que os que se sentam nele não se tornam automaticamente santos. O que me dá o direito, portanto, de duvidar do nosso atual papa e das intenções dele para com os cruzados. Ou é um ignorante, talvez um ingênuo, ou alguém como Silvestre II.
– Prefiro ter fé na ingenuidade.
– É mesmo meu bom Simão! – Balançou a cabeça e enfim sorriu.
– Os bons podem padecer mil danos, mas o dano final recai sobre os pérfidos.
***
A conversa fora proveitosa. Mas logo, com Simão precisando se dedicar a seus próprios afazeres, Pizarro foi deixado sozinho na penumbra exterior e na profundidade de seu pensamento.
Recebeu uma esperada visita:
– Tenho o que precisa ver, meu senhor. – Uma presença vaporosa, em alguns momentos brilhante, entremeada por raios verdes ou azuis, em outros opaca e pesada, ora apresentando uma notável densidade, ora diáfana, formou-se diante da porta, inclusive mantendo-a inabalável enquanto ali permanecesse. Se alguém a tentasse ultrapassar ou derrubar, com o corpo ou com um aríete, de nenhum modo conseguiria fazê-lo. – Perdoe-me pela demora, mas acho que consegui captar o que era necessário para esclarecer suas dúvidas. – Um rosto enfumaçado se delineou e encarou o Superior Geral dos jesuítas.
– Espero que tenha feito um bom trabalho, espírito. Minha expectativa em relação a você é das melhores.
– Estou ansioso para satisfazê-lo, meu senhor. – Os olhos da criatura se unificaram, transformaram-se em um espelho, que passou a exibir imagens cada vez mais claras: Pizarro, mago inconfesso, pôde ver o papa Inocêncio XV, que abria uma passagem secreta em seus aposentos, descia por uma escadaria e, ao penetrar em uma sala oculta, descortinava uma cabeça de pedra com feições disformes que lembravam mais uma mulher do que um homem; era a cabeça de um demônio do sexo feminino, sua alma presa àquela tosca escultura.
– Aqui estou, Meridiana. – A ela se dirigiu, sob os olhos fixos do jesuíta. – Preciso da sua ajuda.
Não tinha como imaginar que estava sendo observado.
***
As paredes em volta eram escuras e estavam riscadas e manchadas de água escorrida. O teto apresentava algumas goteiras.
Antenor, de torso nu e já marcado pela cruz de ferro quente, em nada refrescado por aqueles pingos, estava sentado em uma poltrona de couro velho. Recebeu um cálice contendo um líquido rubro e borbulhante das mãos de Jonathan Cibo.
Levou-o aos lábios. Além de quase queimá-los, o sangue do Senhor tinha um gosto ferroso tendente ao amargo. Era melhor acabar logo com aquilo.
Despejou o resto do conteúdo de uma vez só. Seu peito voltou a arder. Respirou fundo aquele ar de pedra úmida e devolveu o recipiente ao cardeal, que sorriu. Restava aguardar os efeitos.
Engoliu saliva, sua garganta ainda quente.
– Esse sangue estava apressado para ser bebido, não via a hora de escorrer em novas veias, por isso se manifestou daquela forma. Dificilmente ele ferve na proximidade de um ser humano.
– Não sei por qual razão, Eminência, mas estou sentindo um pouco de medo. Talvez seja ansiedade. Não tenho ideia do que vai acontecer comigo.
– Nem nós. O sangue de Cristo age de forma diferente para cada um. Os seres humanos possuem sistemas digestivos distintos. – Foi fitado pelo lusitano com um olhar de interrogação. – Estou brincando, meu jovem! Não é o estômago o que faz a diferença. O coração, a mente e o espírito é que são fundamentais. Veremos o que irá suceder.
Antenor não verbalizou mais nada, sem a mínima vontade de falar. Na verdade, não conseguiria fazê-lo mesmo que quisesse, pouco a pouco sentindo-se semelhante a uma larva em um casulo. Náuseas e azias tiveram início e parou de enxergar Jonathan, que não saiu de perto quando regurgitou no chão pela primeira vez. Era um vômito azedo, com aparência de entranhas.
Como se estivesse colocando tudo o que não servia para fora, chegou a ver seu fígado e seu baço se desmanchando, o pâncreas se diluindo. Teria sido enganado? Aquele não seria nenhum sangue de Cristo e sim um veneno letal, e aqueles eram falsos padres vermelhos, que o preparavam para a morte? "Não pode ser! Estou em Roma, a sede da santa Igreja!" Com um certo esforço, conseguiu afastar algumas desconfianças absurdas.
Contudo, e se não fosse digno e não resistisse ao sangue de Cristo? Já fora admitido como cruzado e nunca ouvira falar de homens que tivessem falecido durante a transformação, afinal era um sangue sagrado, não um veneno.
Haveria uma primeira vez? Precisava rezar, elevar seus pensamentos a Deus em devoção, orar com fé e não se deixar levar pelos pesadelos mais profundos, que rondavam à sua volta e davam botes feito dragões verminosos.
"Não vou resistir!" Seu peito queimava com mais intensidade do que nunca, mordido por uma serpente que o assediava com um olhar convidativo, fazendo com que visualizasse imagens luxuriosas e experimentasse sensações lúbricas. "Tenho poder para afastar essas tentações e sofrimentos, tenho que crer em Cristo, em Deus, no Espírito Santo!" Repetiu para si mesmo; e teve início um êxtase que lhe deu a impressão de levá-lo às alturas. Um canto celestial tomou conta de seu ser e expulsou as trevas.
Jonathan esfregou as mãos e sorriu. Seu novo pupilo se contorcia e, ao recobrar a consciência no corpo físico, uma ponta metálica saiu devagar de uma veia de seu pulso.
– Meus parabéns, meu rapaz! Está definitivamente entre nós, foi admitido por Deus e não apenas pelos homens! Venha até mim para que possa lhe dar um abraço. – Abriu os braços.
– O que foi isso, Eminência? – Ainda parecia atordoado.
– Você passou pelo processo necessário de limpeza e purificação espiritual, meu filho. Não há razões para medo. Todos os seus irmãos, seus companheiros, já passaram pelo mesmo processo uma vez, embora as reações e visões sejam distintas para cada um. Se busca algo que o console, fique ciente de que foi um dos que menos sofreu entre os atuais, ao menos levando-se em conta o tempo que o seu martírio durou. Foi bastante curto. Aproximadamente dez Ave-Marias e acabou! – Havia uma certa crueldade na expressão do cardeal.
– De algum modo, passamos pelo que Cristo sentiu na cruz? Em menor escala, é claro!
– Quase isso, Antenor. Efetivamente, não é muito se comparado ao que Ele sentiu, mas é muito se considerarmos que somos apenas humanos. Você se saiu bem. Estou orgulhoso! – Foi até Antenor. Puxou-o pelo braço direito e concretizou um abraço e logo um beijo na face direita.
– Parece que mal acabei de ingerir o sangue de Cristo e já consigo sentir a presença demoníaca no mundo, a interferência diabólica. O ar ficou mais pesado. As pessoas em que penso dão a impressão de estarem oprimidas por uma nuvem escura e densa. Os inimigos estão por toda parte.
– Levará algum tempo para se acostumar à sua nova natureza. Antes de trabalhar, precisará relaxar um pouco, ou as suas capacidades tardarão a chegar ao auge e à estabilidade. Tenho outro tipo de sangue em uma adega. Quer ir até lá?
– Acho que esse sangue eu aceito. – Antenor sorriu, um tanto encabulado e um pouco confuso.
– Tenho alguns de Braga e do Porto. Não se preocupe, não vai reagir mal ao vinho. Os seus órgãos estão em perfeito estado, como jamais estiveram!
Retiraram-se daquele ambiente sombrio para comemorar.
Ao sair dali, o luso enfim pôde sentir algum alívio e satisfação.
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