A aldeia era pobre. Tão pobre que, mesmo na primavera, os frutos nas árvores mal tinham suco, e seus caroços lembravam caveiras.
Não havia recursos para pagar um cruzado, e por isso quem dominava a cena era um demônio que, todas as noites, surgia em alguma casa para cobrar seus tributos.
Aquele de quem mais abusava – ao menos uma vez por semana – era o pequeno Gilles, filho de um casal de palidez amaldiçoada aos olhos dos outros habitantes. Era quem mais agradava à criatura das trevas por unir, em um só corpo, a delicadeza feminina de uma menina bonita e esbelta ao membro masculino.
Para o espanto de seus pais, Gilles já menstruara, além de ter pouquíssimos pelos no corpo.
– É a maldição sobre este vilarejo, da qual inclusive vocês fazem parte, ou acham que poderão escapar do horror do final dos tempos? A grande Babilônia cairá, o Anticristo se aproxima e a Besta de sete cabeças nascerá das Águas para incendiar o mundo. Não enxergam os sinais? – Ao consultarem o padre local, obtiveram esta resposta.
O sacerdote, de batina rasgada e crucifixo enferrujado, vivia com os olhos vidrados além, sem conseguir encarar seus interlocutores, e passava a maior parte do tempo enfurnado na única igreja da aldeia, que só abria uma vez por dia, à hora nona, para uma missa curta de meia-hora.
Embora o demônio só aparecesse ao anoitecer, era melhor tomar as devidas precauções para não ofendê-lo.
– Por que as nossas peles e os nossos cabelos são assim, diferentes dos outros, tão claros, brancos demais? – Gilles perguntou aos seus pais. Almoçavam pedaços de um queijo embolorado e de um pão macilento sobre uma mesa de madeira velha repleta de teias de aranha embaixo, ainda que as aranhas já estivessem mortas.
– Há muito tempo, este lugar foi amaldiçoado porque nossos antepassados tinham recursos e foram gananciosos. Não pagaram à Igreja pelo extermínio de um demônio muito pior do que este que enfrentamos hoje. É uma história que seu avô nos contava – explicou a mãe, de cabelos de algodão e orelhas pontiagudas. – Pecamos pela avareza. Queríamos tudo para nós e nada para Cristo. Dessa forma, a ira divina caiu sobre nós, recebemos chuvas de fogo e água fervente, as colheitas não renderam mais e, ao passar dos anos, um novo demônio se manifestou. Agora não podemos pedir auxílio à Igreja e aos seus cruzados porque não temos nada a oferecer.
– Mas qual a relação disso com a cor da nossa pele? E com o fato de sermos tão frágeis ao Sol...
– Cada descendência recebeu uma maldição. A do seu pai e a minha é a mesma porque somos primos. Caímos, portanto, em outro pecado: nosso sangue se misturou. Talvez por isso você tenha alguns problemas de menina em um corpo de menino. Perdão, meu filho – ensaiou um choro, porém aqueles olhos álgidos estavam secos.
– Mas qual é a nossa maldição? – O garoto exibia um olhar conturbado.
– Você já se referiu a ela. A luz do Sol nos faz mal, muito mal. Não somos dignos da luz de Deus. Quanto mais no Paraíso. Estamos condenados ao Inferno já em vida. Quem não pode receber a luz do Sol, que fornece a este mundo a vida, que tipo de criatura pode ser? Fantasmas da noite e do inverno, é o que somos! O nível mais profundo do Inferno, o Cócito, é gelado ao extremo, formado pelas lágrimas de Lúcifer, é o que o padre nos diz.
Gilles dormia encolhido. Sempre sentia muito frio, como se o Cócito fosse uma recordação, a pior das memórias da morte. Quem havia lhe dito que morrer pertencia ao futuro? A morte não se aproximava a cada instante; ela já estava ali e passara, e o pior era não ter a esperança de um fim. O sofrimento prosseguiria para além do que outros seres denominavam vida, do seu ponto de vista um devaneio carnal repleto de calor e movimento que as pessoas criavam para si, distante da realidade que experienciava. Para Gilles só havia gelo e garras, suas cobertas nunca eram o bastante, seu travesseiro magro em demasia, e a iminência do pesadelo desperto o aguilhoava a cada vez que o monstro vinha e retirava seus lençóis. Fazia com que sentisse ainda mais frio ao sobrepor aquele corpo gelado às suas carnes albinas.
Onde estava o Sol? No alto do céu, os braços da cruz se curvavam em lâminas hostis, cujo brilho cegava.
– Está vendo, garoto? Deus não pode fazer nada por você! Uma criaturinha tão pequena, tão fraca e patética! Seus dedos são ossinhos que morro de vontade de roer a cada vez que os observo. E pode ficar certo que isso chegará um dia, não vou mais me segurar, e não pense que farei isso quando estiver morto. A carne viva é mais saborosa e quero sentir muito prazer, vê-lo urrando de dor enquanto os meus dentes mastigam as suas carninhas. E quando eu tiver terminado, vou meter em você pela última vez. Será quase um cadáver. Imagine o cheiro da minha saliva e do seu sangue se misturando, a pele arrancada e os seus ossos para fora, roídos. Que delícia! Você não vai precisar sentir mais nada. E irá para o Inferno com um alívio nas entranhas, antes de gelar no poço mais profundo, onde nosso imperador o espera.
A criança urrava e se debatia, seu sofrimento incrementado pelo verbo diabólico, porém não havia nada a ser feito. Seus pais se mantinham distantes, submissos, e qualquer movimento suspeito da parte deles seria motivo para que a criatura se virasse e arrancasse suas cabeças com um único golpe do braço vermelho e musculoso de macaco, terminado em garras de leão.
O demônio tinha um corpo peludo e rubro que mesclava aspectos de símio e felino, uma cabeça calva e um rosto maníaco de olhos cor de âmbar e boca e nariz minúsculos.
No entanto, a boca podia crescer até dar a impressão de rasgar suas faces, e não se limitava às violências cometidas contra os jovens. Cultivava o hábito de agredir idosos. Pisoteava-os com seus pés enormes quando iam ao chão, ele que passava dos dois metros de estatura, e mastigava com volúpia os ossos dos que matava.
O pequeno albino andrógino às vezes tinha pesadelos com o som daquela trituração. Por outro lado, com uma frequência pouco inferior sonhava que um dia um cruzado chegaria à aldeia. Os aldeões apontariam admirados para o santo cavaleiro, que lhes diria que suas dívidas haviam sido perdoadas e que a maldição chegara ao fim.
A dos cruzados era uma missão deveras grandiosa! Os nobres guerreiros da Igreja ajudavam as pessoas, protegiam-nas, salvavam-nas dos monstros e dos hereges.
Se um dia, por um milagre – mais absurdo do que qualquer um dos seus sonhos – , fosse se tornar um, seria impiedoso com os seres das trevas, humanos ou demônios que fossem.
Se outra aldeia cometesse o erro de não recompensá-lo, iria destruí-la pelo próprio bem de seus habitantes. Era melhor ir para o Purgatório do que padecer de uma maldição.
***
Um dia, era seu décimo terceiro aniversário, Gilles resolveu fugir.
– Onde está? Onde está o meu brinquedo?! – Furioso ao notar a ausência do garoto, o monstro quebrou todos os pertences do pobre casal.
– Não sabemos! Ontem à noite ele estava aqui. Desapareceu pela manhã. Procuramos por todas as partes, mas nem sinal dele! – balbuciou a mãe, com o coração na garganta.
– Sinto que não estão mentindo. O que é mesmo muito bom. Mas ao mesmo tempo péssimo. Se o tivessem deixado escapar, ou o estivessem escondendo, mataria vocês agora. Só que como não foi o caso, vou dar um dia e uma noite para que reencontrem o meu brinquedo. Não importa o jeito. Quero ele de volta. Vocês vão me trazer ele de volta – misturava grunhidos e um rosnado raivoso à linguagem humana; e desapareceu nas sombras, com os pais empreendendo uma busca desesperada durante as horas seguintes. Mais uma vez consultaram o padre:
– Não, ele não está escondido na minha igreja!
– Calma, padre. Não é a isso que nos referimos. Só queremos uma ajuda.
– Não, não… E se ele estivesse aqui, eu o teria entregado pessoalmente ao demônio!
– Já lhe dissemos que não estamos insinuando nada. Apenas queremos que nos ajude, que reze por nós.
– Meus filhos, a vida é curta e o Sol não tarda a se pôr. Para alguns já se pôs. Todas as coisas são trabalhosas. – Fechou as portas para os pais angustiados, enquanto Gilles se embrenhara na floresta da região. Por dentro, pedia perdão aos dois: "Espero que entendam. Mas preciso encontrar um cruzado. Tenho que me tornar um. Se ficar onde estou, morrerei logo, serei assassinado, e vocês não terão um destino diferente. Viverão só um pouco mais. Mas, se Deus me permitir, vou voltar e salvar vocês. Talvez haja tempo. Tem que haver tempo! A minha perna não está mais me obedecendo, droga!" O pé direito começava a ficar dormente. A panturrilha formigava. O esforço fora tremendo para se distanciar o máximo possível da aldeia. Correra como nunca. Mas, sem o preparo físico adequado – pelo contrário, era muito frágil e estava um tanto desnutrido –, seu corpo não suportava mais. Tentava engolir o ar, porém este lhe escapava.
Uma forte tontura lhe subiu à cabeça. Não pôde se segurar. Desmaiou sobre a terra e as folhagens.
Despertou ao ouvir, em sonho, um som familiar. Estava sendo farejado.
Não era uma fera das redondezas, nenhum animal ordinário.
Apavorado, reconheceu um fungar de narinas que conhecia bem. O demônio o encontrara!
– Imaginei que não poderia ter ido muito longe! – liberou uma gargalhada ao se aproximar. – Sorte dos seus pais… O filhinho vai fazer um grande favor para eles!
O garoto ficou paralisado, cada vez mais fraco à medida que o monstro se acercava.
O Sol castigava-lhe a cabeça e agora o calor se impunha sobre o frio, para queimá-lo.
Lançou um grito agudo de agonia, ódio e dor.
– Acha que adianta berrar? Acho eu que, como castigo, chegou o dia de roer os seus ossinhos! Vou encontrar outro melhor. Ou seria outra?
Na imaginação, atirava-se contra o demônio, desferia-lhe socos e chutes, perfurava-lhe a garganta com um graveto. Na realidade, não se movia.
– Fraco demais para lidar com um adulto? – interveio uma voz grave e majestosa.
Uma lâmina voou e atingiu o pescoço do demônio. Perfurou-o. O corpo inteiro da criatura pegou fogo e virou cinzas em questão de segundos, sem tempo sequer para gritar.
Gilles ficou boquiaberto. Uma expressão que se transformou em um sorriso arreganhado. Embora a preocupação com seus pais lhe martelasse a mente, rejubilou-se ao constatar que seu destino se cumpriria. A maldição fora encerrada por sua coragem e seu senso de sacrifício. Afinal, rumara para o desconhecido renunciando até mesmo à mãe e ao pai, seus bens mais preciosos.
Por um instante, chegou a se ver pendurado em uma cruz de ouro. O metal frio em contato com a pele.
Então o cruzado despontou: um anjo viera buscá-lo, para lhe estender uma escada rumo aos Céus.
– É maravilhoso. É a maravilha de Deus – disse o garoto andrógino.
Diante dele, reluzia um guerreiro de aspecto celestial. Usava uma armadura dourada na frente, com o Sol no peitoral, e prateada nas costas, com a Lua abaixo dos ombros.
O elmo imitava a cabeça de um falcão, ostentando um par de rubis no alto, como se fossem olhos, e a pele era quase tão clara quanto a sua, porém mais rosada. Seus olhos de verdade lembravam um mar aquecido pelo astro-rei; os cabelos eram cachos de ouro sedoso.
Abaixou-se para recobrar a espada que levara ao incêndio, intacta entre as chamas, que se apagaram sozinhas.
Gilles se atirou para abraçar suas pernas, mas o cruzado se desviou e o menino enfraquecido caiu com a cara no solo.
– Não pense que agi por caridade, garoto. Apenas não posso admitir que certos demônios infames se considerem superiores ao ser humano – disse seu salvador.
Mesmo com uma postura que de tão altiva chegava a ser ríspida, não podia deixar de encantar Gilles, que se levantou devagar.
– Agora já estou indo. Tenho uma missão a cumprir. Não sei onde você vive nem como veio parar no meio do mato, mas, se esse demônio atormentava a região e o perseguiu até aqui, pode voltar e dizer aos seus conterrâneos que estão livres. Não precisam pagar nada.
– Eu fugi… na verdade, eu fugi. – Com algum esforço, o garoto confessou.
– Fugiu de casa? E deixou sua aldeia à mercê do monstro? Essa não é uma atitude digna de um homem.
– Sempre fui muito fraco… diferente do senhor. O senhor é um cruzado, não é?
– Sou um cruzado. E tenho muito o que fazer. Coisas mais importantes do que conversar com crianças covardes.
Deu as costas ao garoto, que, desta vez, foi rápido e firme, agarrando-se à perna direita do guerreiro. – O que está fazendo?
– Não quero que o senhor se vá. Se o senhor for embora, quero que me leve junto.
– E por que eu o levaria comigo?
– Também quero ser um cruzado.
– Ora, seu pequeno idiota, acha que é tão simples assim? Que fique bem claro: a nossa vida é um inferno.
– Eu sempre vivi no inferno. Só que era muito frio. Enquanto o senhor é quente.
Ao escutar essas palavras, o cruzado teve um sobressalto e um calafrio percorreu-lhe a espinha. A história de vida do garoto vibrou em seu interior. Conquanto não pudesse saber dos fatos nem conhecer detalhes, em alguns instantes colheu a essência. Pensara em atirar longe o menino com toda a força da perna, mas agora se arrependia do que lhe passara pela cabeça, chamando-se de covarde.
– O meu calor queima, é insuportável.
– Não para mim. É diferente do calor do Sol. O calor do senhor me aquece.
– Tudo bem. Mas é melhor soltar a minha perna. Prometo que não vou fugir.
Gilles teve a impressão que suas mãos seriam fritadas se permanecessem por muito mais tempo grudadas àquele metal, mas estava disposto a deixá-las ali, sofrendo, se isso fosse aliviá-lo por dentro.
– Mas por que gostaria de se tornar um cruzado?
– Eu odeio os demônios. E os hereges que os invocam, atraindo maldições. – Soltou-se.
– O meu nome é Wilhelm Friedrich. Mas pode me chamar de Friedrich.
– Prazer, o meu é Gilles. Não tenho nome de família. O meu pai perdeu o dele depois da maldição.
– A sua família foi amaldiçoada?
– O meu vilarejo inteiro.
– A minha missão pode esperar mais um pouco. Leve-me até lá.
Conduzido pelo menino, andando a passos calmos, o cruzado chegou à aldeia. Chocou-se com a igreja de portas cerradas. Havia poucas pessoas nas ruelas. Nenhuma criança além da que o acompanhava e muita melancolia, que se transformou em estranhamento ao começarem a prestar atenção em seu porte e em sua armadura. Não podia ser o que imaginavam que fosse.
– Filho! Graças a Deus que você voltou! – A mãe abraçou o garoto fugido.
– Graças a Deus que ele voltou porque assim vocês continuam vivos, mesmo sendo o brinquedinho de um demônio? Afinal, o que conta é vocês estarem vivos, ou o amam de verdade? – questionou Friedrich ao entrar na casa da família de albinos.
– Quem é você? Não nos conhece e não sabe do amor que temos pelo nosso filho. – O pai avançou.
– Não briguem, por favor! Pai, esse é o Friedrich. É um cruzado. – Então o albino adulto parou. – Ele me salvou do demônio. O vilarejo está livre.
– Nós… Mas não temos como pagar!
– Não se preocupem. Eu nem sabia que essa aldeia existia. Não é uma missão oficial. Fico quieto, e vocês também. Basta agradecer.
– Perdão… – Ficou em silêncio por alguns segundos, e então passou a gaguejar palavras sem nexo, até conseguir externar a gratidão e a culpa pelo tratamento inicial: – Mil vezes obrigado! Espero que desculpe a nossa má recepção. O senhor salvou nosso filho e nossa aldeia! Livrou-nos da maldição, tenho certeza! Mil perdões!
– Já chega. Não precisa alardear a sua debilidade.
– O senhor aceita um pouco de leite? Ou um pedaço de pão? – A mãe ofertou.
– Obrigado, mas não como muito. Vim aqui por outro motivo, não para ser celebrado.
– E qual seria a razão?
– Seu filho quer se tornar um cruzado, e acho que poderei realizar a vontade dele.
Os pais se entreolharam. Como poderiam se opor?
Organizaram uma festa assim que o Sol se pôs, com os parcos recursos da aldeia, e a coletividade convidou Friedrich a permanecer. Não havia muita comida, mas era a primeira vez em anos que seus habitantes voltavam a dançar, cantar e tocar, empolgados ao retirar o bolor dos tambores. O padre punha a cabeça para fora; e o cruzado o fitava com desprezo.
Ao saírem da aldeia, Gilles não conseguia tirar os olhos de seu novo mentor e guia, cheio de entusiasmo quanto ao futuro e àquele que, a seu ver, o ajudaria a construí-lo.
No entanto, logo começaram as duras lições:
– Acha que estamos a passeio? – Friedrich se voltou em um giro abrupto e colocou a ponta da espada na garganta do menino, cujo sangue gelou. – O treinamento começa na caminhada. É só assim que forjamos homens superiores e distinguimos os fortes, como eu, dos fracos, como seus pais e aquele padre do seu vilarejo, que não tinha fé o bastante sequer para orar a Deus por ajuda.
– Meus pais não tinham culpa por serem fracos. Não eram covardes. Só fracos, que nem eu.
– Você não tem mais o direito de ser fraco. A partir do momento que me aceitou, terá que ser forte se não quiser morrer. Veja o exemplo do padre: sei que não orava com sinceridade, pelo que pude ler nos olhos dele. Não teve a mínima coragem de me encarar porque sentia culpa... e medo de que eu descobrisse a verdade e lhe desse o castigo merecido. Deus despeja ainda mais rochas sobre os que já carregam pesos. Do pobre, tudo será tirado; ao rico, tudo será dado. O fraco ficará cada vez mais fraco e vulnerável; o forte se fortalecerá a cada dia mais. O forte aceita as pedras que caem e as coloca sobre os ombros. Não tem receio de saltar o abismo. Entenda o que são os homens inferiores: são os pecadores que se esquecem de Deus. Como consequência, Deus também os deixa de lado. Já os homens superiores são os que confiam em si mesmos e em Deus sem titubear por um só instante, cientes de que o menor receio durante o salto significa a queda. – Tornou a embainhar a espada. – Por acaso já viu um homem no escuro, correndo com uma tocha, a dizer que Deus vive? Você precisa encontrar a luz do seu deus vivo dentro de si mesmo, sem procurá-lo na noite do mundo, pois isso sempre será em vão. Ninguém virá para anunciá-lo.
– Mas e Cristo?
– Cristo já veio. E quem foi Ele, além de alguém que reconheceu a própria chama queimando no coração? Uma chama tão quente a ponto de aquecer os corações alheios. E, ainda assim, não foi o bastante para iluminar a noite do mundo. Persistimos na escuridão. E há os piores tipos de morcegos e predadores noturnos, que se entregam ao sangue mais denso e obscuro.
– Quem seriam esses? Os demônios?
– Piores do que os demônios são os homens fracos que se deixam dominar por eles. Os cruzados andam sobre o fio da espada. Não sei se você sabe, não deve saber, que os pequenos pecados, os mínimos medos, abrem enormes brechas para os cruzados, propiciando a entrada gradativa dos seres das trevas. Pelo acúmulo ou pelo excesso, esses seres podem nos possuir. Nas minhas missões, matar possuídos é o que me dá mais prazer e mais me contenta, pois são homens que se tornaram parte de uma espécie inferior, enquanto os cruzados originais pertencem a uma superior. – Friedrich fez uma pausa antes de continuar: – Se algum dia eu for possuído, deixo isso claro: considere-me um fraco e um tolo. Se me encontrar, mate-me. Destrua meu corpo sem piedade, pois ele terá se tornado sujo e indigno. E o mesmo vale para você: se por acaso for tomado por um monstro, não terei a menor compaixão da sua carne. Será carne crua para que eu a devore.
Gilles ficou impressionado com aquelas explicações. E precisaria colocar toda a sua coragem e força à prova, demonstrando que havia compreendido o que lhe fora dito, ao acompanhar o altivo cruzado na missão seguinte. Esta consistiria em lidar com um possuído que vinha aterrorizando a região de Bordeaux. Uma missão tão perigosa marcaria o início de seu treinamento. Atuaria como escudeiro e, ao mesmo tempo, desenvolveria um trabalho de confirmação interna.
Chegando à cidade, hospedaram-se em uma estalagem modesta, onde foram muito gentilmente recebidos pelo anfitrião, que depôs sobre a mesa de carvalho uma jarra de madeira com o melhor vinho que tinha em sua adega.
Contudo...
– Por que não perguntou antes se nós, cruzados, bebemos vinho ou se somos abstêmios? – Friedrich, em um gascão de leve sotaque teutônico, indagou em um tom que parecia conter uma ameaça velada.
– Perdão, meu senhor! Só quis ser gentil e nem refleti. É que aqui temos o costume de oferecer boas bebidas a todos os nossos hóspedes! – Era um homem baixo, de bigode espesso, braços robustos e barriga que transbordava do cinto; baixou a cabeça e apertou o avental engordurado.
Gilles olhava para um e outro de forma alternada, preocupado que seu senhor tivesse se aborrecido de verdade e pudesse haver derramamento de sangue.
– Fique tranquilo. O meu espírito não se envergonha por fazer as vontades das minhas vísceras nem se esquiva da vergonha pelas vias da mentira e da dissimulação! – O cruzado ergueu um amplo sorriso, mudando de expressão. Gostava de brincar com o medo alheio. – Não cultivo uma vontade amortecida. O imaculado conhecimento de todas as coisas é para mim ter garras e não ser frio ou cinzento. Afinal, Cristo transformou água em vinho. Por que faria isso se o vinho não fosse uma boa coisa? Até o usa para transformá-lo em seu sangue, que escorre dentro do corpo dos maiores guerreiros da cristandade.
– Ufa! Pelo visto o senhor gosta de brincar então! É bem afim ao nosso temperamento! – O homem passou a mão pela cabeça calva, que transpirava.
– Sem falar que o garoto aqui em breve terá de beber do sangue de Cristo. Tomar do seu vinho, se for um vinho forte, pode ser uma boa preparação. – Colocou a mão na cabeça de Gilles e afagou-a.
– O meu é um vinho forte e jovial, que decerto agradará ao menino. É seu escudeiro? Parece um rapazinho tão franzino...
– Mas possui grande força interior, que é o que conta para nós. – Gilles saltitou por dentro com a afirmação. – Possui a inocência do desejo. Não é um sentimental ou um idealista hipócrita.
– E quem seriam esses?
– Os que entre nós falam sobre Jesus, Maria e os santos, e por dentro são como fragmentos de homens, não acreditando que Deus possa transformar tudo ao transbordar de dentro para fora. Esses serão sempre fracos, pois se apoiam no que não existe: a perfeição humana. O Criador presenteia o tempo todo os que aceitam a perfeição divina, que não depende de ideias. Basta observar a natureza. Mesmo o animal selvagem e violento, o lobo, é necessário para que os cervos não consumam todas as nossas florestas. O garoto aqui tem potencial para aceitar o lobo.
– O discurso do senhor é bastante incomum... Falando em lobos, veio para caçar um, não é? – Serviu o vinho contido na jarra: encheu a taça de Friedrich e até a metade a de Gilles. Não havia mais ninguém em volta.
– Vim para caçar um fugitivo, um covarde que escapou da manada e se deixou contaminar pela doença da raiva. Antes que o mal se espalhe, é preciso aplicar a morte. Não há como curá-lo.
– Quer dizer que se trata de um dos senhores. – E se corrigiu a seguir: – De alguém que foi um dos senhores.
– Um cruzado pecador que se deixa possuir desonra a todos nós. São nuvens sobre o espírito que demoram a passar. – Bebia com muita calma, ao passo que o dono da hospedaria tomou de uma vez um cálice cheio. – Imagino que isso faça com que as pessoas nos temam, porque se demônios comuns possuem gente comum, os cruzados só podem ser possuídos pelas piores criaturas.
– Apesar disso, confio nos senhores. Possuídos são exceções, não são? E quando acontece, são logo liquidados. Confio na Igreja. A pedra que Cristo fixou nunca será removida.
– Quando há confiança sem orgulho, o acima e o abaixo se reconciliam. Terá sempre prosperidade, meu bom amigo. – Gesticulava tranquilo com os dedos de suas mãos esguias, o indicador ou o médio por vezes acariciando o polegar. – Seu vinho e sua companhia enviam o desânimo para o patíbulo.
– Amém! E fico lisonjeado com suas palavras, afinal estou diante de um enviado de Nosso Senhor.
– Sábias palavras, meu bom anfitrião.
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