Impelido pelo comércio, fora extraordinário o crescimento da
população do burgo nos tempos anteriores à eclosão das doenças.
Os cidadãos de Dite conviviam com uma boa quantidade de forasteiros,
que eram úteis, sobretudo, na realização de serviços que os
nativos costumavam desprezar, tais como limpar fossas, latrinas e
outras tarefas consideradas degradantes. Até que em um determinado
momento nem essas pessoas puderam mais dar conta da situação, e com
sua partida tudo só piorara. Os despojos funerários se acumularam a
ponto das igrejas não terem mais onde abrigar os mortos.
Por isso foram escavados túneis e, descobertas cavernas nos
subterrâneos mais profundos da catedral, encontrara-se espaço para
os novos túmulos. O que acabara por se estender para bem além do
Duomo de Dite, abaixo do qual o espaço era dispendioso,
restrito aos mais ricos.
– Dizem que alguns profanos já desceram aqui para celebrar missas
negras. Talvez isso também tenha contribuído para gerar aberrações.
– Albizi comentou com os cruzados.
– É possível, monsenhor. – Miguel reparou que havia, nas
paredes daquelas catacumbas, placas para identificar debaixo de que
rua o eventual visitante se encontrava. – Mas essas criaturas não
respeitam nada nem ninguém, de qualquer maneira. Está sentindo
alguma coisa, Lorenzo?
– Por enquanto nada. Parece que ele também é capaz de restringir
seu espírito e assim disfarçar sua presença. Por isso nossa
atenção precisa ser redobrada.
"Vocês não sabem de nada. Pecadores como são, ou se tornam
nossos servos ou serão apagados. Deus não nos elimina porque somos
sinceros, enquanto se cansa dos hipócritas." Um pensamento
estranho piscou na mente de Miguel, que se voltou para o companheiro:
– Ele está próximo! Ouvi um pensamento do desgraçado agora. –
Suas entranhas se retorceram; no estômago, um vazio, e não demorou
para chegar uma aguda sensação de fome. Algo difícil de ocorrer
com um cruzado. Imagens de carnes sangrando e de dentes afiados com
as faces imersas nas sombras, apenas os maxilares visíveis, passaram
diante dos seus olhos. – E tive a impressão de ser um pensamento
dirigido. Parece que ele nos estudou.
– Continue perto de nós, monsenhor. – O conselho de Cavalcanti,
suas espadas curtas desembainhadas. Seus olhos pareciam imóveis,
fixos para o que poderia surgir adiante, mas sua mente se espalhava
por todos os lados e direções possíveis. Escutou passos de
correria e vozes desconexas. – Você ouviu? – dirigiu a questão
para o cavaleiro dourado, que agora caminhava de costas, para assim
proteger melhor Albizi, que cerrara a boca, e a si mesmo.
– Vozes embaralhadas. – Um ódio súbito o atingiu.
Para sua tristeza, que se seguiu ao sentimento aflitivo que tentou
reprimir, este não provinha de nenhum demônio, mas de suas
recordações mais retorcidas.
Seu coração se enrolava numa espiral bruta de carne e sangue; e
assim os batimentos ficavam duros.
Aprofundou o fôlego, buscou pacificar a mente, sem grande êxito, e
terminou por rever os rostos de inimigos do passado e, pior do que
isso, os de entes queridos em teoria sepultados.
"Talvez esse demônio esteja estimulando o que há de pior em mim.
Que sei que ainda existe. Deus, conceda-me a Sua proteção neste
instante!" Alguma coisa então percorreu as trevas e, numa rapidez
sobre-humana, deu a impressão de atravessar o abdômen do guerreiro,
destroçando a armadura naquela área.
– Aaaaaah! – Ao espirrar do sangue de Miguel, o monsenhor gritou
e correu para perto de Cavalcanti, que não se mexeu mesmo diante da
aparição do demônio de cabeleira vermelha suja e desgrenhada, que
berrava e gargalhava. – Precisa ajudá-lo, Lorenzo! – As chamas
do candelabro que trouxera se apagaram.
– Não subestime nosso irmão, monsenhor – replicou Cavalcanti,
que estava em postura de combate, mas ainda não agia.
– Até que você é forte. Ou não teria prejudicado a minha
armadura. – O cavaleiro falou sem dar mostras de dor, com uma
expressão tranquila para a surpresa de Albizi e do demônio, cujas
veias nos olhos amarelos inflaram. – Mas força bruta não é o
suficiente para me derrotar, monstro estúpido. – A espada de
Miguel se moveu com uma velocidade aterradora, passando a impressão
que se transformara em um facho de luz, que iluminou todo aquele
local sombrio, e a cabeça e o braço cravado na barriga foram
separados no ato do restante do corpo, que despencou, queimando.
– Impressionante… – O monsenhor enxugou o suor na testa.
– Isso não foi nada. – Miguel se voltou para ele e sorriu. Agora
era a espada o que fornecia a iluminação de que necessitavam.
Com algum esforço e agora sim demonstrando dor, arrancou o braço de
mão cheia de garras, atacado pelas chamas, e o jogou para junto dos
outros restos do demônio, que viraram cinzas. Uma luz dourada
envolveu a região que apresentava uma ferida aberta. Em pouco tempo
esta se fechou, sem deixar sequer uma cicatriz.
– Um monstro forte, mas realmente estúpido. Não se mostrou à
altura da sua espada do fogo do Espírito Santo. Não era o que
procuramos. – Cavalcanti deixou claro.
– Só estragou a minha armadura. – Miguel balançou a cabeça.
– Por Jesus Cristo Nosso Senhor! A catedral estava infestada de
criaturas malignas! – O monsenhor fez o sinal da cruz e refletiu:
"Por um momento pensei em fazer o sinal por eles também. Os
cruzados estão imbuídos de uma missão santa e corre em seus corpos
o sangue de Cristo. Mas com tamanhos poderes, questiono-me se não
deveria temê-los. Sei que é um pecado, que estou duvidando do
Senhor, mesmo que pareça algo tolo ou insignificante, ou nem tanto.
Estou sendo ingrato. Eles me protegem e é com medo que retribuo?
Não! Talvez sinta temor. Temor e respeito, temor reverente, como
deve ser em relação a qualquer manifestação divina."
– Para qualquer pessoa comum, seria suicídio entrar aqui. Mas nós
vamos solucionar isso – replicou Miguel, na imediata sequência
captando um pensamento carregado de escárnio: "Eu ainda estou
esperando por vocês!" – Ele se comunicou comigo. – O
cavaleiro da espada do fogo do Espírito Santo disse a Lorenzo após
um instante de suspense. – Está querendo nos irritar.
– Agora ele parou de esconder seu fluxo espiritual. Posso senti-lo
– disse o florentino.
– Será que está tão confiante assim de que pode nos derrotar?
– Não me interessa. Vamos, antes que o desgraçado mude de ideia e
fuja. – Seguiram adiante, guiados pela percepção de Lorenzo, com
Albizi um pouco arrependido por estar ali: "Deveria ter deixado a
igreja quando tive a oportunidade. Agora estou prestes a me encontrar
com uma criatura dos abismos! Talvez não viva muito mais. E o ritmo
deles…" – Está tudo bem, monsenhor? – Lorenzo se voltou
para Albizi. – Está ofegante. Se quiser, podemos ir mais devagar.
– "Ainda por cima atrapalho os dois."
– Não, meu filho. Devem seguir no passo que julgam apropriado! São
vocês que conduzem esta missão. Estou aqui apenas para rezar.
"De certa forma, ele está sendo corajoso. Hoje não havia
alternativas covardes." Cavalcanti, que sentia o medo vindo do
sacerdote, terminou por sorrir ao admirá-lo.
Contudo, em poucos segundos mudou de postura. Arregalou os olhos e
gritou:
– Abaixem-se! – Puxou Albizi para baixo junto consigo. Uma
saraivada de flechas – ou garras atiradas? Quiçá ambas. Eram
objetos pontiagudos – passou pelos três. O monsenhor chegou a ver
a imagem de si próprio com a cabeça e a garganta perfuradas, morto
no chão da cripta. Talvez já tivesse sonhado com aquilo, ou com
algo parecido.
– Ele está só um pouco à frente! – Miguel, que se esquivara,
emanou um halo dourado formado por círculos concêntricos que levou
o padre a boquiabrir e sentir um arrepio por todo o corpo.
"É como se fosse um santo guerreiro!" O halo aquecia o ambiente
frio e úmido, iluminava os corredores, incrementando a claridade
emanada pela espada, e derrubava e fundia os projéteis que eram
atirados na direção deles.
– Fique no chão, monsenhor! – Uma aura mais discreta, prateada,
fez o contorno do corpo de Cavalcanti.
Ao chegarem próximas, agora as unhas negras e afiadas caíam ou se
desviavam e iam se cravar no solo e nas paredes, do mesmo modo que as
armas metálicas, rendidas inúteis.
Os dois guerreiros dispararam e entraram em um salão repleto de
ossos humanos. Desmontaram e despedaçaram, com a força de suas
armas, os esqueletos arqueiros espalhados pelo lugar, e prosseguiram
com o intento de desentocar quem lançava as garras, o demônio
sentado em um túmulo de mármore verde: sua pele era de coloração
azul fosca, tinha olhos de abutre, apresentava uma corcunda disforme
nas costas e, ao se levantar, revelou mesmo com o corpo torto uma
altura considerável. Chegava perto dos quatro metros.
– Hoje estou com muita fome. Que bom que vieram duas presas
graúdas! – Escancarou a boca, que lembrava a de uma hiena e emitia
um hálito fétido, mas que ainda não era tão malcheiroso e
irritante quanto a fumaça liberada por seus chifres curvos.
De início, os golpes das lâminas dos cruzados não surtiram o menor
efeito. Ricocheteavam na pele dura. E de forma análoga as garras,
que podiam se destacar e logo cresciam outra vez, rivalizavam com o
metal, enquanto a velocidade da criatura, de braços compridos e
flexíveis e pernas musculosas, parecia ser superior à dos
cavaleiros. Aparava todos os ataques.
Após uma sequência alucinante de golpes, choques e esquivas, a
dupla parou, próximos um do outro e distanciados do inimigo.
– O que foi? Já desistiram? Pois eu não desisti!
Cavalcanti deu uma olhada para Miguel e o cavaleiro dourado assumiu a
dianteira: saltou com uma rapidez que superou a do oponente e sua
espada se transformou em uma labareda, que penetrou no peito do
adversário e o derrubou ao mesmo tempo que o queimava.
O cruzado ficou de pé sobre o demônio caído, que urrou de dor. O
som fritante em sua carne aumentava à medida que a lâmina tornava a
se solidificar, incandescente dentro de seu corpo.
– Como pode ver e sentir agora, nós também não tínhamos
desistido. – Brilharam os olhos do cavaleiro da espada do fogo do
Espírito Santo.
Assim que o demônio ameaçou vomitar, o que não era fortuito, pois
geraria algum filhote bizarro, Lorenzo agiu e com uma de suas espadas
o decapitou.
Sua missão chegara ao fim.
– Acabou. Como a maioria dos demônios, cometeu o pecado da
presunção – sentenciou Miguel.
– Do qual também não estamos imunes – replicou Lorenzo, cujo
companheiro ainda se regozijava com a vitória. Admirava o corpo do
monstro estendido no chão. Cavalcanti correu para acudir o
monsenhor, de quem o outro cruzado até se esquecera. "Nossa
missão, mais do que matar demônios, é salvar pessoas", refletiu
o florentino.
Miguel retirou o elmo por sentir a cabeça sufocada. "Mais um
triunfo, pisando em cima das profundezas! Espero um dia não afundar!"
Riu consigo mesmo e de si próprio. "Será que tenho realmente
motivos para rir? O bispo está morto. E a cidade vai continuar a
merda de sempre!" Seu estado de ânimo mudou da água para o
vinho; ou melhor, percebeu que seu riso e seu triunfalismo provinham
de sua melancolia, não de alguma forma de alegre satisfação. "Na
verdade, estarei sempre pisando na areia movediça e meio que
afundando, só que voltando à tona. Só eu… e gente como eu, como
Cavalcanti. O resto, de maneira aleatória ou não, terminará por
afundar. Um destino pequeno para os que são filhos de Deus! Para os
quais resta a esperança da Graça e nada mais."
***
– Está terminado, monsenhor. O demônio está morto. – Lorenzo
estendeu a mão para o bom clérigo, que reencontrara no chão da
cripta, com a testa ali apoiada, as mãos sobre a nuca.
– É você de verdade, meu filho? – Só levantou os olhos ao
intuir que era seguro.
– Sou eu. Bem-vindo novamente à Criação de nosso Pai.
– Ah, Lorenzo! – Erguido pelo cruzado, abraçaram-se. – Até
que enfim acabou, fiquei com medo por vocês!
– Tratava-se de um adversário perigoso, mas já enfrentamos
piores. Ele nos subestimou, enquanto nós não o subestimamos. Isso
fez a diferença. Como cristãos, não podemos duvidar do poder dos
demônios.
– Claro que não. E a maior força do Inimigo reside em nossa
própria e frágil vaidade.
– Agora só espero que não tenha sido em vão.
– Acho que entendo o que quer dizer. Refere-se à morte do bispo
Abissini?
– A morte do bispo foi uma consequência. – Afastou-se. –
Refiro-me às causas. Esta cidade precisa mudar. Urgentemente. Ou
outras criaturas, piores, virão.
– Compreendo. Mas acho que uma coisa pode ser feita logo.
– O quê?
– Vocês deveriam falar ao povo. Porque vocês são os
heróis. – Albizi sorriu e Cavalcanti suspirou. Não gostava de
falar em público nem queria ser idolatrado como um salvador. –
Eles não vão ouvir o cônsul nem a mim. Mas acredito que escutarão
vocês.
– Falarei com Miguel a respeito. – "E deixarei isso a cargo
dele… Ou não?"
***
– É cansativo viver assim… Os ratos morrem, mas continuam a
proliferar. – O cavaleiro dourado falava consigo mesmo em voz
baixa. Ainda não saíra de cima do demônio.
– Está confortável aí? – Lorenzo brincou, sem perder a
seriedade aparente. Miguel se voltou em sua direção e sorriu.
– Até que esse maldito é mais macio do que parecia ser. – Enfim
desceu do corpo do monstro.
– Vim para perguntar se estaria disposto a fazer algo que extrapola
as nossas responsabilidades.
– Não fui eu que quando chegamos disse que só queria eliminar o
demônio.
– As circunstâncias modificam as reflexões. Não por acaso são
reflexões: refletem e se curvam a nós. Cristo talvez ache que nosso
trabalho não termina no instante em que pensamos que está acabado.
Voltaram para perto do monsenhor, que, mesmo com o demônio morto,
não tivera coragem de seguir Cavalcanti ali adentro.
– Quando a cidade poderá realizar o pagamento? – inquiriu.
– Depois que fizermos nosso discurso ao povo de Dite. – Lorenzo
respondeu com singeleza.
Albizi meneou a cabeça para os lados, sorriu e, comovido, derramou
lágrimas, que tratou de enxugar com as mãos.
Miguel apoiou a mão direita em um de seus ombros e, agora os dois
livres de elmos, seguiram de volta à superfície, porém indo mais a
fundo em si próprios, nas reflexões de subida, do que quando haviam
descido.
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