– É um rapazinho lindo! Só que bastante peculiar. É difícil um jovem ser tão silencioso! – Em uma barulhenta festa de famílias florentinas tradicionais no palácio dos Cavalcanti, Francesca Uberti, irmã do cônsul Guido Cavalcanti e casada com Bernardo Uberti, fez esta observação para a esposa do dirigente de Florença, Beatrice Guicciardini. Parecia preocupada com seu sobrinho. – Guido não vai tomar alguma providência?
Apesar de querer aparentar ser uma mulher madura, Cesca, de vinte anos, não conseguia esconder seu ar pueril. Tinha grandes olhos azuis intranquilos e a agitação era constante nos gestos e na voz.
– Por enquanto, Guido não vê necessidade de tomar nenhuma providência. – Era bem diferente da consorte do governante da cidade, que com seus trinta anos, calma e elegante, de cabelos ruivos e semblante sereno, era mais capaz de amar do que de se fazer temer.
– Mas Lorenzo é tão diferente de Cesare, apesar de terem nascido no mesmo dia e de serem tão parecidos fisicamente! – Cesca se abanava com um leque multicolorido. – O jeito de falar, de olhar, de andar… Não seria bom que Lorenzo tivesse pelo menos um pouquinho de Cesare, que é tão desinibido?
– Gêmeos não deixam de ser pessoas distintas. – Beatrice envolveu com o polegar e o indicador uma das azeitonas da bacia de prata à sua frente. – É verdade que, enquanto Cesare é comunicativo, e até já flerta com algumas donzelas, Lorenzo é tímido, reservado e prefere a arte e as letras a grandes agitações e eventos festivos. Mas isso não faz de um melhor e do outro pior.
– Um dará um bom padre e o outro será um cavaleiro corajoso.
– Ainda não tenho ideia do que serão nem me interessa pensar nisso no momento. Quero que vivam o presente e aproveitem da melhor maneira possível o que são e o que têm a seu dispor.
Lorenzo, aos seus quinze anos, não conseguia escutar a conversa na mesa das mulheres, até porque, além da distância, havia muito falatório e música. Ouvia era a voz de seu pai enquanto negociava com os Pazzi e outros banqueiros, às vezes complementada pela do irmão. Mas percebera alguns olhares femininos, que o deixavam curioso e encabulado.
No dia seguinte, foi sozinho até a Torre della Pagliazza, uma antiga torre semicircular situada na pequena praça de Sant’Elisabetta, na parte mais antiga do centro de Florença, por alguns apontada como o mais velho edifício da cidade.
Lorenzo era um amante da história, aquele portanto um lugar que apreciava, pois conseguia imaginar os tempos em que godos e romanos combatiam por ali pela posse de Florentia.
Com tão pouca idade, sofria para permanecer no presente, atraído pelo passado e preocupado com o futuro.
Não percebera que fora seguido por Cesare, que o surpreendeu sentado na êxedra da base da torre:
– O que está fazendo aqui, irmão? A vida é curta! O que vai ganhar parado pensando enquanto a cidade fervilha? Deixe disso!
– Por que me seguiu? – Surpreso, o garoto, quase sempre calmo, demonstrou algum incômodo.
– O que tem de mais? Só achei que seria melhor não deixar o meu irmão caçula sozinho por aí.
– Não sou o caçula. Somos gêmeos, ou você se esqueceu? – Na aparência eram gêmeos idênticos, porém Cesare deixava os cabelos mais compridos.
– Calma, não estou dizendo que sou responsável por você, nem nada do tipo. É só preocupação natural de irmão. Apesar de eu ter nascido alguns instantezinhos antes!
– Achei que tivesse uma memória tão curta quanto a sua paciência para qualquer questão mais profunda.
– Veio até aqui para refletir na companhia de algum filósofo fantasma? Olha, Lorenzo, sabe qual a minha preocupação? Que você um dia não aguente mais e vá parar em algum prostíbulo de quinta e pegue sífilis, ou algo pior. O nosso pai é bom demais para merecer isso!
– Você é realmente um fanfarrão. Se alguém aqui poderia fazer uma besteira dessas, esse alguém não sou eu. – Àquela altura conformado com a chegada de Cesare, sem estar com raiva, mas ainda sem conseguir sorrir, Lorenzo se levantou e começou a andar.
– Aonde você vai?
– Para onde os meus pés me levarem. E você?
– Vou atrás de você.
– Sempre achei que tivesse um irmão, não uma sombra.
Algumas diferenças podiam ser notadas por meio de uma observação atenta das aparências dos irmãos. Físicas no caso dos cabelos bem penteados de Lorenzo e dos revoltos de Cesare. Quase físicas nos olhos travessos do segundo e nos de falsa quietude do primeiro.
Quando crianças, gostavam de se divertir na cozinha enquanto Maria, a cozinheira do palácio, preparava biscoitos ou bolos com mel e frutas. Cesare se escondia em meio às panelas e terrinas para roubar os restos da massa crua dos pães e doces. Lorenzo esperava recebê-los à mesa.
A criada, uma senhora gorda e simpática, perdia as estribeiras ao flagrar o gêmeo levado colocando as mãos nos recipientes antes da hora.
– Amanhã vamos ter a missa de sétimo dia do vovô. Lembrando muito dele? É o que está te incomodando? – Outro detalhe: Lorenzo era taciturno e preferia observar, em contraste com seu irmão loquaz e não tão atento ao que ocorria à sua volta, tanto que enquanto caminhavam pelas ruas de Florença tropeçou em uma pedra e quase foi ao chão.
Isso mudaria alguns anos depois, afinal Cesare se forçaria a ficar mais atento.
– Não tem a ver com o vovô. Sabe, pode ser que no dia do funeral o espírito ainda esteja próximo do corpo e longe do Paraíso… ou do Inferno, dependendo da alma. Mas depois de sete dias, acredito que não. Estou certo que é uma data significativa mais para os vivos do que para os mortos. Para eles, o tempo não existe mais. Têm a eternidade à disposição, seja no sofrimento ou na beatitude.
– Estamos falando do vovô. Não pode ser no sofrimento!
– Não sei. E os opositores que ele mandou matar? – abaixou o volume da voz. – O conde Alberigo, por exemplo.
– Isso faz parte da política. Se não fizesse isso, ele que teria sido assassinado. Aqueles eram conspiradores covardes, e na política quem não faz esse tipo de coisa não consegue governar, é a realidade. Se não entende isso, é melhor entrar para a Igreja.
– Na Igreja não é tão diferente assim. Muitos padres são políticos também.
– Fala num tom de desprezo terrível. Por que odeia tanto a política?
– Não odeio a política. Só acho que poderia ser de outro jeito. Mais humano e cristão. Não como fazem as alcateias para escolher seu líder. Talvez até elas sejam menos brutais.
– Você é muito novo para entender dessas coisas.
– Não sou novo para ler Platão.
– Platão! Um sujeito que falava que existe um mundo só de ideias? É muita imaginação para o meu gosto. Não existe perfeição. Existe o que vemos.
– E Deus seria imperfeito?
– Não sei. Deixo essas questões para os teólogos. Mas acho que sim, ou o mundo seria perfeito. Acredito que Deus mude junto conosco e com a Criação.
– Se ele é imperfeito, o Paraíso, uma condição de beatitude perfeita, não deveria existir.
– E quem disse que existe? Talvez por isso que os corpos e as almas tenham que esperar pelo Juízo Final, porque nem Deus nem o Paraíso estão prontos. Até lá, tudo o que resta é dormir. E enquanto não formos acordados pelas trombetas dos anjos, vamos vivendo aqui. Mas me diga então: se não era o vovô, o que é que está te incomodando?
– Nada em específico. Ainda não percebeu que sou assim?
– Claro, mas sempre penso que deve existir um motivo. Foi o fora que a Giulia Farinata te deu?
– Besteira. Eu só tinha catorze anos e ela tem dezoito e está noiva.
– Foi só há um ano atrás… – E era verdade; mas Lorenzo com frequência tinha a sensação de que dias eram meses, e anos séculos. Sentia-se bem mais velho do que era, e talvez por isso Giulia tivesse corrido dele.
***
De manhã cedo, os irmãos estavam na missa de sétimo dia do avô, Cosimo Cavalcanti, na catedral de Santa Reparata. Giulia Farinata comparecera, de pé junto à sua mãe do lado esquerdo da igreja, reservado às mulheres. Pareciam uma a cópia da outra, com a diferença que uma tinha algumas rugas e a outra nenhuma. O nariz arrebitado era o mesmo, assim como os lábios carnosos, mas os cabelos loiros e lisos de Giulia, por ser solteira, podiam ficar soltos, enquanto os de sua mãe eram ocultados pelo véu roxo. Atrás das duas, a tia Cesca, de canto de olho, reparava em como cada outra mulher estava vestida.
"Dizem que missas de sétimo dia servem para agilizar a passagem de uma alma pelo Purgatório, já que poucos conseguem aceder de forma direta ao Paraíso. A Igreja, nesse caso, é a intermediária que facilita a subida, até porque na Terra é quem luta contra os demônios. Isso quer dizer que ainda existe nela a semente do Salvador. Só que é muito pouco para uma instituição que deveria ser como a Lua, acolhendo a Luz de Deus assim como a Lua acolhe a luz do Sol. Uma Igreja parcial, que só desenvolve realmente bem uma função, não é o que Jesus buscava ao ser crucificado. Penso que Ele queria, pelo próprio exemplo, fixar as bases para uma reforma geral a partir da primeira pedra, uma estrutura para a humanidade redimida, mas não é o que vemos. Se não foi para estabelecer logo o Reino dos Céus, por que Cristo teve de morrer? Por que não redimir o homem do Pecado Original através de um sofrimento sem morte, de um doloroso labor na carne, que veio do solo? Li a interpretação de São Gregório, o Grande, segundo a qual dessa forma, através da morte, o diabo foi enganado, pois quando o homem se tornou prisioneiro do Demônio este se transformou no senhor deste mundo, e como Deus poderia tomar de volta suas criaturas, presas na teia do Maligno? A única maneira foi enviar seu pescador, que também era seu filho, e sacrificá-lo em troca da alma humana, assim redimindo-a. A trapaça, a astúcia, está no fato de Deus ter recuperado a humanidade entregando Cristo ao diabo, que acreditou ter obtido a maior vitória de sua existência. Contudo, o Demônio não pôde aprisionar Jesus, que é Deus feito homem, incorruptível, e dessa forma ocorreu o engano.
Não sei, na verdade, se consigo acreditar que Deus precisaria de tantos estratagemas para ludibriar o que no fundo é só mais uma de suas criaturas, e ainda por cima decaída, degenerada. A menos que Deus seja um grande brincalhão, um sarrista. Aqui há uma imagem bem ligada a essa ideia, esse afresco de Deus pescando: se formos olhar bem, o anzol tem a forma aproximada de um crucifixo e a isca é uma hóstia, ou seja, o corpo de Cristo, a ser apanhado pelo Demônio, que aqui seria um peixe, o Leviatã. É bem interessante observar: o diabo, isso concebo como uma verdade, vive dentro de nós, em nossas profundezas, e é por isso que as criaturas do mal se materializam e se manifestam; porque damos as iscas, que são nossos pecados. Em lugar de pescar o peixe, caímos junto com ele nas águas mais escuras, onde vive a noite do Ontem, do anterior à Criação, no abismo das trevas em que não há luz. São Gregório não viveu para ver que o homem ainda não se redimiu mesmo após dois mil anos da vinda do Cristo, ou não teríamos os piores crimes e os piores monstros à solta.
Lembro-me de outra teoria, segundo a qual o Criador teria ficado tão ofendido pelo equívoco de Adão e Eva que uma redenção se tornou necessária, a única possível só podendo vir do próprio Deus, já que o homem é pequeno demais. Dessa forma, Ele se fez homem para que a espécie humana pudesse se redimir com seu Criador através do Próprio. O Cristo não receberia nenhuma compensação por isso, apenas os homens. Esta, contudo, é uma teoria falaciosa, pois o mal continua a existir. Não recebemos tantas compensações assim. Nessa teoria, o que Deus não é é um trapaceiro comparável a Prometeu, tendo enganado o Demônio como o titã fez com Júpiter, afinal é o que parece ser na teoria de São Gregório, como se o diabo fosse o deus supremo e não o contrário. Pode-se dizer que a grande compensação está em sermos outra vez dignos do Paraíso, mas recompensas após a morte são uma realidade ou uma fantasia distante e vaga demais, que não nos auxilia a sermos melhores no dia a dia. Então por que Cristo foi crucificado? Por que precisou morrer, se Adão não morreu no ato após infringir a ordem de Deus? A minha resposta é que isso aconteceu para que um exemplo moral nos fosse dado, para que nunca nos abatêssemos e perdêssemos nossa fé mesmo nas piores situações, sendo portanto merecedores da Ressurreição, seja no sentido profano, a cada dia superando novos obstáculos internos e externos, seja no sentido sagrado, ao nos aproximarmos pouco a pouco de Deus em um mundo que Dele se distancia por livre-arbítrio.
Cesare prefere nem pensar nessas coisas… A política será o campo de ação dele, estou certo disso. É o primogênito; e eu sou o caçula, embora admitir isso por fora fira o meu orgulho. Que besteira! Como se a ordem do nascimento e, no nosso caso, questão de alguns instantes, determinasse superiores e inferiores! Mas é assim que funciona nas famílias, e a política é uma convivência familiar em maior escala.
Nas famílias, também temos os nossos Judas. E na política quem não segue certos interesses é forçado a lidar com esses traidores, que muitas vezes comem em nossas mesas.
Na Última Ceia, quando Jesus tomou o pão, disse que o traidor estava ali, entre os apóstolos. Mais do que uma profecia, vejo isso como uma missão: sem o traidor, não haveria Cristo, simples assim. Da mesma forma, o político que não sabe lidar com seus antagonistas, sobretudo com os que comem à sua mesa, que não se faz temido por eles, não alcançará o reconhecimento. Claro que a situação é bem diferente, que, enquanto um se movia pelo amor, os outros se movem pelo medo. De todo modo, são encargos precisos. De nada adianta se revoltar e querer apedrejar o traidor. No nosso mundo, não há luz sem sombra, e os demônios são as sombras dos anjos: nunca se igualarão, nunca alcançarão seu esplendor nem terão a mesma vida, mas os acompanharão pela eternidade, estando sempre ao lado deles, os mensageiros divinos queiram isso ou não; e o mesmo princípio se estende aos humanos.
Gosto de observar as pinturas desta catedral. Algumas delas enunciam bem como não se pode separar luz e sombras, vida e dor ou morte, no caso esta como algo subordinado porque acarreta sofrimento, se não sei se para os que a recebem, ao menos para os que ficam, opondo-se à vontade de viver, que implica a busca pela felicidade.
Uma das minhas artes preferidas é essa de Nossa Senhora ajoelhada em prece. Da janela, chega uma luminosidade através da qual desce até a mãe o menino Jesus já crucificado. É algo sublime: a criança, o início da vida do Salvador, seu desabrochar, e a cruz, que representa sua morte, estão presentes em uma única imagem.
Não me agrada a ideia de uma aceitação passiva da dor, mas compreender que ela existe e trabalhar por sua transformação constante deve ser a nossa missão neste vale de lágrimas. A cruz possui dois sentidos, duas direções, e Deus não foi tolo ao permitir que por acaso os romanos a utilizassem para o martírio de seus condenados. São duas faces, uma vertical, que aponta para o alto, para a transcendência, para o Criador; e a outra horizontal, que indica o caminho a se seguir no mundo, reto e sem elevações ou quedas, que, por sua vez, se encontram no sentido vertical, ao se fazer o caminho contrário à transcendência", era verdade que Lorenzo não prestava atenção à missa, mas ao menos estava focado em questões metafísicas e teológicas. Diferente o caso de Cesare, que já se imaginava entrando ali algum dia como cônsul ou mesmo como secretário do povo. Seria o orgulho de seu pai, que teria então todos os cabelos brancos, não somente alguns fios. Seu irmão viria a ser o padre da celebração, e seu ritual não teria peso, envolveria a igreja com uma sacralidade serena e de alegria sublimada. Transformaria a água em vinho.
"Os que abocanham o pão e bebem o vinho costumam fazê-lo pensando na mercearia, na espada, no ouro ou em alguma história maliciosa. Conheço os podres de muitos padres. Será que é assim que se deve conduzir uma homenagem a Deus? Sou a favor não de missas para os mortos, mas para os primeiros sete dias de uma criança", refletiu o "primogênito" dos gêmeos, que, a despeito de suas brincadeiras, admirava e compreendia a quietude do "caçula". Costumava se lembrar da infância com frequência, o que lhe trazia ao paladar um gosto bom de massa crua de bolo, com suas fugas de boca cheia da cozinha; ou então se recordava de quando se reuniam em grupos com as crianças de outras famílias e iam brincar na rua cada qual com seu pião, sempre observados por algum adulto porque em outros tempos haviam sido comuns brigas entre valentõezinhos que não aceitavam suas derrotas de forma nenhuma.
Uma vez, das poucas maldades que o mais velho se lembrava de seu irmão, Lorenzo jogara um pão na direção de um gato de rua, com toda a força, isso porque o felino, que vivia passeando pelo bairro, sempre fugia ao vê-los. O ato criminoso fora – claro – instigado por Cesare:
– Gato chato! Joga o pão nele pra ele aprender! – E lá se fora o pão, para a revolta de Maria, que tivera tanto trabalho preparando-o, e o riso dos dois peraltas, que depois levaram algumas palmadas da avó, uma protetora dos animais que costumava acolher cães e gatos de rua nos jardins do palácio dos Cavalcanti e lhes dar de comer e um lugar onde dormir ao menos por algumas noites, com frequência compactuando com os netos, que não diziam nada a Guido, que de repente via um cão cheio de sarnas passar debaixo dos seus pés.
Fora justamente por gostar tanto de bichos que Lorenzo tentara atrair a atenção do gato a qualquer custo, mas, daquele dia em diante, não tomaria mais medidas tão extremas!
Cesare, por seu lado, já sentira prazer em chutar bexigas de porco e bolas de couro nas costas de seu irmão sempre que este se virava. Menos mal que crianças cresciam e que os dois se entendiam bem, apesar das peculiaridades de cada um. Diferentemente do que pensava Francesca Uberti, que via em Lorenzo um garoto estranho e cheio de manias, Cesare o interpretava como um tipo inteligente demais, em especial no que dizia respeito ao lado especulativo do ser humano e às mais aparentemente insensatas elucubrações, raciocínios que qualquer indivíduo – exceto os muito limitados – seria capaz de elaborar uma vez ou outra na vida, conquanto poucos com sofisticação e requinte, e seria esta a principal diferença entre os homens comuns e os filósofos, os amantes do saber, capazes de questionar o simples fato de se ter um nome ou, indo mais a fundo, um rosto, e precisamente o rosto que aparece no espelho. Por que não outro? A tia Cesca poderia se chamar Antonietta e ter a cara do tio Fabio! Não, não vou tão longe assim. Apesar que nunca se sabe! Cesare troçava consigo mesmo, ciente de sua inteligência ser de outro tipo, mais voltada à prática.
O gêmeo taciturno às vezes intrigava o pai, que se perguntava se ele não se sentia tentado a falar mais, da mesma maneira que até o santo mais casto é tentado a atos lúbricos pelas visões de belas mulheres moldadas e enviadas pelo diabo.
A mãe compreendia que o rapaz preferia o diálogo solitário e, após uma conversa com a esposa, Guido Cavalcanti chegaria à conclusão que o caçula devia ter vocação religiosa. Carregava em si o silêncio típico dos claustros.
O pai era um homem de passos firmes sem serem pesados, bastante robusto, que durante a primeira infância parecera um gigante aos olhos de Lorenzo e o próprio Deus aos de Cesare. O primeiro se escondia atrás de qualquer porta quando o pai ficava bravo. Ao ser reencontrado, permitia-lhe recuperar o bom humor, levando-o a dar boas gargalhadas. O segundo escutava com fascínio seus discursos à mesa, prestando-lhes a devida atenção; ao passo que seu irmão divagava com os insetos e outros pequenos animais que passavam pelo jardim onde costumavam fazer as refeições ao ar livre. Se havia algo que o cônsul apreciava tanto no almoço quanto na ceia, além de comer carnes de caça e de beber um bom vinho, era falar sobre política com a esposa e os rebentos. Contudo, isso nem sempre era o mais convidativo e interessante para o jovem Lorenzo.
***
O tempo passou e, ao alcançar seus vinte anos, Lorenzo já patrocinava as artes no palácio de sua família. Trazia pintores, escultores e poetas de rua que lhe pareciam ter talento, tornava-os cortesãos e, por saber tocar flauta de forma magistral e compor versos, acompanhava-os em algumas apresentações. Às vezes, aparecia com menestréis amigos seus até mesmo em praça pública, embora só quando a vontade vinha, sem datas marcadas.
Por dentro, no entanto, apesar do prazer estético momentâneo proporcionado pela arte, o rapaz não sabia o que era a felicidade. Jamais compreenderia como as pessoas podiam apenas sorrir e cantar sem motivo aparente. O instante de êxito vinha e passava. Os aplausos dos admiradores e os suspiros das jovens fascinadas por sua música e seus poemas, simultâneos ao emergir da inveja, não o atraíam de forma nenhuma.
Quem tirava melhor proveito dos suspiros femininos era Cesare, que já fora para a cama com quase todas as fãs do caçula. Em algumas ocasiões, passava-se por ele, enquanto em outras se beneficiava da reserva do outro para seduzi-las sem ocultar que era o irmão do artista.
Sempre que Lorenzo lhe confidenciava que iria cantar e tocar, espalhava vozes de divulgação por toda a cidade. Para depois contratar capangas a fim de espancar os invejosos explícitos, que em muitas ocasiões tentavam sabotar os espetáculos do Cavalcanti poeta.
Este último teimava em falar de sigilo. O que Cesare não parecia entender era que não era uma boa estratégia atrair os invejosos para depois precisar chutá-los. Se ele tinha prazer nisso, esse não era o caso do caçula, que também por tal razão raras vezes se apresentava em círculos fechados. Tinha asco da aristocracia e da alta burguesia de Florença, ao passo que o primogênito adorava as festas. Começava por beijar as mãos das burguesinhas e logo subia um pouco mais. Além disso, era a oportunidade de ouro de ser apresentado e se apresentar a banqueiros, comerciantes ricos e de fazer as vezes de guia e jovem embaixador para os visitantes de elite de outras cidades e reinos, o que deixava seu pai orgulhoso e certo de que seria o filho a sucedê-lo na política.
Entretanto, também para Guido, Lorenzo merecia seu próprio destino luminoso:
– Vejo que está sempre isolado. – abordou-o durante o baile de recepção do duque Galeazzo Sforza de Milão. Todos dançavam e apenas o mais novo dos irmãos Cavalcanti permanecia à mesa. – Não tem amigos próximos além de Cesare. Não compartilha da vida dissoluta da maioria dos artistas da nossa cidade, incluindo aqueles para os quais se tornou um jovem mecenas. Por acaso isso seria um indício que tem sede de Deus?
– Não sei o que é, meu pai. Se soubesse explicar para mim mesmo, talvez fosse feliz.
– Quer dizer que é infeliz, meu filho? Mesmo tendo uma vida que muitos rapazes pediriam a Deus?
– Os seres humanos são diferentes, e suas necessidades idem. Muitos pediriam, mas não todos. Se eu não a tivesse, acredito que de todo modo seria uma das exceções. Tenho sede de Deus, nisso o senhor está certo, no sentido de que quero compreendê-lo e não consigo. Não se trata, no entanto, da raiz da minha solidão. Há uma verdade mais profunda.
– Por acaso não gostaria de entrar para a Igreja?
– E viver uma vida de pássaro engaiolado, preso em um espaço tão pequeno?
– Nem todos os religiosos são monges. Há diversos cardeais e bispos que atuam como mecenas. Se necessário, nós o ajudaríamos a alcançar essa hierarquia, conquanto eu acredite que seja capaz de chegar ao topo sozinho. – As palavras eram auspiciosas, mas Lorenzo silenciou, algo que seu pai temera que aconteceria.
Ainda não estava certo se queria ser casto, apesar do casamento lhe parecer uma provação em que há mais sacrifícios do que prazeres, portanto talvez não fosse má ideia ficar sozinho.
Ruminava, entre os possíveis motivos de Guido querer que ele fosse sacerdote, um que lhe parecia bastante claro: devido aos conflitos entre guelfos e guibelinos no passado, facções que tinham sido extintas, membros da Igreja estavam proibidos de participar da política em Florença, de se candidatarem a cargos públicos, a cidade inserida no marquesado da Toscana e submetida, do ponto de vista formal e oficial, ao Sacro Império Romano-Germânico, embora na prática fosse independente. Apenas precisava ceder soldados ao marquês ou ao imperador se os requisitassem.
Então, caso se tornasse padre, não haveria o risco de uma disputa entre irmãos.
Lorenzo refletiu que não deveria se sentir ofendido pelas concepções de Guido, que já escolhera seu sucessor. Mesmo assim, havia uma mágoa, pois tinha certeza que o pai considerava a política como um campo superior à arte e à fé.
– Não é uma questão de topo. Gosto de ajudar as pessoas, em especial as que têm algo a mostrar ao mundo, enquanto o mundo não se mostra a princípio disposto a ouvi-las – expôs a Guido depois de uma certa demora. – Acredito que não teria na Igreja a mesma liberdade de ação e pensamento que tenho como um membro da elite desta cidade. Aqui já estou no topo.
– Há muitos padres eruditos que cultivam posições independentes e a Igreja não os persegue, a menos que se ponham a divulgar alguma heresia nociva, o que não me parece que será o seu caso.
– O que eles julgam como algo nocivo está fora da minha alçada. Por enquanto, prefiro permanecer apenas como um patrocinador das artes.
Seguiria relativamente firme em sua posição até que, certa noite, em uma festa da qual a princípio não queria tomar parte, acabou por se deparar com o recém-chegado a Florença, Tomás de Torquemada: tratava-se de um poderoso príncipe da Igreja e também de um dos mais célebres membros da Ordem do Graal. Estava então conversando com Cesare.
– Para o reverendo tenho um anfitrião melhor! – Seu irmão disse ao cardeal assim que o avistou. – Estou certo que se darão muito bem!
As primeiras impressões foram opostas: Torquemada no ato reconhecera no olhar do jovem, que estava com seus vinte e cinco anos, os sentimentos que procurava; mas o rapaz ficou terrificado com aquela feição pétrea. Cogitou desistir de ficar ali e fugir de volta para os seus aposentos.
O terror inspirado pelo sacerdote vermelho não se devia apenas à sua aparência e à presença que emanava, e sim também às leituras que o rapaz vinha fazendo e às resistências cada vez maiores que nutria em relação a certos vértices do clero romano. Como poderia se tornar um bispo ou um cardeal, como seu pai desejava que se tornasse, se tinha ojeriza a certos métodos eclesiásticos? Sua leitura mais recente fora O Martelo das Bruxas, que logo no início explicava que as bruxas de classe superior se banqueteavam com crianças:
"São da pior espécie de bruxas, pois arrastam consigo desgraças e causam a seus semelhantes danos incomensuráveis. Estas criaturas corrompidas conjuram e manifestam o granizo, tormentas e tempestades, provocam a esterilidade nas pessoas, nos animais e nos campos, e oferecem a Satanás o sacrifício de meninos e meninas que elas mesmas devoram, arrancando-lhes a vida com brutalidade. Claro está que nestes casos se tratam quase sempre de crianças não batizadas; se alguma vez chegam a engolir os batizados, o fazem, como mais tarde explicaremos, com a permissão de Deus (…)
Podem também estas bruxas atirar os infantes à água diante dos olhos dos pais, sem que ninguém o note; assustar cavalos; empreender voos corporais e se transportar assim pelos ares de um lugar para o outro. São capazes tanto de enfeitiçar os juízes e presidentes dos tribunais quanto de manter um inviolável silêncio individual e o de outros acusados; sabem infundir no coração e nas mãos de quem se dispõe a descobri-las uma angústia paralisante; e têm, por fim, poder para descobrir os segredos mais íntimos e para predizer o futuro com a ajuda do Demônio.
Os olhos dessas mulheres possuem a virtude de ver o ausente como se estivesse presente. E dentre suas artes está a de inspirar ódio e amor desatinados, de acordo com sua conveniência (...)
Quando querem, podem dirigir contra uma pessoa raios e fazer com que o choque lhe tire a vida, assim como são capazes de matar seres humanos e animais por vários outros procedimentos.
Conseguem evocar os poderes infernais para arruinar os casamentos e tornar os homens estéreis, causar abortos ou tirar a vida do rebento no ventre de sua mãe com tão só um único toque externo; chegam a ferir ou matar com um simples olhar, sem contato físico, e tornam a aberração extrema ao oferecerem seus próprios filhos a Satanás."
Lorenzo não duvidava que bruxas existissem, mas teriam tanto poder assim? Da maneira como os tribunais da Igreja as apresentavam, deviam ser deusas quase onipotentes. Se assim fossem, como se permitiam ser capturadas? Quem teria força para prendê-las? Nem mesmo os cruzados! E o que seria dos pobres juízes? Estariam todos mortos. Afora que, se as bruxas fossem todas más, já não existiriam crianças.
Menos mal que, nesse aspecto, Florença era uma ilha. Não ocorria por lá uma caça sistemática a mulheres suspeitas.
Via nas atitudes de muitos membros da alta hierarquia eclesiástica uma misoginia gritante, estimulada por uma castidade que acabava por suscitar as fantasias mais sujas e horripilantes, como quando obrigavam as supostas bruxas a confessarem em detalhes suas relações sexuais com os demônios e a descreverem o membro grande e frio do diabo. Havia até, em alguns casos, uma sodomia disfarçada que ficava evidente no fetiche pelo aparato sexual de Satanás. O livro prosseguia:
"Em poucas palavras: podem estas bruxas, como antes declaramos, originar um cúmulo de danos e perdição que só em parte estaria ao alcance do vulgo. Bem entendido que tudo isso fazem com a permissão da justiça divina, que castiga a humanidade por seus pecados, deixando que elas causem catástrofes. (…)
Já algo que todas têm em comum, tanto as de categoria superior como as mais baixas, é o fato de terem estipulado um pacto, e vamos esclarecer, não um trato qualquer, e sim com o próprio Satanás e seus súcubos e íncubos mediante ato carnal e bacanais dos mais abjetos.
Pode suceder, por virtude de feitiçaria, que um bruxo ou uma bruxa, ao contemplar o corpo de um jovem, o excite com um só olhar, pelo fato de estarem carregados, os magos e as feiticeiras, com influxos lascivos de tremenda intensidade. Como esses influxos costumam se traduzir em transformações corporais e os olhos são tão sensíveis que captam as menores impressões, não é raro que por efeito de uma emoção íntima os próprios olhos da vítima sejam afetados e fiquem em mau estado, comuns os sintomas de ardência, o que pode se espalhar, assim como a lascívia, pois o olhar impregnado vai se estendendo para o ambiente ao redor e propaga dessa maneira o êxito da vontade da bruxa ou do mago. Então é quando o ambiente origina uma transformação destrutiva nos olhos pueris, que a transmitem a outras partes e órgãos internos, o que está demonstrado pela experiência, já que muitas vezes temos visto que uma pessoa vítima de alguma doença ocular infecta com um só olhar aqueles que a contemplam, sobretudo os infantes. Através portanto do desejo carnal, são provocadas as mortes de meninos", e pensar nisso dava arrepios em Lorenzo, mas até que ponto conseguia crer? Lembrava-se também: "Escrevam-se as sete palavras que Cristo pronunciou na cruz e que sejam gravadas em qualquer objeto que portarem, estando assim os juízes e os homens justos protegidos da bruxaria. Quando chegar a hora de julgá-las, enrolem em seus corpos nus correntes com estas mesmas palavras fixadas: a experiência demonstrou que esses seres nefastos se sentem então estranhamente inquietos e propícios, portanto, à confissão. Contudo, se com tudo isso se obstinarem em guardar silêncio e negar sua culpa, pode-se recorrer à intimidação de um longo e duro encarceramento. E ainda resta o recurso extremo: que o juiz visite a acusada na prisão e prometa influir para conseguir clemência, fazendo, no entanto, a reserva de que esta será obtida no Purgatório, já que na Terra certos pecados não podem ser perdoados", gravar palavras em objetos não seria magia? E estas seriam capazes de deter seres tão poderosos com tamanha simplicidade? O que parecia claro era, na verdade, confuso e obscuro… E havia mais obscuridade adiante: "Não é lícito levar em conta as preferências do acusado ao se escolher um defensor, nem este deve tomar uma causa para si antes de tê-la examinado com detalhes e ter persuadido a si mesmo de sua justiça. O juiz deverá exortá-lo a que se preserve de incorrer em cumplicidade de heresia e sectarismo, cumplicidade da qual já se tornaria culpado só pelo fato de aceitar sem desconfianças a defesa de uma pessoa suspeita de heresia.
Também o juiz terá que tomar cuidado com a família e os herdeiros das bruxas detidas ou executadas na fogueira, devido à frequência com que uns e outros buscam vingança e se entregam às mesmas práticas. Os parentes de um herege são sempre suspeitos de heresia pela mera circunstância do parentesco", o que para Lorenzo parecia um perigoso preconceito. Fazia um pouco mais de sentido aos seus olhos o que lera a seguir, embora duvidasse da existência de um idílico bosque onde floresciam as boas intenções: "Abundam por certo indivíduos superficiais, que recusam sistematicamente as declarações de mulheres que cultivam alguma inimizade com as acusadas por supor que não merecem crédito, guiadas por seu ódio cego e não pela realidade dos fatos. Quão pouco conhece essa gente a cautela, a sutileza, a perspicácia e a discrição dos juízes! Todos os testemunhos devem ser levados ao tribunal, não há acusação que deva passar sem ser investigada. Muitas vezes, certos ódios e invejas que parecem ser irracionais são motivados pelos maus fluidos que acompanham as bruxas. Certas mulheres sensíveis a estes, por serem também más embora não feiticeiras, conseguem captá-los, o que origina uma inexplicável ojeriza", e na noite que se seguira à leitura do Martelo, sonhara com homens de capuzes cônicos escuros e vestes brancas que torturavam crianças. Arrancavam-lhes as tripas e entregavam-nas a padres que pisoteavam seus próprios crucifixos e colocavam-nas em leitos de mulheres mal-afamadas, para depois acusar estas últimas de bruxaria.
Haviam se seguido visões de cemitérios e de uma Florença devastada, entregue às chamas. Acordara encharcado em suor.
– Entendo que não esteja de acordo com certos métodos, filho. Mas eles são necessários para impedir um mal maior. – Na noite de sua recepção na cidade, Torquemada e o rapaz, apartados em uma das varandas do palácio, acabaram por conversar durante horas. O resto das pessoas, pouco a pouco, já se retirava para dormir, mas para os dois ainda era cedo.
– Quer dizer que, para cinco culpados que morrem, outros cinco inocentes devem morrer para que esses mesmos culpados não escapem? – questionou.
– Não há outro meio. Vivemos em tempos difíceis, nos quais o marido mata a mulher, que engana o marido, que maltrata o filho, que surra a irmã, que foge de casa e leva a mãe ao desespero.
– De todo modo, Eminência, acho que deveríamos ser mais humanos. Ou algum dia ficaremos iguais aos demônios que nos agridem.
– Se tem tanta vontade de mudar as coisas, por que não entra para a Igreja?
– Como se um único homem, um simples homem, pudesse alterar o Corpo de Cristo!
– Se ele tiver Cristo dentro de si, por que não? Poderia nos ensinar a sermos mais humanos. – Havia na declaração de Torquemada, por trás da seriedade aparente, uma carga de cinismo e um interesse pouco velado.
– Gostaria de ajudar as pessoas a lutarem nessa guerra interna e externa contra os demônios, é verdade, mas não sei como. – Dirigiu o olhar para a Lua minguante.
– Poderia se tornar um de nossos cruzados. – Por fim, o convite. Mas aquele convite o pegara de surpresa. Eu, um cruzado? Parecera-lhe que queria recrutá-lo porque o via como um futuro bispo ou como um possível sucessor.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha e engoliu a seco. O terror inicial, que se amenizara no decorrer da conversa, voltou à tona ao alternar o olhar entre a Lua e o cardeal.
Em um lampejo, teve a visão de um demônio que sorria ao lado de uma fogueira de bruxa.
– Não tenho nenhuma prática guerreira. Sei tocar flauta, porém sou apenas regular no manejo da espada. Pratico mais por exercício do que por outra coisa.
– Não importa. Nós o treinaremos e o sangue de Cristo despertará as suas potencialidades ocultas. – As palavras de Torquemada eram como lascas de pedra brilhante. – O que vejo na sua pessoa, Lorenzo, é o medo do futuro. Mas não há o que temer. É preciso realizar. E há também em seu olhar uma ternura rara de ser encontrada nos cruzados. – Ternura? Por que combatentes que lidavam com demônios precisariam de um sentimento do tipo? "Bem, talvez seja mais óbvio do que parece", pois necessitavam de alguém para balancear o grupo, para impedir que, de tanto lidarem com demônios, se tornassem semelhantes a eles, distanciando-se de Cristo e fazendo ferver e evaporar Seu sangue. – Nossos guerreiros costumam vir de realidades amargas, extremamente sofridas. Isso faz com que a força e o poder os fascinem mais do que o coração, o que acredito que não será o seu caso.
– Não me vejo como uma pessoa terna e bondosa. Agora mesmo admito que o poder à minha frente também me tenta. – O vento da noite ameaçou apagar as chamas do alto candelabro ao lado do sacerdote vermelho. – Pois sei que poderei ajudar muitas pessoas com a força de um cruzado. Ao mesmo tempo que terei que me afastar das artes e de Florença. Sou um pouco apegado a esse pequeno mundo.
– Todo presente de Deus implica certos sacrifícios por um bem maior.
– Preciso pensar. Dê-me um tempo, Eminência.
– Não se preocupe. Terá uma semana. O tempo que irei ficar em Florença para resolver alguns negócios pendentes.
Após aquela conversa, vieram diversas noites mal dormidas, com seu leito repleto de espinhos, nascidos de suas próprias pendências e de aflições e questionamentos: "Não posso mudar a Igreja em seu estado atual, mas pouco a pouco talvez mude alguns indivíduos de dentro dela. Terei oportunidades para salvar as vidas de muitas pessoas. Isso por si deveria ser o suficiente. Mas trabalhar para homens que me parecem mais diabólicos do que santos? Ter que concordar com livros como o 'Martelo'? A minha autonomia sempre será sagrada, independentemente do que escolher", do seu modo característico, foi dar a resposta a Torquemada na noite anterior à partida deste.
Dirigiu-se à Basílica de Santa Cruz, onde o cardeal estava hospedado, com um olhar calmo e decidido, sem se render a um mero sim ou a um simples não:
– Partirei com o senhor.
– Veio em boa hora. – O sacerdote vermelho meneou a cabeça de cima para baixo, em sinal de aprovação.
Às suas costas, via-se o crucifixo de Cimabue, cuja cruz seguia a iconografia do Christus patiens, ou seja, um Cristo moribundo na cruz, com os olhos fechados, a cabeça apoiada no ombro e o corpo arqueado para a esquerda. Corpo este longilíneo e sinuoso, com cores enriquecidas por um tom verde-escuro que lhe dava um aspecto cadavérico.
Na manhã seguinte, seria a última vez que Lorenzo veria o pai, que sorria realizado, sem mais receios a respeito da sucessão no governo da cidade, e sua mãe, que o abraçou e o beijou na testa antes de lhe entregar uma rosa, sua flor favorita.
– Estou muito orgulhosa de você – cochichou em seu ouvido. – Mas se algum dia quiser voltar, siga sempre o seu coração.
– Vamos nos ver de novo. – Entristecido, o irmão o abraçou com carinho; e o caçula não resistiu e derramou algumas lágrimas, assim como o primogênito, que, no entanto, conseguia sorrir. Organizara uma despedida para Lorenzo com menestréis e poetas de rua, que lhe dedicaram uma canção que falava de um cruzado que livrara a cidade de um terrível demônio, o Monstro de Florença, diante da entrada do palácio dos Cavalcanti. Sentiriam sua falta. – Não faça essa cara de preocupação. Vou cuidar deles de um jeito ou de outro. – Cesare lhe prometeu e estreitou o abraço.
Chegava ao fim a vida profana de Lorenzo Cavalcanti.
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